Werner Herzog dentro do vulcão
Para o Inferno, um dos melhores documentários do cineasta alemão, em busca da “verdade extática” que sempre perseguiu, chega por uma vez a tempo e horas a Portugal através do Netflix.
Só mesmo Werner Herzog para viajar pelo mundo com um vulcanólogo e passar a maior parte do tempo a falar de tudo menos de vulcões. Em vez disso, fala-se de fósseis hominídeos nos desertos africanos, da propaganda da Coreia do Norte, das crenças do arquipélago de Vanuatu. Mas, parecendo que não, não é de outra coisa senão de vulcões que Para o Inferno, o novo documentário do realizador de Aguirre, Nosferatu e Fitzcarraldo, fala.
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Só mesmo Werner Herzog para viajar pelo mundo com um vulcanólogo e passar a maior parte do tempo a falar de tudo menos de vulcões. Em vez disso, fala-se de fósseis hominídeos nos desertos africanos, da propaganda da Coreia do Norte, das crenças do arquipélago de Vanuatu. Mas, parecendo que não, não é de outra coisa senão de vulcões que Para o Inferno, o novo documentário do realizador de Aguirre, Nosferatu e Fitzcarraldo, fala.
Para o Inferno é um filme sobre o vulcão como “fogo místico” que dá e tira a vida, manifestação do divino (entendido metaforicamente e tangivelmente) directamente ligado ao centro do mundo, ao núcleo em fogo que mantém a Terra a girar. E é também um filme que reflecte aquilo que sempre motivou o cineasta alemão ao longo da sua carreira de 50 anos: a busca da transcendência do homo spiritualis, de uma “verdade extática” que se entende sensorialmente e não intelectualmente.
Depois de dois filmes menos conseguidos (a longa de ficção Rainha do Deserto, que vimos este ano em salas, e o documentário sobre a Internet Lo and Behold, mostrado fora de competição no Doclisboa e com estreia em sala em 2017), Para o Inferno, acabadinho de chegar em estreia global (Portugal inclusive) ao serviço de streaming Netflix, é um reencontro com o melhor e o mais incisivo Herzog. Aqui se reencontra o visionário idiossincrático que assinou alguns dos melhores documentários das últimas décadas (como esse assombroso olhar sobre a América no corredor da morte que é Into the Abyss e a subsequente série On Death Row), e que continua inexoravelmente ligado ao mais intensamente humano que existe dentro de cada um de nós.
Para o Inferno está não apenas em ligação directa com a natureza geológica, através do olhar sobre os vulcões como “portais” para o centro do mundo (geológico ou espiritual) ou “válvulas de escape” para os elementos que se escondem abaixo da superfície. Está também intrinsecamente ligado à própria obra anterior do cineasta alemão, com referências abertas a dois títulos em particular: a curta de 1977 La Soufrière, a sua visita quixótica a um vulcão em erupção na ilha de Guadalupe, e a longa de 2007 Encounters at the End of the World, viagem às estações de pesquisa científica na Antárctida.
Nesta última, conheceu Clive Oppenheimer, o vulcanólogo da Universidade de Cambridge cujo livro Eruptions that Shook the World serve de ponto de partida ao novo filme e que funciona como uma espécie de “anfitrião” da viagem que Herzog propõe ao espectador. Como sempre em Herzog, é uma viagem mística, em busca da “magia” quase primitiva, certamente atávica que os vulcões exercem sobre quem os vê. Longe das restrições narrativas da ficção, ou do olhar mais passageiro que Lo and Behold lançava sobre a tecnologia, percebemos que é nesta espantosa incursão no universo natural, e na sua aparente aleatoriedade imune a qualquer tipo de emoção, que Herzog se espraia e se sente no seu território.
Ao tentar perceber como o vulcão exprime a nossa fragilidade perante as forças incontroláveis que pode levantar, como não pode ser reduzido a uma simples questão de formação geológica, Para o Inferno enquadra-se perfeitamente na constante “atracção do abismo” do cinema do alemão, na sua vontade de percorrer caminhos que mais ninguém percorreu, de escalar montanhas que nunca ninguém escalou ou tentar cumprir o impossível. Quer seja Aguirre ou Fitzcarraldo, o “homem dos ursos” Timothy Treadwell (em Grizzly Man) ou o saltador de esqui Walter Steiner (na curta O Grande Êxtase do Entalhador Steiner), a aventureira Gertrude Bell (em Rainha do Deserto) ou o piloto Dieter Dengler (na curta documental O Pequeno Dieter Precisa de Voar e na longa narrativa Espírito Indomável), no cinema de Herzog há sempre mais uma curva da estrada, mais uma montanha, mais um deserto. E não há nenhum outro cineasta disposto a ir tão longe com as suas personagens para chegar mais perto da tal “verdade extática”.
Claro que existe alguma ironia por não podermos ver aquele que será talvez o mais espantosamente belo dos Herzog recentes na tela do cinema. Se há filme que o merecia, é Para o Inferno, com as suas impressionantes panorâmicas aéreas que só por si justificam a existência do drone como instrumento de captura de imagens, com as imagens quase tácteis dos lagos ondulantes de magma vermelho ou dos rios de lava negra em arrefecimento. É um filme feito para a dimensão desmesurada do grande ecrã, e nenhum ecrã caseiro, por maior que seja, alguma vez lhe fará a justiça devida.
Mas, por outro lado, há que saudar a raridade de vermos um documentário de Werner Herzog chegar a Portugal “a tempo e horas”, em simultâneo com a sua estreia global, e poder ser visto por muito mais gente do que aquela que teria oportunidade de o ver em cinema. Num país onde A Gruta dos Sonhos Perdidos chegou tarde e a más horas ao circuito comercial ou Into the Abyss, Encounters at the End of the World ou The Wild Blue Yonder se quedaram pela exibição pontual em festivais, ter acesso a Para o Inferno é só por si um pequeno acontecimento. O que o torna ainda mais importante é que temos aqui um Herzog de primeira água.