Uma lei "farol" à escala mundial
Poucas leis portuguesas tiveram, no presente século XXI, o papel de “farol” à escala planetária como a da “Descriminalização do Consumo”.
Portugal comemora o nascimento de uma lei, que foi dentro do seu quadro legislativo, uma das que maior impacto simbólico teve a nível mundial. De facto, julgo que poucas leis portuguesas tiveram, no presente século XXI, o papel de “farol” à escala planetária como a da “Descriminalização do Consumo”. Referida como pioneira e apresentando-se como humanista, integrada e centrada na figura do consumidor como pessoa doente, esta lei colocou-se nos limites do modelo proibicionista, desafiando as convenções e tratados internacionais baseados numa declarada “Guerra às Drogas”.
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Portugal comemora o nascimento de uma lei, que foi dentro do seu quadro legislativo, uma das que maior impacto simbólico teve a nível mundial. De facto, julgo que poucas leis portuguesas tiveram, no presente século XXI, o papel de “farol” à escala planetária como a da “Descriminalização do Consumo”. Referida como pioneira e apresentando-se como humanista, integrada e centrada na figura do consumidor como pessoa doente, esta lei colocou-se nos limites do modelo proibicionista, desafiando as convenções e tratados internacionais baseados numa declarada “Guerra às Drogas”.
E de facto, razões há, para celebramos o novo enquadramento legislativo que emergiu em 2001. Destacaria duas razões fundamentais para que possamos olhar para trás com a sensação de termos conseguido realizar uma boa parte do trabalho.
Primeiro, o modelo português de descriminalização do consumo privilegia a esfera da Saúde em detrimento da Justiça Criminal. Assim, com a lei 30/2000 o Governo português introduziu uma nova visão no fenómeno "droga", a saber: a pessoa que se encontra na posse de uma determinada quantidade de uma substância psicoativa (SPA), em particular, deixa de ser criminalizada. Há assim um esforço para distinguir o consumo do tráfico. Para esses efeitos, estabeleceu-se uma lista de SPA com a quantificação precisa dos valores em gramas que uma pessoa pode possuir/trazer consigo para uso próprio. Contudo, o sujeito pode ser sempre alvo de uma sanção administrativa. Foi por essa razão que o Instituto da Droga e Toxicodependência (hoje SICAD) criou as “Comissões de Dissuasão da Toxicodependência”, que em muitas situações viriam a substituir os tribunais. As comissões têm como principal função o aconselhamento das pessoas sinalizadas pelas forças de autoridade. O aspeto interessante destas comissões é que se encontram sob o chapéu-de-chuva do Ministério da Saúde, o que facilita o acesso dos consumidores aos profissionais de saúde.
Segundo, na sequência do com o modelo da descriminalização criou-se o Dec. Lei 183/2001 que regula e implementa os serviços de Redução de Riscos e Minimização de Danos (RRMD). Isto permitiu o estabelecimento de um conjunto efetivo e integrado de serviços no território nacional. Defendendo a ideia de que os serviços são mais eficazes se tiverem uma base local, pelo difícil acesso deste público às estruturas formais de saúde, o Estado português regulamentou, através de concurso público, a celebração de contratos com ONG de base comunitária. Com isto, introduziu-se uma novidade em Portugal que mais não foi do que a inclusão da prática dos profissionais comunitários nos princípios adjacentes à RRMD: humanismo, pragmatismo e a ausência de julgamento moral face aos consumos e consumidores. Rapidamente as equipas de RR passaram a funcionar como o link/elo dos utilizadores de SPA com a cociedade, em particular os que se encontravam mais afastados do sistema de Saúde (as ditas populações escondidas).
Desde então, implementaram-se serviços como os programas de trocas de seringa, as equipas de proximidade, os programas de baixo limiar, a educação de pares, e iniciativas de noite segura.
Agora, 15 anos depois, o nosso modelo está sob avaliação e podemos observar resultados interessantes. Desde logo, e de um ponto de vista simbólico, podemos dizer que este modelo introduziu a “liberdade moral” do uso de SPA, retirando a carga negativa da sua criminalização. Depois, e de acordo com uma perspetiva social, é possível afirmar que o estigma associado aos consumidores de SPA tem vindo a diminuir significativamente desde a introdução da lei. Por último, e de ponto de vista da saúde pública, observam-se resultados que apontam o decréscimo das infeções por VIH e Sida. No ano 2000 os utilizadores de substâncias injetáveis que viviam com HIV aproximavam-se dos 1591 sujeitos, o que contrasta fortemente com os apenas 43 pessoas vivendo com HIV e que fazem consumos por via injetada no ano de 2014.
Contudo, há um conjunto de situações a lamentar. Para começar, o desenho da lei e a ênfase colocado na doença tem levado a uma excessiva “medicalização” do discurso e da intervenção junto do utilizador de SPA. No entanto, sabemos que uma grande franja da população não apresenta consumos problemáticos de SPA. Assim, não nos parece justo e rigoroso tratar essa mesma franja da população como pessoas doentes, condicionadas muitas vezes à presença obrigatória em CTDs – eis um dos limites da lei.
Para além disso, releva-se o facto de nunca termos avançado com dois tipos de resposta que se encontram tipificadas no decreto-lei, e falo do programa de troca de seringas nas Prisões e, em particular, das Salas de Consumo Assistido nas duas principais cidades do país: Lisboa e Porto. Fica, assim, no ar, um sentimento de insuficiência por não termos ido mais além… E, ressalve-se, existindo enquadramento legal para o fazer, é urgente dar resposta a estas e outras necessidade diagnosticadas.
E se há lamentos, também há oportunidades e desafios para o futuro, portas abertas que a lei deixa antever e que forçam os limites das convenções internacionais e da sua imparável mas falhada guerra… Tomemos como exemplo os serviços de Drug Checking em contextos festivos/ recreativos. Ao terem a oportunidade de analisar as SPA em meios festivos, as pessoas assumem que usam este tipo de substâncias pelo gozo que isso lhes dá. O que significa, que as próprias equipas de RR aceitam os aspetos positivos do seu uso e do prazer que lhes está associado. Obviamente que as equipas de RR não promovem a utilização de SPA, mas admitem que as pessoas as pessoas têm o direito de o fazer e de aceder a informação adequada que torne os seus consumos responsáveis e informados.
Por fim, resta dizer que a lei e os serviços de saúde formais tendem a criar uma atitude paternalista sobre a pessoa utilizadora de SPA, o que não permite o verdadeiro empoderamento dos consumidores. Em Portugal, algumas ONG reivindicam um novo modelo fundamentado na cidadania que poderia suavemente substituir a abordagem baseada na saúde pública. É hora de uma nova conceção do nosso modelo. Precisamos empurrar mais uma vez os limites das convenções internacionais e erradicar o proibicionismo.
Director Executivo da APDES - Agência Piaget para o Desenvolvimento