“Ame-se ou odeie-se, a verdade é que muitas pessoas gostam de ver Donald Trump”
A candidatura presidencial do magnata do imobiliário e estrela da reality tv tornou-se uma caixa de ressonância para o descontentamento popular. Mas a erosão do panorama político norte-americano e dos meios de informação começou muito antes, diz David Birdsell.
David Birdsell, reitor da Faculdade de Relações Internacionais da Universidade Baruch de Nova Iorque é especialista em política e na forma como o debate é acompanhado pelos media.
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David Birdsell, reitor da Faculdade de Relações Internacionais da Universidade Baruch de Nova Iorque é especialista em política e na forma como o debate é acompanhado pelos media.
Ouvimos muitas vezes que as eleições deste ano nos Estados Unidos são diferentes de todas as anteriores, principalmente por causa de Donald Trump. É mesmo assim, ou o poder das redes sociais tem escondido algumas semelhanças com outras eleições?
Há várias coisas que se cruzam nesta campanha. Em primeiro lugar, temos um candidato com uma inexperiência sem precedentes em relação às qualificações que costumamos associar à Presidência. Donald Trump nunca exerceu cargos no Governo, nunca foi eleito para nenhuma função e nunca foi militar. É um candidato de um dos grandes partidos muito diferente de qualquer outro em toda a nossa História. Especialmente porque se orgulha de não querer adaptar-se às normas do discurso político, e até de nem se preocupar em informar-se sobre os aspectos mais básicos da política.
Esta é a maior variável destas eleições, mas é verdade que as redes sociais, cuja influência já se notou muito em 2012, têm agora mais alcance junto da população, e isso tem influenciado o carácter da actual campanha, contribuindo para a erosão dos meios de informação por excelência.
E Donald Trump é um candidato muito activo nas redes sociais, em particular no Twitter. Isso tem sido decisivo para a sua popularidade?
Sim, penso que é um factor muito importante. Ele usa muito bem as redes sociais, mas de uma forma muito particular. Como foi uma estrela da televisão, está habituado a conseguir ser notícia, e não se importa se as notícias sobre ele são boas ou más. Este comportamento é muito diferente da tradicional cautela dos candidatos que participaram na maioria das eleições anteriores. Acaba por dificultar o trabalho a quem tem uma campanha mais tradicional, porque não consegue combater esse tipo de abordagem.
O Partido Republicano perdeu a capacidade para influenciar o seu próprio candidato?
Nos Estados Unidos continuamos a assistir a uma tendência para uma menor influência das estruturas dos partidos e para uma maior influência das estruturas das campanhas. Vemos isso tanto no Partido Republicano como no Partido Democrata, mas é muito mais evidente entre os republicanos, porque Donald Trump tem negado de forma ostensiva tudo o que o partido defendeu nas últimas quatro ou cinco eleições. É o repúdio total da ideia de que o partido tem algo a dizer na campanha, pelo menos no que diz respeito aos candidatos a Presidente e a vice-presidente.
É mais provável que esta forma de fazer campanha saia reforçada depois destas eleições seja qual for o resultado, ou o fenómeno pode começar e acabar com Donald Trump se Hillary Clinton vencer?
Eu e outros analistas estamos muito curiosos para perceber isso. O cantor de hip-hop Kanye West diz que vai candidatar-se à Presidência em 2020. É difícil antecipar se ele vai conseguir criar tanto barulho à sua volta como Donald Trump conseguiu. Antes de mais temos de esperar para ver se Trump vence na terça-feira. Ainda pensamos que esse cenário é menos provável do que uma vitória de Hillary Clinton, mas a verdade é que é mais provável agora do que no final de Outubro.
Se ele não ganhar, a questão será perceber se as pessoas vão olhar para isto como um aviso e se vão voltar a valorizar os aspectos mais tradicionais da política. Será que os políticos mais tradicionais vão adoptar as ferramentas que Donald Trump tem explorado, usando-as de uma forma mais responsável? Ou vão aparecer mais pessoas a olhar para o processo eleitoral apenas como mais um espectáculo como outro qualquer e a tentar reunir uma multidão furiosa? São tudo questões que ainda não conseguimos antecipar, e a resposta vai depender muito da forma como o próximo Presidente lidar com o enorme descontentamento popular a que temos assistido de forma inquestionável nestas eleições.
Há muitas pessoas que olham de longe para os apoiantes de Donald Trump e pouco mais vêem do que um movimento racista. O que move o eleitorado do candidato do Partido Republicano?
É errado dizer-se que todos os apoiantes de Donald Trump são racistas. É até mais correcto dizer-se que só uma minoria dos seus apoiantes olha para a questão racial como uma das suas prioridades no contexto do país. É claro que há entre eles alguns supremacistas brancos, como David Duke, mas a maioria sente que perdeu a sua posição privilegiada na sociedade americana, em grande parte por causa de uma crescente diversidade demográfica. Já não é suficente ser-se branco para se ter uma vantagem na obtenção de um posto de trabalho, por exemplo. Eles sentem-se ofendidos por causa disso, mas não necessariamente por terem motivações racistas explícitas. Como sentem que perderam o seu prestígio, acabam por apoiar um candidato que tem, em muitos casos, uma agenda racista.
Temos de levar em conta a terrível condição social de muitas pessoas que costumavam ter empregos em fábricas, principalmente entre as duas costas do país, e que perderam o emprego. É verdade que muitos deles conseguiram arranjar um novo emprego, mas estão a ganhar entre 60% e 80% do que ganhavam antes, e isso causa muito sofrimento. A taxa de mortalidade tem aumentado entre os americanos brancos na faixa dos 45-50 anos de idade. Há um problema bem real e muito grave, que o Governo tem negligenciado e que deu origem a toda esta raiva.
Parte desse descontentamento também se verificou no Partido Democrata, na figura do senador Bernie Sanders. Pensa que os antigos apoiantes de Sanders vão acabar por ficar ao lado de Hillary Clinton?
Temos assistido a respostas mistas. Alguns vão votar em Hillary Clinton para tentarem impedir a eleição de Donald Trump, outros não vão sequer votar, outros ainda vão votar em outros candidatos, como Gary Johnson do Partido Libertário ou Jill Stein dos Verdes. Há uma falta de entusiasmo à volta de Hillary Clinton entre esses apoiantes mais fervorosos de Bernie Sanders, mas acreditamos que uns 90% dos que votaram no senador nas primárias do Partido Democrata vão votar em Hillary Clinton.
As notícias que surgiram nos últimos dias sobre o inquérito do FBI aos e-mails de Hillary Clinton têm prejudicado muito a sua candidatura?
A vitória de Clinton ainda parecer ser mais provável do que a vitória de Donald Trump, mas essa probabilidade diminuiu de forma substancial, tanto a nível nacional como em muitos estados decisivos. Mas esta campanha tem sido atípica. Apesar dessa aproximação entre os dois, Hillary Clinton aumentou a vantagem na Pensilvânia, que tradicionalmente vota democrata, e a mais recente sondagem na Georgia mostra-nos um empate técnico, num estado tradicionalmente republicano. Temos assistido a uma grande volatilidade, em grande parte entre os eleitores indecisos. Donald Trump tem-se mantido estável entre os 39% e os 42%, e Hillary Clinton entre os 45% e os 49%. Não têm ocorrido grandes mudanças entre o eleitorado de base dos dois candidatos, mas sim entre os indecisos, que um dia dizem que vão votar em Donald Trump e no outro dizem que vão votar em Hillary Clinton. E são estes eleitores que poderão ser mais influenciados por uma notícia inesperada nos últimos dias das eleições.
Mesmo em menor número, o maior entusiasmo entre os eleitores de Donald Trump pode fazer a diferença se Hillary Clinton não conseguir motivar a esmagadora maioria dos seus eleitores a sair de casa no dia das eleições?
Os apoiantes de Donald Trump são leais, estão entusiasmados, e é por isso que Hillary Clinton tem apostado muito nestes últimos tempos em passar a mensagem de que é preciso votar, e activar mecanismos para garantir que isso vai acontecer. Há voluntários no terreno que se disponibilizam a levar as pessoas até às secções de voto, por exemplo.
Clinton tem a apoiá-la no terreno personalidades como Bill Clinton, Barack Obama e Michelle Obama, todos com taxas de popularidade elevadas, mas a campanha de Donald Trump parece centrar-se apenas nele. É mais um sinal da tal possível mudança na configuração das campanhas?
Donald Trump tem conseguido o apoio das pessoas que estão contra os políticos tradicionais, eleitores que acham que eles não responderam às suas necessidades, quer estejam certos ou errados nessa análise. A história escondida desta campanha é o mau trabalho que os democratas têm feito nas últimas décadas para transmitirem o impacto das suas propostas. Está provado que houve decisões que nos salvaram de uma recessão semelhante à Grande Depressão, e que a economia cresce mais rapidamente do que em qualquer outra época desde a década de 1970. Mas muitas das pessoas que estão desiludidas com o sistema não acreditam nas estatísticas do Governo e também ainda não sentiram essa evolução nos bolsos. Neste cenário, o apoio de um Presidente como Barack Obama é um ponto negativo para atrair essas pessoas. Donald Trump está a ter uma prestação um pouco melhor entre os independentes, que muito provavelmente estão no grupo dos eleitores indecisos.
Como avalia a forma como os media norte-americanos têm acompanhado estas eleições? Donald Trump tem alguma razão quando se queixa?
Ao contrário do que ele próprio diz, Donald Trump deve estar muito satisfeito com o tipo de cobertura dos grandes grupos de media. Em particular durante as eleições primárias, os media trataram Donald Trump como nunca tinham tratado nenhum outro candidato na história das eleições com cobertura televisiva. Durante semanas a fio abriram-lhe as portas dos programas mais prestigiados, nos períodos de maior audiência. Deixaram que ele entrasse em directo por telefone, algo que nunca tinha sido permitido a nenhum outro candidato.
Os media não desempenharam um papel responsável. Estão muito focados nas personalidades, e não contrariam o facto de que no ambiente actual a opinião política já não interessa tanto como mostrar o valor de entretenimento de um candidato. Ame-se ou odeie-se, a verdade é que muitas pessoas gostam de ver Donald Trump. Os media têm feito um mau trabalho, mas não têm sido injustos com Donald Trump.
A falta de confiança nos media ditos tradicionais leva a que as pessoas procurem espaços que apenas reforcem as suas opiniões?
Há muitos indicadores que mostram isso. Há cada vez mais pessoas a procurar sites, jornais, televisões ou estações de rádio que reforçam as suas opiniões e não que as desafiem. Como no actual cenário dos media há milhares de fontes de notícias, as pessoas procuram as que reflectem a sua visão do mundo. Isto faz com que ninguém contradiga as suas suposições, o que tende a endurecer essas suposições.
Na Grécia, por exemplo, há pessoas que têm páginas no Facebook sobre Hillary Clinton, a dizer que o FBI já encontrou tudo o que havia para encontrar e que há uma conspiração para manter tudo em silêncio. Nada disto é verdade, mas assim que conseguem pôr um link no site Breitbart News e têm várias centenas de milhares de pessoas a entrarem nessa página do Facebook, podem vender publicidade, podem monetizar esse seu investimento na mentira. É um desafio para a democracia, para o sistema de educação e também para os media, que têm de acompanhar esse ritmo de captação de receitas e, ao mesmo tempo, tentar manter-se fiéis às suas ideias fundamentais.
As empresas de media vão ter de reflectir sobre isso, ou a pressão das audiências e das visualizações para garantir a viabilidade financeira é um obstáculo intransponível?
Podem ser feitos pequenos ajustamentos. Por exemplo, Donald Trump diz muitas coisas que não são verdade. Em Setembro do ano passado, durante as primárias, estações como a CNN repetiam uma afirmação dele e logo a seguir diziam que essa afirmação era falsa. Mas neste momento a confiança dos cidadãos nos media está num nível muito, muito baixo. Se a visão do mundo de muitas pessoas está completamente afastada do respeito por todas as instituições, o facto de [o jornalista da CNN] Wolf Blitzer dizer que Donald Trump mentiu sobre a sua posição em relação à guerra no Iraque não muda quase nada.
No ponto mais alto de confiança nas instituições, em 1965, 82% dos americanos confiavam que o Governo fazia o que era mais certo sempre ou na maioria das vezes; em Junho de 2015, apenas 19% responderam a mesma coisa e 81% disseram que não confiam no Governo. Estes dados mostram que a erosão no panorama político americano começou há muito tempo, e não com Donald Trump.
Vemos isso também na União Europeia, quando apenas os cidadãos da Dinamarca, da Suécia e da Finlândia acreditam hoje mais na União Europeia do que aquando da sua adesão. Há uma crise de confiança nas instituições em todo o mundo ocidental, e muita dessa desconfiança está relacionada com a educação. As pessoas que apoiam Donald Trump e que apoiaram o "Brexit", por exemplo, olham para o comércio global e sentem que não estão a ser beneficiadas. Vêem outros a ser beneficiados, mas sentem-se profundamente prejudicados. E, em muitos casos, têm razão, porque os governos da União Europeia e dos Estados Unidos falharam na redistribuição da economia que cresceu com o comércio mundial.