Ericeira: De vila piscatória a meca do surf

Precedendo a Web Summit de Lisboa, a Ericeira recebe este fim de semana a Surf Summit, dedicada a 200 CEOs e investidores das indústrias tecnológicas que querem fazer surf, ter aulas de surf, ouvir palestras sobre surf. Fomos ver como uma vila piscatória e balnear se transformou na meca do surf.

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A nova era começou nos Coxos. Nesta onda que corre fina e geométrica ao longo da Baía dos Dois Irmãos, e que se atira, “comprida e perigosa”, segundo a sua biografia oficial, sobre o contorno da costa, que desafia e imita. É uma onda selvagem, que cria tubos de vários segundos e se forma no recife e no declive ligeiro da enseada, uma onda perfeita. Selvagem e perfeita porque permanece igual a si própria desde há milhares de anos, sublime e incorruptível. É a única assim em todo o mundo industrializado, explica José Gregório, que se considera o pai da Reserva Mundial de Surf da Ericeira. “Não há mais nenhuma na Europa nem em lugar nenhum”. Só tem rivais em regiões desabitadas.

As construções junto ao litoral, as modificações nos areais e nos fundos, toda a intervenção humana altera irreversivelmente a morfologia das ondas. Esta sobrevivera, no seu esplendor pré-histórico, mas até quando?

O surfista José Gregório, natural da Nazaré, que fora três vezes campeão nacional e iniciava uma nova carreira de empresário do surf, teve uma ideia. “A onda dos Coxos é a única que aparece no Top 100 mundial. É o sonho de qualquer surfista, pela sua consistência e perfeição, o seu fundo, os seus tubos”, diz ele. Falou com Hélder Sousa Silva, então vereador (hoje presidente) da Câmara Municipal de Mafra, e, através da Associação dos Amigos da Baía dos Coxos, apresentaram, à Organização Não Governamental americana Save the Waves Coalition, uma candidatura a Reserva Mundial de Surf.

O galardão, que tem em conta a qualidade das ondas de uma região, mas também as características ambientais e a sua preservação, a tradição e cultura surfista local, a motivação e envolvimento da comunidade e o comprometimento das autoridades em proteger a Natureza, foi, em Outubro de 2011, atribuído à Ericeira.

“O nosso objectivo era proteger e preservar as ondas da costa da Ericeira”, explica José Gregório. “Percebi que tínhamos condições únicas para a prática deste desporto, e que isso era um bem que não podíamos perder. O surf precisa de condições naturais que o Homem não consegue reproduzir. Temos aqui essas condições, de forma privilegiada, o que pode atrair gente de todo o mundo. Havia que proteger isso”.

A reserva Mundial de Surf da Ericeira, a única da Europa, abrange 4 quilómetros de costa, entre as praias da Empa e de São Lourenço, e inclui sete ondas de classe mundial: Pedra Branca, Reef, Ribeira d’Ilhas, Cave, Crazy Left, Coxos e São Lourenço.

A primeira praia a que foi atribuída a classificação de reserva mundial foi Malibu, na Califórnia, em 2010. Logo a seguir foi a Ericeira, e depois, Manly Beach, na Austrália, Santa Cruz, na Califórnia, Huanchaco, no Peru, Baía de Todos Santos, no México, Punta de Lobos, no Chile, e Gold Coast, na Austrália.

Ser um dos únicos oito locais no mundo com esta classificação foi um poderoso trunfo de marketing. Desde então, surfistas de todo o planeta começaram a procurar as famosas ondas da Reserva Mundial. O surf é um desporto em expansão por todo o lado. Cada vez mais popular no Norte da Europa, onde as novas gerações de profissionais independentes e bem-sucedidos vêem no surf um sinal do seu estatuto de liberdade, ideologia ambientalista, estilo de vida nómada e ligado à Natureza.

“O surf é um desporto ‘bem’, é o novo ténis”, diz Alexandre Grilo, proprietário de uma empresa que gere vários surf camps. “O surf tem crescido muito, e tem muito ainda para crescer”, diz José Gregório.

Convertidos à nova vaga

A Ericeira, que até então era conhecida como vila piscatória e balnear, encheu-se de surfistas, portugueses e estrangeiros. A praia de Ribeira d’Ilhas, onde antes havia um pequeno bar de madeira, frequentado pelos pioneiros do surf, tem agora um restaurante-café gigantesco, todo em madeira, com pufs no deck frontal, música, espaço para praticar skate, instalações para feiras e campeonatos de surf, duas escolas de surf. E muita gente, não importa a hora ou época do ano.

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A sul da vila, a praia da Foz do Lizandro está também cheia de bares, restaurantes, escolas de surf. O centro da Ericeira, um emaranhado de ruelas de traça original bem conservada, com casas brancas e azuis numa arriba junto ao mar, tem, no Verão, tantos turistas estrangeiros como Albufeira ou Lagos. As ruas e praças estão repletas de esplanadas, pequenas lojas de artigos de surf, ou de marcas alternativas de roupa e adereços. Os restaurantes especializados em pratos de peixe e marisco mantêm a qualidade excepcional, mas os preços subiram, adaptados à nova clientela, os hostels ou estabelecimentos de alojamento local proliferam por toda a zona, auto-caravanas de matrículas francesa, italiana, alemã ou da Escandinávia estacionam no alto das falésias junto ao mar.

À noite, barulhentos grupos de jovens de nacionalidades variadas enchem os bares das ruelas, como o Tubo, e as próprias ruelas junto aos bares. Vestem-se ao estilo “surfista”, que já não consiste nas havainas e calções baratos, mas numa exuberância de farpelas só aparentemente casuais, vendidas a preços de luxo pelas marcas que dominam o universo do surf, Quiksilver, Billabong, Rip Curl ou Lightning Bolt.

Os bares estão decorados com motivos de surf, pejados de pranchas no tecto e fotografias e pinturas de ondas, e mesmo os mais antigos, ligados a outras estéticas, como o Hemingway, ou o Ouriço - a discoteca mais antiga do país - converteram-se à nova vaga.

Toda esta mudança em menos de cinco anos. Com mais intensidade nos últimos dois, em que a afluência cresceu num ritmo que a muitos está a afigurar-se como assustador: já não há, durante o Verão, lugar nas praias, nem no mar, para fazer surf. Os portugueses parecem ter sido expulsos da vila que durante décadas foi vista como local de refúgio, descanso e “vilegiatura medicinal”, por ser a praia com mais iodo e mais salinidade, ideais, segundo os médicos do século XIX referidos por Ramalho Ortigão nas Praias de Portugal, para a cura de quase todas as doenças.

O surf que vem do Norte

“Tenho a impressão de que as famílias de Lisboa deixaram de vir para a Ericeira”, diz Alexandre Grilo, 37 anos, director e proprietário do surf camp Lapoint. “Agora só vêm estrangeiros”. Ele, que é surfista desde a adolescência, e chegou a ser profissional, é um dos empresários que agora se queixam do excesso de escolas de surf em funcionamento e do crescimento desorganizado.

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A pequena vila piscatória foi-se adaptando à prática de surf: actualmente, as várias estruturas ligadas ao turismo vocacionado para este desporto já dá emprego a três mil pessoas, proliferam "hostels" e escolas de surf

A sua empresa representa porém o modelo de desenvolvimento que tem sido adoptado, e do qual, até agora, tem beneficiado. O próprio presidente da Câmara de Mafra aponta-a como exemplo a seguir.

O surf camp Lapoint, situado entre a praia do Sul e a da Foz do Lizandro, é um compound que inclui quartos de camaratas, com capacidade para 46 hóspedes (120 se contarmos com as outras casas pertencentes ao campo), salas de convívio, espaço de refeições, piscina, etc. Possui também uma escola de surf, um restaurante e um bar de praia. E parcerias com vários restaurantes e cafés e outros prestadores de serviços por toda a Ericeira e arredores, que permitem vender pacotes completos aos clientes, além de programas extra, como provas de vinhos ou passeios a Sintra, Mafra ou Lisboa.

No recinto comum do Lapoint, jovens descalços jogam pinguepongue ou sentam-se em grupos nas cadeiras feitas de paletes. São todos estrangeiros, quase todos do Norte da Europa. Os funcionários do campo são suecos ou noruegueses (o sócio de Alexandre é sueco). Num quadro de ardósia pendurado na parede alguém escreveu: Swell [dimensão das ondas]: 2-4 ft @ 12.5. Wind: 9 kph. Tide: high: 14.15, low: 8:04. Weather: 18ºC. Breakfast: 9-10.

As empregadas, uma sueca, outra norueguesa, arrumam as pranchas e os equipamentos, porque está a chegar uma nova vaga de hóspedes. Chegam sempre ao domingo, para ficar geralmente uma semana. Compram, por um preço entre os 500 e os 700 euros, um pacote com tudo incluído, desde as aulas de surf e aluguer de fatos e pranchas até aos transportes e às refeições. Quase sempre vêm sozinhos, não se conhecem, mas depois fazem tudo juntos, "tornam-se uma família”, explica Alexandre.

O mesmo modelo de “turismo organizado” vigora nos outros surf camps da empresa, que começou por ser uma escola em Marrocos, criada por Alexandre, em 2001, e se transformou mais ou menos no que é hoje em 2006, com a entrada do outro sócio. Desde então, o projecto não pára de crescer. Detêm já doze campos como este, em Marrocos, Bali (Indonésia), Sri Lanka, Austrália, Costa Rica, etc. E estão a construir um na costa alentejana e outro aqui, na Ericeira.

A clientela vem predominantemente da Escandinávia, e, segundo Alexandre, tem, de um modo geral, um poder de compra acima da média. “Há alguns anos, o surfista típico era um jovem com pouco dinheiro, com hábitos um pouco marginais. Hoje, toda a gente faz surf. Os meus clientes são médicos ou engenheiros, e o surf tornou-se um sinal de estatuto”.

A Reserva é um fantasma

O Presidente da Camara de Mafra, Hélder Sousa Silva, considera-se o protagonista da grande transformação.  “Vejo a Ericeira como uma surf city”, diz ele, definindo logo todo um conceito e uma orientação. Empenhou-se desde o início na candidatura à reserva Mundial, e tem vindo a desenvolver um trabalho orientado para atrair turistas ligados ao surf. “A Ericeira tem condições únicas para a prática do surf. Carcavelos pode ter uma praia grande, mas as suas ondas não chegam aos calcanhares das nossas. Temos 7 ondas de qualidade única. É a nossa galinha dos ovos de ouro”.

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Parece não haver dúvidas de que a Reserva funcionou bem como instrumento de marketing. Mas naquele que é o objectivo expresso da ONG que atribui a classificação - proteger e preservar as condições naturais - pouco se tem avançado, pelo menos de forma institucional.

O estatuto de Reserva de Surf pode ser mundial, mas não tem qualquer expressão na lei portuguesa. Em toda a regulamentação sobre parques e reservas naturais, ou zonas protegidas, não existe qualquer referência a reservas específicas para a prática de um determinado desporto. Ou seja, a existência de boas ondas para o surf não é um critério para a criação de uma reserva natural.

Na concepção de José Gregório, o objectivo da Reserva era transpor os seus pressupostos para a legislação local e nacional. “Queríamos que as regras definidas pela Save the Waves passassem a ter força de lei em Portugal, para que funcionassem de facto como forma de impedir a construção desenfreada e a destruição da costa. Isso era um trabalho que teria de ser feito pela Câmara, mas que não avançou como gostaríamos”.

O Presidente da Câmara reconhece que a Reserva, no país, é uma espécie de fantasma legal. Mas garante que, mesmo assim, tem feito tudo o que é possível para proteger as condições naturais do surf. Trabalho que, admite também, pode regredir radicalmente, caso outro partido levasse a melhor nas eleições autárquicas do próximo ano.

Atribuir à Reserva força de lei não é fácil. Mas estão a ser realizados estudos de fauna e flora, registos e videografia dos fundos marinhos, para, de certa forma, construir uma argumentação que leve ao reconhecimento de uma zona merecedora de protecção.

Além disso, está em criação uma Conselho Municipal de Gestão da Reserva, onde terão assento os clubes e associações locais ligados ao surf, que terá competências de planeamento, gestão e fiscalização da Reserva, embora a título consultivo.

Novos nómadas

Até agora, é verdade que a orla costeira correspondente à área da Reserva tem sido exemplarmente preservada. Não há construções junto ao mar. Todas as estruturas, desde escadas de acesso até aos bares de praia, é feito em madeira e materiais naturais, e harmonizado com a paisagem. Pode percorrer-se a pé, durante quilómetros, a linha das praias ou das placas de recife, os caminhos das falésias, as matas debruçadas sobre o mar ou os planaltos rochosos varridos pelo vento.

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Sobre a pequena vila piscatória já Ramalho Ortigão lembrava ser local de refúgio, descanso e “vilegiatura medicinal”

Mas a calamidade urbanística está muito próxima, quer avancemos para o interior, para norte ou para sul. Os edifícios do boom dos anos 80 foram construídos sem qualquer lógica, qualidade, bom gosto ou bom senso. Aglomeram-se em bairros horríveis, sem arruamentos, com barracas pelo meio, a chaminé de uma padaria industrial, em pleno Bairro dos Pescadores, emite todos os dias uma fumarada negra e espessa que cobre todo o norte da vila com uma nuvem mal-cheirosa e intoxicante.

O autarca garante que tudo está a ser resolvido e corrigido, mas é óbvia a sua incapacidade, perante a rede de interesses e a mentalidade de enriquecimento fácil e rápido que domina parte das novas “classes dirigentes” da vila.

Se a economia começar a crescer, tudo se vai compondo, acredita Hélder Silva. Identificadas que foram as condições naturais como um capital de grande valor, havia agora que tornar a vila conhecida e atractiva para os praticantes de surf. “O que eu quero é que quando se pensa em economia do surf, se pense na Ericeira”, explica o autarca eleito pelo PSD. “O surf já dá, aqui, emprego a 3 mil pessoas”.

A convicção é a de que, atraindo surfistas em grandes quantidades, se desenvolve a economia directa e indirectamente. Ganham as escolas de surf, os surf camps, as lojas de equipamento de surf e os shapers de pranchas, mas também os restaurantes, o comércio e a pesca. Com este pressuposto: “O típico turista do surf da Ericeira tem entre 20 e 40 anos, educação superior, um nível de vida que lhe permite fazer pelo menos uma refeição por dia num restaurante, e consumir outros bens”.

Além disso, o típico surfista da Ericeira tende a ser um profissional livre, muitas vezes ligado às indústrias tecnológicas, a quem basta um laptop para trabalhar. Preenchendo o perfil desses “novos nómadas” ligados ao software e às indústrias criativas, o surfista-tipo do futuro na Ericeira poderia vir em qualquer época do ano, resolvendo assim aquele que ainda é o principal problema do turismo da região: a sazonalidade.

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O número de turistas aumentou exponencialmente nos últimos dois ou três anos, bem como o número de unidades de Alojamento Local (AL). Segundo dados da autarquia, há hoje 518 registos de estabelecimentos de AL no concelho de Mafra, correspondentes a 2000 camas. Destes, 60% situam-se na Ericeira, e mais de metade são dedicados ao surf. Há 5 anos, havia menos de 20 estabelecimentos de AL.

Vários outros, alguns de grande dimensão, estão a ser construídos, com apoio da Câmara. Sempre com uma componente de ligação à natureza, e tendencialmente voltados para o modelo inclusivo de turismo, funcionando por pacotes de viagens com tudo incluído. Essa é a forma mais adequada ao tipo de turista que procura a Ericeira, considera o presidente da Câmara.

“O driver deve estar nos investidores e no mercado”, explica ele. “As grandes marcas do surf já estão instaladas na Ericeira, e são elas que conduzem todo o desenvolvimento”. A Quiksilver, por exemplo, construiu uma mega-loja, numa área de 5 mil m2 em frente à praia do Matadouro. Inclui uma pista de skate de 3 mil m2, bar e esplanada, loja de dois andares com 600 m2, escola de surf patrocinada pelo decano dos surfistas portugueses, Tiago Pires.

A Quiksilver, o maior fabricante mundial de equipamentos de surf, skate e ski, só tem lojas destas em locais icónicos. Uma de materiais de ski em Chamonix, uma de skate em Barcelona. Esta, de surf, localiza-se na Ericeira. O director-geral é José Gregório, o “pai” da Reserva Mundial.

300 surfistas dentro de água

Em Ribeira d’Ilhas, cujo bar de praia original, privado, foi apropriado pela Câmara (num processo ainda em tribunal) há sediadas duas escolas de surf. Um vaivém de rapazes e raparigas franceses e alemães, juntamente com algumas famílias norueguesas, mantém ocupados os instrutores, entregando pranchas e fatos para a aula que vai começar. Conjuntos de quatro ou cinco alunos vão para a água de cada vez, número considerado ideal por Ulisses Reis, o dono de uma das escolas, a Blue Ocean. Mas no Verão os grupos podem atingir 20 ou 30 pessoas, e chegam a estar na água, ao mesmo tempo, na mesma praia, 300 surfistas. O que é incorrecto e até perigoso.

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O problema, segundo Ulisses, 53 anos, fundador da primeira escola de surf da Ericeira, é que há escolas a mais. Neste momento, são mais de 40, diz ele, embora oficialmente, segundo a Câmara, sejam pouco mais de 20. “Só aqui, nesta praia, há 3, mais 6 outsiders”. Os outsiders são escolas improvisadas, muitas vezes dirigidas por estrangeiros, que chegam com uma carrinha, operam por uns meses e vão embora.

Outro problema, segundo Ulisses Reis, é o tipo de turistas que está a invadir a Ericeira. “Não têm dinheiro”, queixa-se. Os portugueses ainda têm menos, pelo que 99% dos seus clientes são hoje estrangeiros. Vêm em grande número, enchendo a sua escola e o seu hostel, onde um quarto pode custar 120 euros por noite. Este ano, teve um aumento de 30% em número de clientes, em relação ao ano passado.

“Mas a maioria dos turistas não tem dinheiro para comprar outros serviços que poderíamos oferecer. São pessoas que se instalam numa camarata a 15 euros por noite, ou mesmo 7 euros, fazem compras no supermercado e comem no quarto. Nem frequentam os restaurantes”.

A ânsia de ganhar dinheiro e o descontrolo está a criar um modelo errado, que rapidamente vai atingir o ponto de saturação, considera Ulisses. “As praias da Ericeira são excelentes para surfistas mais avançados, porque são ondas de reef, sem areia. Mas não para principiantes. E são praias pequenas. A Ericeira devia especializar-se numa clientela mais diferenciada, deixando o turismo dos mais novos e com menor poder de compra para destinos como Peniche, onde as praias de areia são extensas, embora as ondas sejam de menor qualidade”.

Na opinião de Ulisses, para incentivar este tipo de turismo mais rico, deveria ser criada uma marina e campos de golfe. “Os pacotes de 200 euros com tudo incluído deviam acabar. Tal como as aulas a 5 euros. As minhas custam 25”.

Ricardo Pires, irmão do famoso Tiago Pires e responsável pela escola de Surf com o seu nome, também é contra a proliferação de escolas, muitas das quais não levam a sério o surf como desporto. “Nós não procuramos os clientes que compram um pacote de férias, com tudo incluído, e que vêm para ter uma experiência, não para aprender surf. A esmagadora maioria dos nossos clientes são portugueses, e não nos surgem por essa via”.

Ricardo admite que a massificação prejudica a sua escola. “Os nossos preços são mais altos, porque os nossos professores são surfistas experientes, temos aulas teóricas, etc. Não podemos competir com escolas que não têm os mesmos requisitos”.

As licenças para abrir escolas, que são atribuídas pela capitania de Cascais, deviam ser racionadas, ou canceladas. Ulisses Reis e Alexandre Grilo também pensam assim. Alexandre propõe mesmo que fosse imposta uma taxa de 5 mil euros para cada licença que permite operar numa praia. Esse dinheiro poderia ser usado para contratar nadadores-salvadores todo o ano, e limitaria o número de escolas.

“E talvez conseguíssemos atrair de novo para cá os bons surfistas, e os grandes campeonatos”, que têm sido realizados em Peniche e Cascais.

E a gente do mar

No centro da Ericeira, a praia dos Pescadores não tem surfistas. António Franco Alberto, mais conhecido como Toni Porras, 47 anos, está a arrumar corvinas e a amanhar polvos no seu casinhoto de pescador. Queixa-se de que não consegue  todos os dias meter ao mar o seu Toni Fernando, o barco que já pertenceu ao seu pai, porque as obras no porto deixaram areia e pedras na rampa. “Aquilo arromba os barcos por baixo. Há muito peixe, mas nós não conseguimos sair, porque o porto não tem condições”.

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Na opinião de Toni Porras, o boom do surf e do turismo não trouxe nenhum beneficio aos pescadores. “Há agora muito menos barcos do que há dez anos. Os surfistas, a mim, não me deram nada. Mas se acabarem com a pesca, a vila vai perder todo o seu encanto, e ninguém mais vai querer vir cá”.

O pai de António, Francisco Alberto (“Chico Porras, com muita honra”) passa os dias com os amigos pescadores reformados nos bancos em frente à Igreja de Santo António, ou da Praia da Baleia. No seu tempo, andou no bacalhau, na Noruega, e emigrou para a Holanda para poder comprar o barco. “Crise? Isso é mentira. Há muito peixe. São todos uns mentirosos”, diz ele, que se lembra da fome na Ericeira.

A alcunha deve-a a um desabafo que teve um dia, ainda criança. Como era muito pobre, um doutor da terra levou-o para casa para lhe dar de comer. A empregada serviu-lhe uma sopa na cozinha, mas Francisco, com 7 anos, viu que, para a família, cozinhavam galinha. Disse: “Têm ali galinha e só me dão sopa. Porra!”. Tornou-se motivo de troça na vila, e ficou com a alcunha.

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Há muito peixe, mas nós não conseguimos sair, porque o porto não tem condições”. António Franco Alberto, pescador

“Essa gente do surf não tem nada a ver com a gente do mar”, diz ele. “A nós, não nos dão nada. É preciso reparar o porto de pesca, ninguém quer saber”.

São dois mundos estanques, o dos surfistas que enchem as praias e as esplanadas, e o dos velhos pescadores a conversarem nos bancos em frente ao mar, sobre futebol, política e as obras do porto. Joel Pereira, de alcunha o Papu, é um caso único de pertença aos dois mundos.

Abriu uma escola de surf, a Activity, mas aos 33 anos decidiu investir 50 mil euros num barco e dedicar-se também à pesca. “Porque o surf é sazonal. Estava 4 ou 5 meses parado”. Joel também acha que deveria alargar-se o porto de pesca e, em simultâneo abrir uma marina na Ericeira, “que tem condições muito superiores a Cascais”, para elevar o nível económico dos turistas que chegam.

Além do barco de pesca profissional, o Papu, Joel tem outro que aluga para pesca desportiva com turistas. As carrinhas da escola de surf carregam o peixe de um e outro. Entre as duas actividades, para Joel, há uma simbiose. Mas só ele pensa assim.

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Deveria alargar-se o porto de pesca e abrir uma marina na Ericeira, que tem condições muito superiores a Cascais Joel Pereira, surfista e pescador

José dos Santos Caré escreveu livros sobre a história da pesca na Ericeira. “Chegou a haver aqui grandes armações da pesca da sardinha, mas depois tudo isso acabou, com a chegada da pesca a vapor. Ficámos só com a pesca artesanal”, diz ele, que tem 92 anos e vive junto ao Jogo da Bola, a praça principal da Ericeira. Depois de ter assistido a vários naufrágios do muro alto da praia dos Pescadores, Caré foi um dos 18 homens (o único ainda vivo) a serem recebidos pelo ministro de Salazar, Arantes de Oliveira, em 1958. Nessa audiência foi-lhes prometido o molhe do porto de pesca, que começou a ser construído em 1973. A segunda fase da obra foi concluída agora, em Outubro de 2016. Ficou mal feita e não se sabe quando ocorrerá a terceira fase. Dois ritmos que dividem dois mundos.

José Caré lembra-se dos primeiros surfistas, estrangeiros, que apareceram na Ericeira, em 1978. Com a sua câmara Super8 filmou-os a eles e ao espanto dos pescadores ao verem as cabeças dos australianos surgirem ao longe, no meio da espuma. “Ficaram em choque porque, para eles, um homem sozinho no mar àquela distância só podia significar um naufrágio. Quando viram o que era, ouvi um deles dizer: ‘Olha, também quero aprender a fugir do barco de trotinete’”.