Sócrates – Ensaio sobre a coragem
Sócrates, ao remeter ao prelo o texto que instruiu, provocou-nos, tanto quanto Charlie Chaplin o fazia no final dos seus filmes – deixou tudo em aberto.
José Sócrates apresentou, na passada semana, o seu mais recente livro – O Dom Profano - Considerações sore o carisma. Como todo o que acontece com Sócrates, este livro não nos chega de forma simples ou furtiva. Antecipam-no considerações sobre a dimensão e a criatividade do seu autor, a sua sustentação enquanto pensador ou investigador. Conheço Sócrates e esboço um sorriso.
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José Sócrates apresentou, na passada semana, o seu mais recente livro – O Dom Profano - Considerações sore o carisma. Como todo o que acontece com Sócrates, este livro não nos chega de forma simples ou furtiva. Antecipam-no considerações sobre a dimensão e a criatividade do seu autor, a sua sustentação enquanto pensador ou investigador. Conheço Sócrates e esboço um sorriso.
Lido o livro, mais, lido o livro por mais vezes do que a primeira, não resta qualquer dúvida, a quem conhece minimamente Sócrates, que ele é um seu resultado, uma linha de pensamento resultante da sua vida de questionamento mais recente e de uma longa experiência. Mas há uma característica que atravessa todo o texto e que revela do íntimo mais profundo do pensamento do autor, a sua permanente obsessão pelo “medir e avançar”. Não se trata só de uma leitura transversal da lógica, como que entre a matemática e a filosofia, trata-se, em absoluto, de um preciosismo de formação, em que cada elemento construtivo tem o seu tempo, em que se vai agregando a uma linha estética por vezes arbitrária.
Sócrates é um dos quatro portugueses da democracia que tem a palavra “carisma” colada ao seu ser. Os outros são Mário Soares, Sá Carneiro e Cavaco Silva. O último é atingido no texto de Sócrates pelo seu ceder à tecnocracia, a sua imposição de distância e inacessibilidade que um tempo posterior a uma ditadura ainda concedia. Para Sócrates, Cavaco seria uma versão “normalizada” de carisma, um carisma na perspetiva da música pimba. Já Sá Carneiro se pode revelar através do mito. Não concretizou nem deixou uma marca assinalável por bons ou maus motivos, mas a sua transformação em estátua confere-lhe uma dimensão exacerbada perante o universo de seguidores de um certo ideal partidário.
Mário Soares transborda em todo o livro. Ele assume uma dimensão para-religiosa, uma consagração teologal, uma circunstância de messias. Mesmo que Sócrates o não refira, Soares está em quase todos os pontos de mira, em grande no retrato do estudo.
A pergunta que se pode colocar é a seguinte – e o livro não é sobre ele mesmo, o Sócrates que todos pensamos conhecer e que foi à procura de se compreender melhor?
Acho a pergunta pertinente e que faz sentido, mesmo que o autor a possa desconsiderar. Mas Sócrates ficou só a meio do caminho. Não foi tão longe quanto John Keegan o poderia habilitar, inserindo-se na tipificação estreita da liderança ou das normas básicas da estratégia militar; como também não foi tão longe quanto Nassir Ghaemi o poderia intrigar, fazendo, ainda, um ponto de estudo sobre as características psicológicas dos agentes relevantes das nossas Histórias.
Sócrates o que fez? Partindo de Weber desenvolve uma árvore de onde saem elementos de ponderação, quase um exame pormenorizado, que se podem aplicar a cada um dos grandes (ou pequenos) líderes que conhecemos.
Saindo de uma trilogia que implica o leitor em toda a obra, há um Homem que concretiza a História; há um Chefe que assume a matilha perante os desafios e, quase sempre, perante a ausência de futuro; há a circunstância, que ele consagra como “não-sei-quê”, que acrescenta, diz ele, ou que implode, digo eu, a racionalidade burocrática.
Se cada leitor deixar de lado o parti-pris, não é possível analisar Sócrates sem o encaixar, como uma luva, nos critérios de Weber que ele desmolda e até, por vezes, quer contrariar.
Sócrates, a dado passo, vai mais atrás na consagração do “carisma” como elemento fundador da Igreja Católica, esta que assentou praça em Roma. É uma bela análise, quase que uma luta entre S. Paulo e S. Pedro. Só que a sua consideração de que a ICAR carismática quase terá deixado de existir é uma tentativa para nos limitar, porque a década de 1960 fez regressar o tema, porque o afastamento dos crentes o coloca a cada dia.
Mas, sem querer provocar Sócrates quero dizer que há “outro carisma” que interessa hoje à ICAR - as transformações no conceito que João Paulo II ou Francisco conferiram, quais agentes pop star, realidades liderantes que contrastam com Bento XVI, uma espécie de burocrata fundador de um outro ideal de cristianismo.
A determinado passo o livro é-nos concedida uma citação do protagonista central – “chamaremos carisma à qualidade extraordinária (…) de um personagem que é, por assim dizer, dotado de forças ou características sobrenaturais ou sub-humanas ou, pelo menos, fora da vida quotidiana, inacessíveis ao comum dos mortais…”. É nesta consideração que muitos dos intelectuais de pacotilha recalcitrarão. Afinal Sócrates assume o número de elementos que por nós são eleitos ou renegados a quem o carisma, na sua elevação máxima que a coragem, concede e nos questiona.
Sócrates, ao remeter ao prelo o texto que instruiu, provocou-nos, tanto quanto Charlie Chaplin o fazia no final dos seus filmes – deixou tudo em aberto. Há uma nova dimensão que carece de estudo e que o autor revela ter condições para abordar como ninguém. Essa dimensão diz respeito ao carisma e aos média, a essa pergunta que, conhecendo o Homem enquanto ser falível e limitado, se coloca – poderá o tempo que vivemos continuar a permitir a coragem que se concede a cada líder e que é o sal central do carisma consagrado? Vavy Pacheco Borges, nos seus estudos sobre a arte da “Biografia” parece achar que não, e Sócrates o que achará?