Rabo de Peixe “vive de costas voltadas para o mar”

Livro da arquitecta Inês Vieira Rodrigues faz leitura crítica das intervenções urbanas numa das freguesias mais pobres do país, onde os hábitos e as características das famílias foram sempre ignoradas nas sucessivas intervenções.

Fotogaleria

Por que razão, após milhões e milhões de euros de investimentos em novas infra-estruturas, equipamentos e habitação social, Rabo de Peixe, freguesia da Ribeira Grande, no Norte da Ilha de São Miguel, continua a concitar uma imagem negativa, nas ilhas e no Continente? A pergunta levou a arquitecta Inês Vieira Rodrigues, autora de Rabo de Peixe - Sociedade e Forma Urbana, a analisar e a questionar a estratégia de desenvolvimento urbana seguida nesta localidade que, assinala, vive do mar, mas não conseguiu ainda deixar de olhar para ele como algo de negativo, pouco tendo aproveitado do seu potencial.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Por que razão, após milhões e milhões de euros de investimentos em novas infra-estruturas, equipamentos e habitação social, Rabo de Peixe, freguesia da Ribeira Grande, no Norte da Ilha de São Miguel, continua a concitar uma imagem negativa, nas ilhas e no Continente? A pergunta levou a arquitecta Inês Vieira Rodrigues, autora de Rabo de Peixe - Sociedade e Forma Urbana, a analisar e a questionar a estratégia de desenvolvimento urbana seguida nesta localidade que, assinala, vive do mar, mas não conseguiu ainda deixar de olhar para ele como algo de negativo, pouco tendo aproveitado do seu potencial.

Rabo de Peixe tem um bom porto, que serve uma importante comunidade piscatória. A pesca, vista ainda como um destino, mais do que uma escolha, define a identidade local, “mas a vila está de costas voltadas para o mar. Ali viver perto do mar ainda é pejorativo”, assinala a arquitecta que viveu em São Miguel desde 2000 e que desenvolveu na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto uma tese de mestrado sobre esta freguesia da Ribeira Grande. O boom turístico verificado com a abertura das rotas aéreas para os Açores já está a mexer, também, com as perspectivas de desenvolvimento da conhecida vila piscatória do norte da ilha , mas Inês Rodrigues acredita que quatro anos depois do trabalho de campo, o livro que a Caleidoscópio agora editou permanece muito actual nos problemas que aponta.

É na sede do concelho, no Arquipélago - Centro de Artes Contemporâneas, que este sábado Inês Rodrigues apresenta Rabo de Peixe - Sociedade e Forma Humana, uma leitura crítica sobre as intervenções realizadas nesta localidade que não conseguiram ainda inverter o ciclo de pobreza que afecta boa parte da população, e que se mantém como a sua imagem para o exterior. “Rabo de Peixe vai existindo na esfera pública como um fado que repete o mesmo refrão: a crise da pesca, as famílias disfuncionais, a pouca importância dada à escola, os sinais, como refere Inês Vieira Rodrigues, de uma identidade desviante, marcada pela negativa em relação a padrões considerados normais e positivos” escreve, no prefácio a este livro, o geógrafo Álvaro Domingues, que hoje o apresentará.

Ao longo de vários ciclos de investimentos público - e um deles no valor de 23 milhões de euros, levado a cabo com fundos do Espaço Económico Europeu, há alguns anos - os poderes públicos tentaram resolver alguns défices, como o do saneamento básico, equipamentos e o da habitação, mas na leitura de Inês Rodrigues, nem este foi plenamente resolvido nem foi dada atenção suficiente ao espaço público. Isto numa comunidade cujas sociabilidades se fazem, muito, na rua, usada como prolongamento do espaço doméstico, facto que não terá sido, diz, positivamente valorizado nos projectos levados a cabo.

Muitas das habitações sociais construídas não tiveram em conta os hábitos dos seus moradores e mesmo a estrutura dos agregados, muitos deles famílias numerosas, e o edificado acaba por ser modificado pelos próprios, numa tentativa de o adaptar a necessidades como, por exemplo, a de áreas para arrumo dos apetrechos de pesca, explica Inês Rodrigues. E as ruas, na parte mais densa da localidade, continuam essencialmente a servir essas ligações locais, fechando esta zona da vila, e os respectivos moradores, sobre si próprios, numa guetização assumida no próprio nome do projecto financiado pelos fundos do EEE - Velhos Guetos, Novas Centralidades - que, na perspectiva da arquitecta, não chegou a ser resolvida.    

Ao longo de quase 180 páginas, a arquitecta elenca um conjunto de críticas ao modelo demasiado centrado em obras infra-estruturais e menos na intervenção com impacto social - “tem havido, nesta vertente, vários projectos, falta é continuidade, nota - mas deixa também algumas propostas. Crítica da transformação do largo Padre António VIeira num parque de estacionamento, a arquitecta defendia, como outras vozes, que fossem devolvidas características de sociabilidade a este espaço importante, que, segundo o site da Junta de freguesia, vai sofrer obras de requalificação e reganhar um coreto, estrutura importante numa vila reconhecida pelas suas duas bandas filarmónicas e que desde 2001 tem uma escola de música com forte cariz de intervenção social, da qual nasceu a Orquestra Oi.Jazz.

Marginal desvalorizada

Terra de Pescadores, Rabo de Peixe ainda não conseguiu ultrapassar uma divisão, geográfica e social, inscrita na orografia da vila, onde a parte alta, mais a sul e afastada do mar, é vista como a área dos ricos, e a parte abaixo da estrada regional, encostada ao Atlântico, continua a ser - e a ser reconhecida como - a parte piscatória, e pobre, da localidade. E é esta imagem que Inês Vieira Rodrigues considera que tem de ser combatida, de várias formas. Que, em termos genéricos, implicam a transformação da via separadora numa “costura” do território, a inserção do espaço do porto no tecido urbano - e nos usos quotidianos - e uma mexida profunda na marginal que desemboca no molhe norte do porto.

Quando um pouco por todo o país, e há muitos anos, a frente de mar das zonas urbanas é valorizada - e às vezes hipervalorizada - na marginal de Rabo de Peixe a estrada está confinada entre as rochas batidas pelo mar e os muros de alguns terrenos que protegem - e escondem edifícios degradados e a actividade de construção naval que ainda se realiza nalguns deles. A arquitecta defende que seria possível encontrar fórmulas de garantir a protecção destes espaços dos galgamentos das ondas, frequentes na costa norte, que permitissem, também, a fruição pelos visitantes desta importante actividade que, em 2015, inspirou uma das obras de Vhils para o festival Walk&Talk Azores.

Olhar forasteiro sobre a comunidade, a arte urbana marca a paisagem de Rabo de Peixe desde 2012, ano da segunda edição deste festival que vem transformando vários pontos da Ilha de São Miguel numa galeria ao ar livre de fama mundial. E, curiosamente, na vila piscatória, os portugueses EME e Vhils, e o venezuelano Topo intervieram sempre nessa zona mais degradada, em frente ao mesmo mar que esteve na origem da instalação e crescimento desta comunidade mas que tarda em tornar-se num factor efectivo de desenvolvimento e desencravamento social dos seus actuais habitantes.

O PÚBLICO tentou, sem sucesso, contactar esta sexta-feira a Junta de Rabo de Peixe que, no seu site, aponta para os fundos do Portugal 2020 como uma nova oportunidade para concretizar acções capazes de transformar o tecido económico e social desta vila de quase dez mil habitantes. A freguesia vai ser a sede Grupo de Acção Costeira de São Miguel e Santa Maria - que vai gerir um pacote de verbas para aplicação em projectos de desenvolvimento local centrados na exploração da relação destes territórios com o mar. E, em Julho, a Junta enunciava, numa notícia da Lusa, alguns dos pontos principais da sua estratégia de desenvolvimento turístico, assente, precisamente, numa percepção de que o mar tem de ser mais do que o espaço de trabalho dos pescadores locais.

Com o mar no horizonte, a freguesia pretende apostar no turismo náutico, como alternativa de rendimento para os pescadores, e na gastronomia baseada nos produtos da pesca, como factores de atracção de visitantes, potenciando também um aumento da oferta de restauração e de alojamento local. E pretende criar o museu do pescador, para o qual, segundo o presidente da Junta, Jaime Vieira, um arquiteto já está a tratar da adaptação de um edifício. “Vamos apostar forte no museu do pescador, atendendo a que estamos numa comunidade piscatória que ultrapassa as mil pessoas. A ideia é que os visitantes possam conhecer o que se faz nas actividades ligadas ao mar, desde a história do início da pesca, os barcos e ferramentas utilizadas, e, também, mostrar a evolução da pesca em Rabo de Peixe. Tudo documentado com fotografias e artefactos”, explicou então, o autarca de Rabo de Peixe.