Do 11 de Setembro à anexação da Crimeia

O PÚBLICO antecipa um extracto do livro que Carlos Gaspar, investigador do IPRI e professor universitário, lança nesta sexta-feira, na Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (às 18h): O Pós-Guerra Fria é editado pela Tinta da China.

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Sean Adai/Reuters

É uma obra vasta, densa e completa sobre as fases da transição do sistema internacional bipolar para um sistema unipolar, onde a única superpotência continua a dispor de instrumentos políticos, económicos militares e culturais que, apesar do relativo declínio, ainda fazem dela o centro da ordem internacional. O fim da Guerra Fria aconteceu de forma pacífica, com a implosão da União Soviética, coisa rara na História das relações internacionais. Os Estados Unidos, que conseguiram liderar este processo, enfrentam agora um novo desafio: integrar a China na ordem internacional de forma pacífica. Será possível?

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É uma obra vasta, densa e completa sobre as fases da transição do sistema internacional bipolar para um sistema unipolar, onde a única superpotência continua a dispor de instrumentos políticos, económicos militares e culturais que, apesar do relativo declínio, ainda fazem dela o centro da ordem internacional. O fim da Guerra Fria aconteceu de forma pacífica, com a implosão da União Soviética, coisa rara na História das relações internacionais. Os Estados Unidos, que conseguiram liderar este processo, enfrentam agora um novo desafio: integrar a China na ordem internacional de forma pacífica. Será possível?

A leitura desta obra de mais de 400 páginas, tornada fácil pela elegância e a simplicidade da escrita, ajuda a olhar para os desafios que hoje se coloca às democracias aos olhos dos grandes acontecimentos que marcaram as últimas décadas. Precisamente quando as próprias democracias estão a ser abaladas internamente por movimentos populistas, de um lado e do outro do Atlântico.

“As crises sucessivas que marcam a evolução internacional desde o ‘11 de Setembro’ até à anexação da Crimeia mudam significativamente as balanças regionais e o quadro de referência em que as principais potências definem as suas estratégias, sem alterarem decisivamente a estrutura sistémica de distribuição do poder.

As crises iluminam o passado e tornam o futuro mais opaco. Nesse sentido, as percepções que condicionam os cálculos políticos são frequentemente distorcidas pela projecção linear das tendências conjunturalmente dominantes. É imprudente subestimar as consequências da crise financeira de Setembro de 2008, que limita substancialmente a capacidade dos Estados Unidos para manter a estabilidade internacional, mas também não é prudente concluir que se trata de uma viragem irreversível. Em 1974, na sequência da retirada norte-americana do Vietname, das divergências entre os aliados ocidentais sobre a detente e da crise do Watergate, o Bureau Político do Partido Comunista em Moscovo entendeu que a mudança na ‘correlação de forças’ justificava um ‘terceiro ciclo’ de expansão, que se traduziu na unificação do Vietname, na tentativa de tomada do poder em Portugal e na intervenção soviética e cubana em Angola. Porem, a previsão marxista sobre a ‘crise geral do capitalismo’ não se materializou, e os responsáveis soviéticos acabaram por ter de reconhecer os perigos da sua própria ‘sobre-extensão’ imperial: os seus sucessores, em Moscovo ou em Pequim, podem estar a cometer um erro idêntico. No mesmo sentido, a memória dos responsáveis ocidentais, paralisados pela crise europeia e internacional, parece não ir mais longe do que o fim da Guerra Fria e não regista o erro dos seus antecessores, que viram na expansão soviética de Saigão a Luanda e de Manágua a Cabul a confirmação da decadência ocidental e o advento da hegemonia russa.

Pela terceira vez desde o fim da Guerra Fria, os Estados Unidos mudam de estratégia: esse padrão errático é, em si mesmo, um factor de instabilidade internacional. A nova estratégia de retraimento começa por ser anunciada com a eleição presidencial de George W. Bush, mas o ‘11 de Setembro’ faz com que a administração republicana siga uma linha oposta de expansão imperial, até que as consequências estratégicas, políticas e económicas dessa viragem forçam o regresso à linha original, já com o Presidente Obama e uma administração democrata. Naturalmente, o recuo dos Estados Unidos significa um aumento perigoso da conflitualidade internacional, tanto na Ucrânia e nas marcas europeias e caucasianas do ‘espaço pós-soviético’, como no Médio Oriente, onde a lógica da guerra prevalece na Síria, no Iraque, na Líbia e no Iémen, perante a impotência ocidental. No mesmo sentido, as potências revisionistas querem consolidar as suas esferas de influência regional e estão dispostas a pôr à prova as regras internacionais do sistema americano. Porem, a estratégia de retraimento é recorrente na política externa norte-americana, onde os recuos cíclicos, que se sucedem às intervenções externas desde a Grande Guerra até à Segunda Guerra Mundial e ao fim da Guerra Fria, são frequentemente apresentados como sinais do declínio norte-americano. A estratégia de Nixon e de Kissinger — saída do Vietname, dupla détente com a China e a União Soviética, reconhecimento da paridade nuclear bipolar, defesa ambivalente do condominium e da multipolaridade —, se não impediu o expansionismo soviético nas periferias, nem por isso deixou de ser decisiva para restaurar a capacidade estratégica norte-americana. Quando Gorbachev inicia a transformação do regime comunista russo, os Estados Unidos estão preparados para comandar a transição unipolar que marca o fim da Guerra Fria.

A crise europeia parece mais complexa. A divisão persistente, que impede uma concertação estratégica efectiva entre a Alemanha, a Franca e a Grã-Bretanha, é manifesta em todos os domínios: Berlim vota ao lado das ‘potências emergentes’, não quer participar em acções armadas no Médio Oriente ou no Mediterrâneo e procura limitar as tensões com a Rússia ou com a Turquia; Paris mantem uma capacidade de intervenção militar efectiva, embora mais condicionada depois dos atentados terroristas de Paris e de Nice, mas não consegue inverter nem a escalada da insegurança, nem a tendência de declínio económico, nem a polarização política interna; Londres, depois do referendo a favor do Brexit, presa pela pressão do secessionismo escocês e pela divisão interna entre europeístas e antieuropeístas, procura definir acordos que evitem a ruptura com a União Europeia e a decomposição do Reino Unido, cujo estatuto internacional fica diminuído com a viragem nacionalista.

O Brexit pode ser o princípio do fim da integração europeia, se persistirem as hesitações de Berlim, cuja indefinição levou um ministro dos Negócios Estrangeiros polaco ao extremo de declarar que teme mais inacção alemã do que o poder da Alemanha. As crises periféricas na Grécia, na Irlanda ou em Portugal e a divergência crescente entre a Europa do Norte e a Europa do Sul não podem ser ultrapassadas sem reformas internas da União Europeia, enquanto a ‘guerra híbrida’ na Ucrânia, assim como a guerra civil na Síria, a crise dos refugiados e a escalada terrorista do ‘Estado Islâmico’ levantam problemas críticos da segurança europeia. Porém, as condições da autonomia estratégica conjunta da Alemanha, da Franca e da Grã-Bretanha parecem duradouramente prejudicadas pelo Brexit, que pode exigir uma nova configuração das relações entre a NATO e a União Europeia, concertada com os Estados Unidos, para restaurar os equilíbrios na comunidade de segurança ocidental.

O reconhecimento do estatuto da Rússia e da China como potências revisionistas não é consensual. Desde logo, os responsáveis russos e chineses, como todos os revisionistas, apresentam-se a si próprios como reformadores benevolentes de uma ordem internacional desequilibrada que não reconhece os seus interesses legítimos: nesses termos, Moscovo e Pequim não são nem potências de status quo, nem potências revisionistas. Por outro lado, a Rússia e a China separam-se da Índia e do Brasil pelas suas estratégias regionais, que revelam uma determinação em impor por todos os meios, incluindo o recurso a forca, as suas reivindicações e o reconhecimento da sua preponderância. Por último, as duas estratégias revisionistas são distintas: a Rússia de Putin, motivada pelo ressentimento pós-imperial, procura uma conjuntura decisiva, o que a torna uma potência revisionista mais propensa ao risco do que a China de Xi, mais paciente e confiante no sentido do ‘rejuvenescimento’, que anuncia a restauração da sua posição histórica no centro do sistema internacional como uma mudança inelutável.

Raymond Aron faz uma distinção essencial entre a decadência — uma crise moral e civilizacional — e o declínio — uma variação na posição relativa de uma potência. A primeira é definitiva, a segunda uma mudança normal na política internacional: a Rússia de Putin não tem a mesma posição no ranking internacional do que a Rússia de Ieltsin, nem a Alemanha de Merkel a mesma do que a Alemanha de Kohl. Essa distinção é crucial para avaliar a conjuntura internacional no contexto da crise europeia e ocidental, onde os valores da liberdade e da democracia pluralista devem permanecer intactos, para impedir que o declínio temporário se torne numa decadência permanente.

(Excerto do capítulo IV: As crises da ordem internacional)