Samuel Fosso, o fotógrafo de si próprio
Um dos mais internacionais artistas africanos passou pelo Porto para mostrar a sua obra inteiramente dedicada ao auto-retrato.
Samuel Fosso (Kumba, 1962), o fotógrafo camaronês cuja obra está representada nalgumas das mais importantes colecções de fotografia do mundo, é extraordinariamente rápido a dizer que não quando lhe perguntamos se há uma coisa a que se possa chamar arte africana. Mas é certamente bastante africana a maneira como percebeu que os auto-retratos com que desde adolescente documentava, para memória futura, a sua até hoje celebrada beleza (“É espantosamente bonito, com feições perfeitamente simétricas”, escreverá a jornalista do The Guardian que o foi visitar em 2002 ao seu estúdio num bairro muçulmano de Bangui, a capital da República Centro-Africana; “Toda a gente se sente bonita, mas eu, eu sei que sou bonito”, dirá mais tarde ao Libération) configuravam uma prática artística.
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Samuel Fosso (Kumba, 1962), o fotógrafo camaronês cuja obra está representada nalgumas das mais importantes colecções de fotografia do mundo, é extraordinariamente rápido a dizer que não quando lhe perguntamos se há uma coisa a que se possa chamar arte africana. Mas é certamente bastante africana a maneira como percebeu que os auto-retratos com que desde adolescente documentava, para memória futura, a sua até hoje celebrada beleza (“É espantosamente bonito, com feições perfeitamente simétricas”, escreverá a jornalista do The Guardian que o foi visitar em 2002 ao seu estúdio num bairro muçulmano de Bangui, a capital da República Centro-Africana; “Toda a gente se sente bonita, mas eu, eu sei que sou bonito”, dirá mais tarde ao Libération) configuravam uma prática artística.
Tinha 31 anos e fotografava-se desde os 12, mas os seus auto-retratos não tinham ido mais longe do que à Nigéria, onde acabara por radicar-se, dividida pela Guerra do Biafra, parte da família, pais e irmãos incluídos – até que um fotógrafo francês em missão exploratória, Bernard Descamps, o descobriu (palavra nada inocente) e levou à primeira edição dos Encontros de Bamako, de onde sairia premiado e, reconhece hoje, totalmente transfigurado: “Foi muito surpreendente descobrir que os auto-retratos que eu fazia para poder dizer aos meus pais que continuava vivo e para mais tarde poder mostrar aos meus filhos como era bonito o jovem Samuel Fosso eram arte. A minha maneira de trabalhar mudou imenso a partir daí”, conta ao PÚBLICO nas instalações da mala voadora, a estrutura que o trouxe ao Fórum do Futuro para explicar como o seu trabalho de “reinvenção biográfica” – um trabalho tão fotográfico quanto performativo, na sua espiral de construção e desconstrução de personagens – simultaneamente reitera e subverte os paradigmas da auto-representação africana.
Apesar das solicitações do circuito internacional (“Passei a ter muita procura, o que faço agradou a muitos museus e galerias”, diz), durante algum tempo manteve abertas as portas do Studio Photo Nationale, onde continuou a entregar aos clientes fotos que os faziam “bonitos, chiques, delicados e fáceis de reconhecer”. É possível que isso faça dele um artista africano como os malianos Seydou Keïta (1921-2001) e Malick Sidibé (1935/6-2016), cuja fotografia também passou meteoricamente do estatuto de prática vernacular ao de prática autoral? “Não faço fotografia africana. Faço fotografia tout court. Mas claro me que reconheço no trabalho deles. Usamos os mesmos fundos”, ri-se. Camisa aos quadrados pretos e brancos, Samuel Fosso parece ele próprio vir de uma dessas fotografias icónicas, estampados de efeito hipnótico sempre em pano de fundo, em que Sidibé fixou sucessivas gerações de habitantes e visitantes de Bamako (algumas delas, muitas das quais inéditas, estão reunidas numa exposição que pode ser vista até este domingo no Museu da Imagem, em Braga, La Vie en Rose).
Ao contrário desses fotógrafos que serão sempre os seus “mestres”, nas horas em que não estava a fotografar casamentos, baptizados e festas, ou fechado no estúdio a tornar os seus clientes “bonitos, chiques, delicados e fáceis de reconhecer”, Samuel Fosso ocupou-se de um único assunto: ele próprio. “Eu fotografava-me por gozo, porque me dava prazer; sempre que comprava roupa nova, punha-me diante da câmara e accionava o temporizador. Se o resultado me agradava, guardava; se não me agradava, destruía. Acumulei álbuns e álbuns e álbuns de auto-retratos.” Depois do prémio em Bamako, levou a auto-encenação até às últimas consequências – hoje trabalha sempre com maquilhador, cabeleireiro e figurinista. Mémoire d’un ami (2000) foi talvez a primeira série em que se transformou numa personagem, um amigo assassinado por militares centro-africanos; depois, reencarnou no avô curandeiro em Le Rêve de Mon Grand-Père (2003), no seu panteão pessoal de heróis da negritude (de Selassié a Senghor, de Lumumba a Mandela, de Césaire a Malcolm X, de Luther King a Muhammad Ali), em African Spirits (2008) e no Mao Tsé-Tung que vê como a figuração mais eloquente da “nova colonização” em curso (“mas sem escravatura, sem trabalhos forçados, sem crime”), em The Emperor of Africa (2014).
Quem está nessas fotos, afirma, não é ele, são as suas infinitas personagens. “Entro nos corpos de outras pessoas para exprimir coisas que elas não podem exprimir. De resto, faço como sempre fiz: adapto os meus temas ao meu corpo.”
Já não tem 31 anos, Samuel Fosso. Mas quando abre os álbuns em que aparece de grande afro e camisola justa, como da primeira vez que se fotografou e adorou o que viu, chega sempre à mesma conclusão: “Ainda somos parecidos.”