As olheiras de Centeno e as lutas contra a “numerologia” mantêm-se
Parte do mundo de Centeno que ainda não pulou nem avançou: imposto sucessório, defesa de um processo conciliatório de cessação do contrato de trabalho, descida da TSU para os trabalhadores com salários até 600 euros.
Às vezes parece um remake. Assim que chegou à Assembleia da República na última quarta-feira para ser ouvido sobre o Orçamento do Estado, o ministro das Finanças elencou os dados que ilustram a perspectiva do executivo sobre a realidade: “o défice reduz-se em 2016”, a “dívida mantém a trajectória de descida” e a “carga fiscal baixa”. Conclusão de Mário Centeno: "Números que continuam a não agradar à oposição, mas não há volta a dar-lhes.”
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Às vezes parece um remake. Assim que chegou à Assembleia da República na última quarta-feira para ser ouvido sobre o Orçamento do Estado, o ministro das Finanças elencou os dados que ilustram a perspectiva do executivo sobre a realidade: “o défice reduz-se em 2016”, a “dívida mantém a trajectória de descida” e a “carga fiscal baixa”. Conclusão de Mário Centeno: "Números que continuam a não agradar à oposição, mas não há volta a dar-lhes.”
Parece um remake: Centeno, que continua a acusar a oposição de lançar uma "nuvem de fumo" sobre o Orçamento, já se queixava, antes de ser o responsável pela pasta das Finanças, da “numerologia”. Numa entrevista dada a 24 de Setembro de 2015, ao Oje, dizia já, sobre a campanha eleitoral e depois de ter apresentado o cenário macroeconómico do PS, que se inventavam muitos números: “A numerologia tem sido uma técnica que é uma boa parte do que a campanha tem apresentado. E é uma infelicidade, porque é sempre com os números dos outros. E as contas que nós apresentámos não tiveram nenhuma contraparte em nenhum dos outros partidos concorrentes, em particular na coligação.”
O professor do ISEG, que o agora primeiro-ministro António Costa foi buscar ao Banco de Portugal, dizia mais: “A estratégia que tem sido seguida é a de lançar números para a discussão sobre as nossas medidas que nunca até hoje corresponderam à realidade.”
A estratégia parece continuar a ser a mesma dos dois lados, com a diferença que trocaram de lugares. Agora está o PS a governar e a direita na oposição. Um Governo possível graças a sucessivas negociações – primeiro para os acordos à esquerda que suportam o executivo e, depois, para os orçamentos.
As olheiras de Mário Centeno têm sido o espelho dessas negociações que começaram logo após o resultado das últimas eleições legislativas e não pararam até hoje. A imprensa já se referia a elas, em tom de brincadeira, quando decorreram as negociações que resultaram nos acordos com PCP, Bloco de Esquerda e PEV, e o cansaço de Centeno voltou a ser notório quando apresentou esta proposta de Orçamento, novamente fruto de longas negociações.
Apesar das críticas de que foi sendo alvo – o PSD, por exemplo, chegou a acusar o Governo de insistir em manter um cenário macroeconómico “irrealista e irresponsável” – Mário Centeno não respondeu só com números às acusações. A 5 de Setembro de 2015, citava Nietzsche ao Expresso, dizendo que a coligação PSD/CDS estava a fazer-se de morta, por não propor medidas nem explicar os números do programa de estabilidade. “Esta ideia de fazer de morto faz-me lembrar uma frase de Friedrich Nietzsche que diz que ‘há homens que já nascem póstumos’. Dá-me esta ideia, bastante nietzschiana, de que a coligação é póstuma, não existe.”
Na quarta-feira, no Parlamento, foi a vez de citar Camões: “A oposição está cativa de uma tabela. Aquela cativa que me tem cativo, porque nela vivo já não quer que viva.” Centeno disse que o PSD queria as tabelas do Orçamento à espera de encontrar verbas retidas que afinal não encontrou. “[Queria as tabelas] e agora vem-me perguntar onde estão os cativos?”. E foi a vez de evocar Camões: “No campo camoniano, com hipérboles e outro tipo de estrutura linguística, não conseguimos perceber onde está a realidade”, mas no Orçamento a informação está lá, ironizou Centeno. “Não há cativos na educação, não há cativos na saúde”, garantiu.
Tudo calendarizado?
Naquela entrevista ao Expresso, em Setembro de 2015, Centeno dizia também que a política do governo anterior tentou controlar o défice externo “através de impostos, reduzindo o rendimento disponível e dizimando a poupança das famílias”. Ora, continuava, “isso não é uma boa maneira de fazer economia, é uma maneira bastante soviética de fazer economia: pôr o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais a controlar o rendimento da nação e arranjar uma lista de consumos permitidos que equilibre os défices”.
O que este executivo fez agora foi aumentar alguns dos impostos sobre o consumo, com o próprio primeiro-ministro a justificar: “Não estou a fazer qualquer moral fiscal, mas dependem da escolha.” Esta tem sido uma das polémicas que continua a marcar o debate em torno dos números de Centeno e os da oposição. O Governo nega que este Orçamento aumente a carga fiscal. O que o executivo tem argumentado é que aumentou alguns impostos indirectos que dependem da escolha do consumidor.
A realidade em que Centeno se movia quando apresentou o cenário macroeconómico do PS não é a mesma. Por um lado, os acordos à esquerda ditaram o fim de algumas medidas defendidas pelo PS; por outro, houve metas que ficaram aquém do estipulado.
O investimento público, por exemplo, está, este ano, aquém do delineado – o que o Governo tem justificado com questões estatísticas e dificuldades de execução dos fundos estruturais. A economia está a crescer menos que o esperado e, apesar da política de devolução de rendimentos sublinhada pelos partidos que apoiam o executivo, também não se pode dizer que a austeridade se tenha eclipsado do OE. Uma das medidas que devia ter avançado era a eliminação da sobretaxa a 1 de Janeiro de 2017, como ditava a lei, e que afinal vai deixar de ser retida, mas de forma faseada.
A 5 de Agosto de 2015, em entrevista ao PÚBLICO, Centeno parecia, porém, mais seguro das contas que tinha feito: “A carga fiscal sobre as empresas, mas principalmente sobre as famílias é elevadíssima. Pensamos que tem de ser reduzida de forma sustentada, sem aventureirismo. E tudo está pensado, calendarizado e quantificado.”
Centeno dizia ainda ter “consciência de que conduzir a política económica do país não é um exercício de jogo informático experimental, mas definir uma linha de rumo e gradualmente permitir que os agentes económicos se ajustem, criando espaço fiscal neste caso, para a realização de investimento e para a contratação de trabalhadores”.
E em que mais mudou o discurso, ou o mundo, de Centeno? Parte desse mundo que não avançou, ou não avançou ainda: é o caso do imposto sucessório, da defesa de um processo conciliatório de cessação do contrato de trabalho, e da descida da TSU para os trabalhadores com salários até 600 euros. Pelo menos, este mundo de Centeno ainda não pulou nem avançou.