“A revolução não foi feita pela Academia sueca mas por Dylan”

Robert F. Thomas é professor de Literatura Clássica em Harvard e criou um seminário onde ensina Bob Dylan integrando-o na tradição de Virgílio ou Ovídio. A argumentação para convencer os seus pares teve de ser tão boa ou melhor do que a da Academia sueca ao nomear o músico Nobel da Literatura.

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O Dylan do início de The Times They Are A-Changin’ (1964) ou Bringing It All Back Home (1965) é diferente do de meados de 70 com Blood on the Tracks (1975), mas é outro o que surgiu depois de 2001. São esses os três períodos em que Robert F. Thomas divide o seminário FOTO: Fiona Adams/Redferns

"O fenómeno Bob Dylan requer uma palavra nova para o designar, e a melhor que agora temos é literatura." Robert F. Thomas está no seu pequeno gabinete no segundo piso de Boylston Hall, Harvard. Da janela estreita não se avistam as árvores em vários tons de verde e vermelho que cobrem o jardim do campus, onde ao sol de meio da tarde de Outono as sombras dos ramos se confundem com os vultos dos alunos que passam de headphones nos ouvidos, mochila às costas ou lêem nas cadeiras espalhadas pelo relvado coberto de folhas. À sala de Robert F. Thomas chega pouca luz. Há uma secretária, uma estante, duas cadeiras e poucas imagens nas paredes, quase todas da mesma pessoa: Bob Dylan, o agora 113º Nobel da Literatura em várias fases da sua carreira. O rapaz de guitarra e cigarro na boca de meados da década de 60, o rosto meio andrógino na capa do álbum Hard Rain, de 1976, uma pintura que recria parte da face marcada do artista no início do século XXI.

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"O fenómeno Bob Dylan requer uma palavra nova para o designar, e a melhor que agora temos é literatura." Robert F. Thomas está no seu pequeno gabinete no segundo piso de Boylston Hall, Harvard. Da janela estreita não se avistam as árvores em vários tons de verde e vermelho que cobrem o jardim do campus, onde ao sol de meio da tarde de Outono as sombras dos ramos se confundem com os vultos dos alunos que passam de headphones nos ouvidos, mochila às costas ou lêem nas cadeiras espalhadas pelo relvado coberto de folhas. À sala de Robert F. Thomas chega pouca luz. Há uma secretária, uma estante, duas cadeiras e poucas imagens nas paredes, quase todas da mesma pessoa: Bob Dylan, o agora 113º Nobel da Literatura em várias fases da sua carreira. O rapaz de guitarra e cigarro na boca de meados da década de 60, o rosto meio andrógino na capa do álbum Hard Rain, de 1976, uma pintura que recria parte da face marcada do artista no início do século XXI.

“Há melhores guitarristas, há melhores intérpretes, até melhores poetas se nos limitarmos à poesia, mas não ha ninguém melhor do que Bob Dylan a fazer a síntese de tudo isto”, afirma este neozelandês nascido em Inglaterra, professor catedrático de Literatura Clássica, especialista em Virgílio e nas civilizações da Grécia e Roma antigas, que em 2004 começou a ensinar Dylan em na Universidade de Harvard, incluindo-o na tradição do autor de Eneida, mas também na de Homero ou Ovídio. "Dylan é um poeta e a canção faz parte da sua poesia", acrescenta, afirmando ainda que a decisão de dar o Nobel da Literatura ao criador de Lonesome Day Blues é o sinal de que a Academia Sueca "compreendeu o fenómeno Dylan" e está disposta a abrir a discussão sobre o que é literatura.

“A literatura é só o romance, o poema épico ou lírico, a peça de teatro?”, questiona. Continua: “Veja-se então a peça de teatro; o dramaturgo produz palavras que é suposto serem ditas por um actor, num contexto que não apenas o do papel. Quem critica o facto de Dylan ser Nobel da Literatura manifesta uma inabilidade para compreender o que Dylan faz”, afirma o professor de Harvard que passa a concretizar: “A prosa de Dylan é maravilhosa. O primeiro volume da sua autobiografia [Crónicas, Ulisseia, 2005] é um exemplo disso. E depois há as palavras nas páginas para as quais ele cria melodias que interagem com essas palavras de modo assombroso. E a sua voz tem uma participação importante em tudo isso. Ele é um bardo na tradição clássica. São as palavras, a música e a voz. E se não se chama a isso literatura, ou se não é permitido chamar a isso literatura, o que se vai então chamar?” 

A identidade clássica

A justificação oficial do júri Nobel não difere da opinião escrita por Robert F. Thomas, antes do dia 13 de Outubro — o dia do anúncio —, no ensaio The Streets of Rome: The Classical Dylan (Harvard, 2007). Para a academia Sueca, Dylan é o Nobel de 2016 “por ter criado novas formas de expressão poética no quadro da grande tradição da música americana”. Para Robert Thomas é, no entanto, mais do que isso. “Dylan tem vestido a essência americana de meados do século XIX e início do século XX”, referindo-se dessa forma à tradição folk em que o músico se insere e foi capaz de actualizar, “ressuscitando” com as suas canções esse universo e imaginário que constituem a identidade de um povo. Mas foi mais longe no tempo, recuando a uma antiguidade que está na génese também da cultura ocidental. “E foi genial nisso”, sintetiza. 

As aulas do seminário de Robert F. Thomas sobre Dylan querem assim mostrar a identidade clássica do poeta, compositor e intérprete e nisso são também um desafio ao convencional. Doze rapazes e raparigas — o limite máximo de cada curso — juntam-se para ouvir música e falar dela enquanto bebem um café ou comem uma fatia de pizza. Tudo é informal de modo a que o ambiente gere uma discussão “descomplexada” à volta da letra de uma canção. O papel de Thomas é o de um mediador discreto, aquele que fornece o guião do seminário que arrancou no dia 8 de Setembro com a exibição do filme I’m Not There, de Todd Haynes (2007), segue a cronologia da carreira do músico e que determinou, por exemplo, que no dia 27 de Outubro o tema fosse “canções de amor e ódio” a partir dos álbuns Blood on the Tracks, The Bootleg Series Vol. 1-3 e Biograph. “A arte de Bob Dylan questiona as definições da literatura. Hoje ninguém tem dúvidas em dizer que Safo é literatura, mas Safo era uma cantora, só que não temos acesso à sua música. Então, se lhe retirarmos a música ela é literatura. Mas no seu contexto temporal, além de ser literária, era também musical”. O cepticismo face à ideia de um Dylan literário, seja por quem discorda da decisão da Academia Sueca, como da parte dos seus pares em Harvard quando demoraram a entender a sua proposta de pôr Dylan como tema de estudo numa das universidades mais cotadas do mundo, explica-se, segundo o professor, pela dificuldade em olhar Dylan como mais do que um autor de canções de protesto dos anos 60. “Podem-se ouvir todas as canções de Dylan e elas continuam a soar modernas. Houve pessoas no meu departamento que apoiaram a ideia e ela avançou. Mas há sempre quem não olhe Dylan como um fenómeno único.” 

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FOTO: Michael Ochs Archives/Getty Images

Único porque? Robert F. Thomas abre o computador portátil e procura a cópia da proposta que apresentou ao comité de Harvard em 2004. Óculos na ponta do nariz, lê num sotaque ainda muito britânico que se propôs leccionar Dylan “enquanto fenómeno musical, literário e cultural duradouro e contínuo no contexto da cultura popular e literária nos últimos 55 anos” integrado numa tradição literária e musical antiga que lhe serve de base o que, segundo o documento que apresentou, se manifesta nas letras mais recentes, indo até Homero, Virgílio e incluindo todo o cânone literário ocidental. No seu seminário, traça ainda a evolução das canções e letras de Dylan, desde o folk, blues, rock e gospel, indo às raízes da música de protesto “até à transição do acústico para o electrónico, tanto em estúdio como em actuações ao vivo”, e através das “muitas evoluções e reinvenções que têm caracterizado e continuam a caracterizar” a carreira de Dylan “na música, na literatura e na pintura”. Thomas lê a argumentação e retoma uma postura menos formal quando reafirma: “Estamos perante um artista único, o tal que desafia fronteiras de géneros.”

Antes e depois de 11 de Setembro

O curso abriu em 2004. Foi o primeiro sobre Dylan numa universidade americana. “Entretanto sei que abriram mais uns quantos”, nota, e suspeita que a partir de agora sejam mais ainda. Diz isto com a satisfação de quem vê legitimidada uma ideia que foi vista como uma provocação. Isso não o incomoda. “É sempre a questão: o que é a literatura? Que se pense nisso.”

Nove anos mais novo do que Bob Dylan, Robert F. Thomas começou a ouvir músicas do rapaz do Minnesota no início da adolescência, quando ainda vivia na Nova Zelândia. Tinha 12, 13 anos, “as coisas chegavam lá com algum atraso”, comenta, enquanto refere Blowing in the Wind e todo o simbolismo que a música teve numa época marcada pela luta pelos direitos humanos. E foi ouvindo sempre, como “um grande prazer” até 2001. Justamente no dia 11 de Setembro desse ano era apresentado o 31º álbum do músico, Love and Theft. Robert F. Thomas ouviu, mas só quatro anos mais tarde, em 2005, quando soube que Dylan fora aluno de Latim no liceu de Hibbing, a sua cidade no norte do Minnesota, olhou numa perspectiva académica para as letras das canções que sabia de cor. Sobretudo as mais recentes. “Foi então evidente que Virgilio estava em Lonesome day Blues”, refere apontando esse como o momento de viragem no modo como passou a lidar com a arte de Dylan. Cita parte da letra da canção: "I’m gonna spare the defeated, I’m gonna speak to the crowd / I’m gonna spare the defeated, boys, I’m going to speak to the crowd / I am goin’ to teach peace to the conquered / I’m gonna tame the proud…”, confrontando-a com alguns versos da Eneida na tradução para inglês de Allan Mandelbaum (1973): "But yours will be the rulership of nations, / remember Roman, these will be your arts: / to teach the ways of peace to those you conquer, / to spare defeated peoples, tame the proud…”

O Dylan do início dos anos 60, de álbuns como The Times They Are A-Changin’ (1964) ou Bringing It All Back Home (1965) é diferente do de meados de 70 com Blood on the Tracks (1975), mas é outro o que surgiu depois de 2001. São justamente esses os três períodos em que Robert F. Thomas divide o seminário, e depois da explosão inicial é nos últimos 15 anos que Dylan, segundo Thomas, faz a sua síntese ou recriação dos clássicos. “Ele sempre foi um grande leitor e eclético, capaz de ao ler um texto ver a poesia e transferir essa leitura, essa reinterpretação, para uma canção”, comenta antes de dar novos exemplos de intertextualidade em Dylan. Agora é a vez de Ovídio, outro canónico da literatura latina, e da sua Arte de Amar, escrito depois do poeta da Roma antiga ter sido condenado ao exílio pelo imperador Augusto por razões que nunca ficaram esclarecidas, presente em Thunder of The Mountain, do álbum Modern Times (2006). Diz Thomas: “É uma canção de arrependimento e de remorso, o cantor dirige-se a uma mulher, as coisas estão a correr mal, e o que no verso de Ovidio era dito a um imperador, torna-se verso para uma amante: 'I’ve been sittin’ down studyin’ the art of love / I think it will fit me like a glove'”. 

O poder, o fim do império, a passagem do tempo, a mortalidade, a salvação e a sabedoria são temas de um Dylan mais recente e, para Robert Thomas, a prova desse namoro com os clássicos. Ouvi-lo citar exemplos, cruzando as letras de canções do músico americano, com excertos de Virgílio, Ovídio, mas também de Homero ou ainda mais próximos no tempo, de Mark Twain ou do japonês Junichi Saga, autor do romance sobre o fim do império japonês Confessions of a Yakuza (1991, não editado em português) é um exercício que requer tanto de atenção quanto de sentido melódico. O modo como as rimas se cruzam e a linguagem é trabalhada de modo a ganhar, subverter ou roubar sentidos é um jogo que diverte o professor de Harvard, como se com ele estivesse a revelar toda a originalidade e a provar que Dylan é um poeta que se insere numa longa tradição e o acaso não tem nada a ver com o que faz. Só mais uns exemplos anotados por Robert F. Thomas.

Bob Dylan, em Ain’t Talkin’: “Heart burnin’, still yearnin’ In the last outback, at the world’s In the last outback at the world’s end”

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FOTO: AFP PHOTO / JONATHAN NACKSTRAND

Ovídio, Black Sea Letters: “In the last outback, at the world’s In the last outback at the world’s end”

Bob Dylan, Lonesome Day Blues: “My sister, she ran off and got married / Never was heard of any more"

Mark Twain, Huckleberry Finn “. . . and my sister Mary Ann run off and got married and never was heard of no more . . ."

Robert F. Thomas cita em inglês poetas da Antiguidade Clássica, traduzidos, fora do texto original. Foi assim que ele e Dylan os leram e é em inglês que eles ganham nova vida, novo sentido; no inglês de Dylan que os canta. É pela sua voz, antes da palavra escrita, que eles se dão a conhecer. Ou seja, no princípio da poesia de Dylan há uma voz em inglês, apesar de depois estes poemas estarem traduzidos em muitas línguas (em português por Pedro Serrano e Angelina Barbosa numa edição da Relógio d’Água em dois volumes Canções: 1962-2001.) “A tradução é sempre outra experiência literária”, afirma Thomas. A da poesia noutra língua que não a original, e a poesia que de ler no papel se conheceu cantada no original. “Sim, em inglês e com melodia”, precisa. Surge então a pergunta: consegue ler um poema de Dylan sem pensar na melodia? Abana a cabeça uma negação. “Não sou capaz de não ouvir a melodia. Ouço-a sempre. Há rimas que nos levam e não consigo desligar-me, nem da melodia nem da entoação.” Faz uma pausa. “O que está aqui em causa é a singularidade do conjunto”, continua, como quem diz depois que não é a só a poesia, nem a música, nem a voz, mas a possibilidade também de ler esses poetas que escreveram noutras línguas que não aquelas em que são lidos através do modo como Dylan se apropriou deles. E sublinha o verbo “apropriar” como parte da tradição literária mais nobre numa cadeia ou corrente imparável, como parte da intertextualidade. Chama-lhe “diálogo com outros textos” e está no ADN latino e grego. Faz nova pausa e fala em Suzanne, o poema de Leonard Cohen publicado em 1966 e cantado por quase toda a gente. Mas antes de ser canção foi poema, embora quase ninguém tenha memória dele sem a melodia. Cohen não seria o primeiro a gravá-lo, mas sim Juddy Collins ainda em 1966. 

Leonard Cohen não surge na conversa por acaso. Quando se anunciou que Dylan ganhara o Nobel muitos perguntaram “e porque não Cohen?” Robert F. Thomas fez essa pergunta a si mesmo quando soube da notícia e tem a resposta pronta. “Sim, Dylan não é o único. Faz-se muito a comparação entre ele e Cohen, mas acho que são diferentes. Cohen é um poeta antes de tudo e Dylan não é um poeta na sua essência. Suzanne existiu enquanto poema sem música. Cohen tem 82 anos, é sete anos mais velho do que Dylan, mas o seu primeiro álbum é de 1967, já Dylan tinha uma carreira brilhante e tinha saído da estrada. Será que sem Dylan poderíamos ter tido Cohen? Não tenho a certeza”. Dylan aprendeu com poetas, terá aprendido também com Cohen”, salienta. “Na poesia de Cohen há intimidade como há na Dylan, partilham uma mesma complexidade, mas Dylan tem mais qualquer coisa e tem a tal tradição do cancioneiro e do imaginário americano, literário, musical…” E estende a pergunta mais uma vez sobre a legitimidade do Nobel: e os Beatles e Bruce Sprinsgteen? "Todos são de qualidade inegável, abrem caminhos, mas já se percebeu que a minha primeira escolha seria Dylan”, ri, e resume toda a polémica e interrogações provocadas pela atribuição do Nobel numa frase: “A revolução não foi feita pela Academia Sueca mas por Dylan. A academia reconheceu isso.”

Sem parar de nomear canções e versões, cantadas pelos Beatles ou Jimmy Hendrix e referindo que Dylan é em si mesmo uma personagem com muitas e em cada fase da vida compõe em função daquela que quer levar a palco ou que está em palco. “Ele é um performer. De Dylan pouco sabemos além das letras das suas músicas e do que ele vai dizendo em entrevistas sempre muito mediadas, em que surge muito cauteloso, reservado”. Por isso não estranha o silêncio do músico após o anúncio do Nobel. A conversa aconteceu dois antes de Bob Dylan dizer que se pudesse iria a Oslo no dia 10 de Dezembro para a cerimónia de entrega do prémio. “Se conseguir bilhete também vou”, diz Robert F. Thomas que nunca conheceu Dylan, mas sabe que Dylan conhece o seu seminário. “Uma vez almocei com o agente dele em Nova Iorque e costumamos trocar emails”, conta. E quando a conversa tinha de acabar porque havia uma aula, lembra um gesto de Dylan no concerto que deu em Las Vegas a 13 de Outubro, o dia do anúncio do Nobel. “Antes de tocar Simple Twist of Fate [do álbum Blood on the Tracks, 1975], ele pegou na guitarra eléctrica, algo que não fazia há tempo. Os mais atentos acharam que foi um sinal de reconhecimento. Foi o mais perto que ele esteve de falar do Nobel.”