Segredos de família
A Toca do Lobo, de Catarina Mourão, é um filme de uma intimidade rara que se invade com a delicadeza que é própria de quem aceita que há perguntas que vão ficar por responder, com a delicadeza de quem está a contar uma história que também é sua.
É um lugar comum, mas nem por isso menos verdadeiro – a memória está cheia de ficções, de coisas que nunca aconteceram. Muitas delas são pequenas, quase imperceptíveis, outras são grandes, pesadas, são histórias que alguém criou para preencher um vazio, para encontrar a resposta (possível) a perguntas que raras vezes fez em voz alta.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
É um lugar comum, mas nem por isso menos verdadeiro – a memória está cheia de ficções, de coisas que nunca aconteceram. Muitas delas são pequenas, quase imperceptíveis, outras são grandes, pesadas, são histórias que alguém criou para preencher um vazio, para encontrar a resposta (possível) a perguntas que raras vezes fez em voz alta.
A Toca do Lobo, filme de Catarina Mourão que acaba de estrear em sala depois da passagem por vários festivais no estrangeiro e em Portugal, onde recebeu o prémio do público no Indielisboa, não pára de fazer perguntas. “Porque é que o meu avô foi uma ausência para a minha mãe? Porque é que agora parece querer comunicar comigo?”, ouve-se na voz da própria realizadora enquanto ela percorre a geografia – as pessoas e os lugares – de uma família (a sua) que, como quase todas, parece ter ainda muito por descobrir no passado.
“Será verdade que o meu avô nunca foi visitar o meu tio quando ele esteve preso? Será que a minha mãe alguma vez vai perdoar o pai?”, questionar-se-á mais tarde, uma semana antes de este documentário entrar no circuito comercial, ao longo de uma conversa à volta do projecto de três anos que resultou num filme sobre o avô materno, o escritor Tomás de Figueiredo (1902-1970), que é também sobre a mãe, Maria Rosa Figueiredo, e que é ainda um filme sobre as duas (Catarina está lá antes, durante e depois de as câmaras se desligarem) e sobre a família em todos os seus mistérios (e mais um).
A Toca do Lobo é sobretudo, insiste a realizadora, “sobre a passagem das coisas de geração em geração” e é por isso que os seus filhos, Francisca e Lourenço, também aparecem. “Fez-me sentido que eles lá estivessem porque esta é a sua família, porque eles também fazem parte das nossas memórias e nós da deles. E porque a experiência familiar deles é muito diferente. A minha mãe teve de ficcionar o seu álbum de família quando tinha 18 anos. Foi ela que o fez, não o herdou como a maioria das pessoas. Isso diz muito sobre esta família. Não será assim com os meus filhos.”
Perguntas sobre o avô
O filme faz parte do doutoramento que começou em 2012 e terminou em Maio deste ano, com a defesa da tese. A proposta teórica do projecto passava por ver como o novo cinema documental tratava as questões da memória e do sonho e a figura do avô tornou-se um veículo ideal, isto porque a realizadora sempre quis que ao trabalho de investigação se juntasse a prática, um objecto como este.
Catarina, que nunca fez muitas perguntas sobre o avô quando era pequena, decidiu que ia mesmo trabalhar a história da família quando viu um programa da RTP de 1967 em que Tomás de Figueiredo aparece a falar da sua colecção de “saquinhas de cachimbo” de uma forma que a surpreendeu. “Parecia que estava a falar para mim. A minha mãe nunca tinha visto aquelas imagens e eu nasci em 69, uns meses antes do meu avô morrer. Tudo aquilo era tão bizarro e ao mesmo tempo tão próximo…”
Neste Clube dos Coleccionadores o escritor refere-se às netas que haveria de ter - “pode até ser que uma delas se chame Catarina. Eu gosto muito do nome Catarina” - e de como netos e bisnetos poderiam vir a brincar com estes pequenos sacos de pano às cores: “Talvez cheguem a ter saudades do avô que não chegaram a conhecer.”
Catarina Mourão, autora de documentários como A Dama de Chandor (1998) ou Pelas Sombras (2010), seguiu neste A Toca do Lobo uma metodologia de trabalho diferente: “O cinema que fiz antes é muito mais observacional, embora haja muita mise-en-scène como no da Lourdes Castro [Pelas Sombras]. Aqui há mais cenas documentais”, como aquela que acompanha a mãe da realizadora - emocionada, contida - na primeira vez que vê o programa da RTP com o seu pai. Vezes houve em que a realizadora pensou que tudo aquilo podia ser demasiado duro para Rosa, embora ela nunca tivesse hesitado perante o projecto que implicava mexer num passado cheio de desencontros. “Foi porque às vezes a minha mãe me parecia demasiado sozinha no enquadramento, frágil, que decidi que eu também ia entrar no filme”, explica. Um filme que, defende, reconcilia a sua mãe com o pai.
Assunto tabu
A mãe de Catarina é a Rosa do filme, a Zinha do álbum de família, a “Maria Rosa” – às vezes “a minha Maria Rosa” - dos textos que o pai escreve. “A Maria Rosa já não me reconhece. Sou menos ainda do que um estranho […] Ai que, se não acreditasse em Deus, dava agora mesmo um tiro na cabeça”, pode ler-se num fragmento do diário de Tomás de Figueiredo, que a realizadora encontrou citado numa biografia. O mesmo escritor que a filha evoca num texto, anos depois de ele morrer, lembrando que cheirava “a alfazema com travo de mel”, que a levava a passear à Baixa a 26 de Dezembro – os dois aparecem juntos numa daquelas fotografias à la minuta no Rossio – e que regressava com ela a casa ao fim da tarde, sempre de eléctrico. O mesmo que a chamava dizendo “vem ao teu pai, velha gata”, não sem que Rosa demorasse a aceder ao pedido.
Tomás de Figueiredo era jurista de profissão e escritor por devoção. Formado em Direito, num curso que começou em Coimbra e terminou em Lisboa, foi notário em Tarouca, Ponte da Barca, Nazaré e Estarreja, mas o que sempre quis foi dedicar-se em exclusivo aos livros, o que só fez nos últimos dez anos de vida. Casado com Maria Antónia Teixeira de Queiroz de Castro Caldas, a quem se refere em muitos poemas e romances, teve três filhos com quem pouco convivia: Tomás Xavier, Maria Antónia e Maria Rosa, muito mais nova do que os dois irmãos.
“Eu não tinha ternura por ele”, diz Rosa sobre o pai, num filme em que explica que, quando era muito pequena, o via três vezes por ano e que, depois, já com oito ou nove anos, passava uma semana do Verão com ele em Estarreja. Quando chegou aos 11 Tomás de Figueiredo desapareceu por completo da sua vida. “No fundo ele não se interessava por mim”, diz, “falar do meu pai era um assunto tabu”. Foi neste período que o escritor adoeceu, provavelmente com uma depressão, e foi internado no hospital psiquiátrico do Telhal. Rosa foi proibida de o ver e só voltou a fazê-lo, “às escondidas”, quando tinha 18 anos e decidiu ir procurá-lo.
“Era uma família de muitos silêncios, muitas omissões”, lembra, “tudo o que tinha a ver com emoções era escondindo”. Estava-se, afinal, num “Portugal de coletes de forças, […] completamente formatado”. O Portugal da ditadura em que o seu irmão, o mesmo Tomás a quem o pai dedica o seu livro mais conhecido e cujo título Catarina Mourão foi buscar para dar nome a este documentário, é preso por contestar o regime, depois de ter sido apanhado pela PIDE, a polícia política do regime, num quarto em Coimbra, onde tinha uma máquina de tipografia e milhares de panfletos de propaganda e outros documentos anti-Estado Novo.
Tomás de Figueiredo, o filho, era “do contra”, dizia-se em casa, e vivia na clandestinidade desde os cinco anos de Rosa (ela só o reencontrou quando ficou preso em Lisboa, tinha já 15 anos).
“Este meu tio dava outro filme”, diz Catarina Mourão, que consultou o seu processo na Torre do Tombo (os arquivos da PIDE foram abertos em 1992) e descobriu que é um dos maiores que lá está, com 14 volumes e mais de 1500 folhas, uma delas, a n.º 84, retirada por poder constituir uma ofensa à honra e ao bom nome (só poderá ser lida daqui a 21 anos).
Os arquivos, diz, tornam-se “obsessivos”: “Queremos continuar e continuar… Mergulhar no passado, na memória, é quase como um abismo e às vezes é preciso vir cá acima respirar ar do presente.” Foi assim qaundo consultou o processo do avô na clínica psiquiátrica - “ainda hoje não é claro para mim porque é que ele foi para lá ou quanto tempo ficou em tratamento, se dois anos, se mais…” - depois de um longo processo burocrático para conseguir a autorização, que exigiu que regressasse ao curso de Direito que acabou em 92 e cuja frequência não recomenda.
O avô, que escrevera romance, poesia, novela, conto, teatro, sentia-se naturalmente humilhado e diminuído no Telhal. “Sou um cadáver vivo”, escreve Tomás de Figueiredo sobre o internamento que o sujeita a violentas terapias que envolvem medicação e electrochoques. “Tenho escrito milhares de páginas e agora embrulho-me e não posso escrever duas linhas”, “sei perfeitamente que estou acabado”, que “nunca mais posso ir a casa”.
Só quando a mãe morreu é que Maria Rosa Figueiredo descobriu que tipo de tratamentos fizera o pai ao encontrar um envelope com sonetos seus, dirigidos à mulher. E teve pena.
“Todos dizem que o meu avô era louco pela minha avó. E se era assim, porque não lutou ele mais para ficar com ela?”, pergunta-se Catarina Mourão.
O filme, garante, deixa muitas pontas soltas, e não apenas as que dizem respeito ao tio Tomás ou à Casa de Casares, no Minho, lugar de referência para Tomás de Figueiredo pai. A realizadora não pôde visitar esta casa porque ela pertence hoje à sua tia Maria Antónia, com quem a mãe não fala há mais de 30 anos. Mitó, assim lhe chamam, não a autorizou a entrar na casa do avô.
“Porque é que a minha tia não nos abre a casa? Será que é ela que guarda um segredo sobre o meu avô?”, continua. “Que relação teria ele com Salazar e o regime? E por que razão todos pensavam que perseguira o meu tio com um revólver quando os dois trocaram cartas incríveis e o tio Tomás esteve com o avô até ao fim?” Também aqui, sublinha, é preciso ficcionar para dar sentido às coisas.
Rosa habituou-se a esse faz-de-conta em criança, quando olhava para as fotografias nas salinas de Aveiro e dizia ter ido à neve, quando o pai a fotografava e ela fingia dormir.