A memória perdida de uma família e de um país
A Toca do Lobo, de Catarina Mourão, é um magnífico documentário sobre a memória perdida de uma família, e também de um país: os segredos, as mentiras, os silêncios e as omissões que continuamos a cumprir.
Portugal não lida bem com a sua memória. Não é de hoje, é mesmo de sempre, e é disso que fala o magnífico filme de Catarina Mourão – que já desesperávamos de ver chegar ao grande público, depois de ter feito o circuito de festivais ao longo dos últimos 18 meses. É do Portugal dos anos de Salazar, e da sua sociedade atrofiada, que A Toca do Lobo fala, mas também dos segredos, das mentiras, dos silêncios e das omissões que continuamos a cumprir quase religiosamente, mesmo hoje, 40 anos depois do 25 de Abril.
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Portugal não lida bem com a sua memória. Não é de hoje, é mesmo de sempre, e é disso que fala o magnífico filme de Catarina Mourão – que já desesperávamos de ver chegar ao grande público, depois de ter feito o circuito de festivais ao longo dos últimos 18 meses. É do Portugal dos anos de Salazar, e da sua sociedade atrofiada, que A Toca do Lobo fala, mas também dos segredos, das mentiras, dos silêncios e das omissões que continuamos a cumprir quase religiosamente, mesmo hoje, 40 anos depois do 25 de Abril.
Partindo de uma construção de documentário de factura tradicional – depoimentos contemporâneos, imagens de arquivo, pesquisa de material – Catarina Mourão revela lentamente a verdade do filme como uma paciente investigação detectivesca, contada na primeira pessoa pela realizadora, com a ajuda preciosa da mãe que vai preenchendo de memória o que não está nos arquivos e nos registos. Nesse processo de avanços e recuos, A Toca do Lobo desenrola-se como um quebra-cabeças que nos envolve aos poucos, começando como uma simples curiosidade pessoal para terminar numa verdadeira reconstrução da história familiar, à volta não de uma presença mas de uma ausência: Tomaz de Figueiredo (1902-1970), o avô materno que Catarina Mourão nunca conheceu, escritor que chegou a ser publicado mas cuja memória se foi perdendo com o tempo, dentro e fora da família.
A tentativa de devolver espessura a essa memória – convocada pelo acaso de imagens de arquivo de um programa televisivo onde o escritor se dirige a uma neta que se poderia vir a chamar Catarina, anos antes de ela ter sequer sido concebida – transforma-se então numa tentativa de resolver um mistério espicaçado pelas inconsistências e pelos silêncios, pelas questões que vieram inclusive separar a família. E, nessa teimosa insistência em deixar as coisas a remoer, por dizer, por resolver, num lume brando entre o doloroso e o ressabiado, A Toca do Lobo amplifica de modo quase comovente essa dificuldade tão portuguesa de assumir e aceitar a nossa história tal como é, sem a minimizar nem a empolar; de sabermos olhar para ela como parte de um contínuo temporal.
É verdade que a história pode ser escrita pelos vencedores, mas isso não torna os perdedores menos dignos de nela serem lembrados, e por vezes é nos recantos mais poeirentos que encontramos a chave que nos permite compreender o que se passou. A Toca do Lobo recorda-no-lo, com um pudor extraordinário e uma inteligência delicada, e com a capacidade de transformar a história esquecida de uma família na história de toda uma sociedade ao longo de todo um período, e de explicar quanto de nós ali está. Ainda bem que este belíssimo filme não fica restringido ao circuito de festivais – mesmo que as voragens do “mercado” quase o condenem a uma estreia frágil, A Toca do Lobo merece que se corra a vê-lo, apenas porque é um dos grandes filmes do ano.
[Leia aqui a conversa com a realizadora Catarina Mourão]