Eutanásia e suicídio assistido, ajuda ou ameaça?

Devemos pugnar pela morte assistida, digna, sem dores nem sofrimento, acompanhada e, sempre que exista indicação, com cuidados paliativos.

Como nos lembra Séneca, a vida, qualquer homem a pode parar; mas a morte é imparável. Todavia, o morrer pode ser retardado, acelerado ou, raramente, atrasado por longo período, pelo que não surpreende que a estes estados terminais da vida biológica se tenha desde sempre dado a maior atenção. Assim, as questões da eutanásia, do suicídio com ajuda, do próprio suicídio mas, também, da morte provocada por compaixão têm estado em discussão desde a época remota em que na Grécia os homens começaram a reflectir sobre os mais importantes problemas com que na sua vida se deparam, ou seja, desde que há filósofos.

Estas questões permanentes ou persistentes não encontram, em regra, respostas consensuais. Assim acontece no caso vertente, em que a opinião pública e seu reflexo na lei rejeitaram sempre a morte a pedido (eutanásia) e o suicídio praticado com ajuda de outrem (suicídio assistido). De facto, em todo o mundo só três pequenos países admitem o recurso a estas práticas (Bélgica, Holanda, Luxemburgo) e apenas alguns estados dos EUA e a Suíça aceitam a ajuda ao suicídio.

Todavia, uma parte da sociedade bate-se por uma legalização destas práticas (ou pelo menos pela sua despenalização, numa fase inicial do projecto) e reacende, de tempos a tempos, a polémica. É o que acontece neste momento entre nós, pelo que a todos cabe o direito de entrar neste debate.

Para uma discussão minimamente aceitável urge definir os conceitos a que ela se circunscreve. Ora, ao começarmos por aí, logo deparamos com a inapropriada e ambígua expressão tantas vezes usada, a de morte assistida. De facto, se entendermos por essa designação o morrer acompanhado por familiares e/ou pessoas significativas, e sempre que possível assistido por profissionais de saúde, parece óbvio que todos, sem excepção, desejam uma morte assistida.

Já a eutanásia (morte provocada por uma pessoa a pedido da que é morta) e o suicídio com ajuda levantam bem mais graves problemas que devem ser perscrutados. A defesa destas intervenções invoca o princípio da autonomia para as justificar, segundo o qual seríamos livres de decidir o quando morrer. Não se pode ignorar que este argumento, ao absolutizar o direito a dispor de si mesmo, sobrevaloriza o conceito de autonomia, que é sempre relativo, limitado pela liberdade e interesses dos outros (privados e públicos), sujeito a influência e coacção. Para além disso, as práticas em questão implicam a autonomia de terceiros (do acto eutanasiante ou possibilitador de suicídio) que os executores teriam de aceitar ou não executar o pedido, em clara situação de conflito ou aquiescência, mas exigindo ponderação moral e sempre difícil decisão.

Por outro lado, o argumento de uma vida em grande sofrimento e/ou dor, intratáveis, apela à emotividade, mas não encontra apoio na prática médica. Temos hoje a possibilidade de tratar eficazmente a dor, mesmo a mais refractária e dispomos de técnicos e centros com saber e meios necessários para esta tão importante tarefa médica. A intervenção terapêutica (farmacológica, psicológica, eventualmente cirúrgica) pode levar a um abreviar da vida do doente, que se legitima por resultar, como acção lateral, de um tratamento médico indicado. De resto, a boa prática médica, consignada no Código da Ordem dos Médicos, exclui a obstinação terapêutica, o tratamento de situações terminais sem capacidade de melhora significativa, antes prescrevendo os cuidados paliativos que possibilitam a morte em paz.

Da mesma forma, o código interdita a chamada obstinação terapêutica (ou encarniçamento), ou seja a prática de meios inapropriados (diálise, ventilação, quimioterapia, etc.) em doentes em que se prevê a morte a curto prazo e em que tais medidas se revelariam inúteis e impróprias para se poder verificar uma morte serena e digna.

Seguindo esta linha de raciocínio, não se vislumbram argumentos de peso a favor da eutanásia, tanto mais que a abundante bibliografia internacional existente sobre a experiência registada nos três países em que estas práticas se encontram despenalizadas nos demonstra os seguintes factos.

As razões mais vezes invocadas para pedidos de eutanásia não consistem em estados dolorosos ou de sofrimento, antes na perda ou risco de perda de capacidades (físicas ou mentais), situações essas entendidas como privadoras da dignidade;

Estes pedidos são formulados, muitas vezes, por pessoas que vivem sós, sem companhia e que se sentem desmotivadas, sem alegria de viver, fartas de uma existência que nada lhes traz de positivo.

Sendo a esmagadora maioria dos suicídios originada por uma doença tratável (a depressão), os pedidos de ajuda ao suicídio estão maioritariamente enquadrados nesta situação.

Tem-se registado, ao longo da década de eutanásia permitida, na Bélgica e na Holanda, um alargamento das indicações e um abrandamento das restrições à eutanásia. Assim, já não se exige o pedido insistente, esclarecido e repetido de um adulto consciente e lúcido, bastando a declaração de familiares ou próximos de que essa teria sido a escolha da pessoa incapacitada ou demente. Simplificou-se também o processo administrativo, estendeu-se a eutanásia a menores e até a crianças (a pedido dos pais) e um grupo de intensivistas propôs que passasse a ser prática destes especialistas a sedação até à morte dos pacientes sem probabilidades de recuperação, com ou sem anuência da família!

Trata-se do exemplo mais flagrante do fenómeno da rampa escorregadia: o que inicialmente é excepcional torna-se, com o decorrer do tempo, banal ou até usual; neste caso, a eutanásia voluntária, restrita, excepcional, adquire os contornos da eutanásia involuntária, ameaçando um dia tornar-se social e eugénica, como meio de eliminação dos velhos improdutivos, marginais, dementes.

Por outro lado, sobre a relação médico-doente lança-se uma sombra potencialmente aniquiladora: será que o médico quer tratar-me ou encara a possibilidade de me eliminar?

Devemos pugnar pela morte assistida, digna, sem dores nem sofrimento, acompanhada e, sempre que exista indicação, com cuidados paliativos; não precisamos para nada de ajuda ao suicídio e de eutanásia, que a serem despenalizadas seriam acompanhadas por um cortejo de consequências calamitosas, acima apontadas.

 

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Como nos lembra Séneca, a vida, qualquer homem a pode parar; mas a morte é imparável. Todavia, o morrer pode ser retardado, acelerado ou, raramente, atrasado por longo período, pelo que não surpreende que a estes estados terminais da vida biológica se tenha desde sempre dado a maior atenção. Assim, as questões da eutanásia, do suicídio com ajuda, do próprio suicídio mas, também, da morte provocada por compaixão têm estado em discussão desde a época remota em que na Grécia os homens começaram a reflectir sobre os mais importantes problemas com que na sua vida se deparam, ou seja, desde que há filósofos.

Estas questões permanentes ou persistentes não encontram, em regra, respostas consensuais. Assim acontece no caso vertente, em que a opinião pública e seu reflexo na lei rejeitaram sempre a morte a pedido (eutanásia) e o suicídio praticado com ajuda de outrem (suicídio assistido). De facto, em todo o mundo só três pequenos países admitem o recurso a estas práticas (Bélgica, Holanda, Luxemburgo) e apenas alguns estados dos EUA e a Suíça aceitam a ajuda ao suicídio.

Todavia, uma parte da sociedade bate-se por uma legalização destas práticas (ou pelo menos pela sua despenalização, numa fase inicial do projecto) e reacende, de tempos a tempos, a polémica. É o que acontece neste momento entre nós, pelo que a todos cabe o direito de entrar neste debate.

Para uma discussão minimamente aceitável urge definir os conceitos a que ela se circunscreve. Ora, ao começarmos por aí, logo deparamos com a inapropriada e ambígua expressão tantas vezes usada, a de morte assistida. De facto, se entendermos por essa designação o morrer acompanhado por familiares e/ou pessoas significativas, e sempre que possível assistido por profissionais de saúde, parece óbvio que todos, sem excepção, desejam uma morte assistida.

Já a eutanásia (morte provocada por uma pessoa a pedido da que é morta) e o suicídio com ajuda levantam bem mais graves problemas que devem ser perscrutados. A defesa destas intervenções invoca o princípio da autonomia para as justificar, segundo o qual seríamos livres de decidir o quando morrer. Não se pode ignorar que este argumento, ao absolutizar o direito a dispor de si mesmo, sobrevaloriza o conceito de autonomia, que é sempre relativo, limitado pela liberdade e interesses dos outros (privados e públicos), sujeito a influência e coacção. Para além disso, as práticas em questão implicam a autonomia de terceiros (do acto eutanasiante ou possibilitador de suicídio) que os executores teriam de aceitar ou não executar o pedido, em clara situação de conflito ou aquiescência, mas exigindo ponderação moral e sempre difícil decisão.

Por outro lado, o argumento de uma vida em grande sofrimento e/ou dor, intratáveis, apela à emotividade, mas não encontra apoio na prática médica. Temos hoje a possibilidade de tratar eficazmente a dor, mesmo a mais refractária e dispomos de técnicos e centros com saber e meios necessários para esta tão importante tarefa médica. A intervenção terapêutica (farmacológica, psicológica, eventualmente cirúrgica) pode levar a um abreviar da vida do doente, que se legitima por resultar, como acção lateral, de um tratamento médico indicado. De resto, a boa prática médica, consignada no Código da Ordem dos Médicos, exclui a obstinação terapêutica, o tratamento de situações terminais sem capacidade de melhora significativa, antes prescrevendo os cuidados paliativos que possibilitam a morte em paz.

Da mesma forma, o código interdita a chamada obstinação terapêutica (ou encarniçamento), ou seja a prática de meios inapropriados (diálise, ventilação, quimioterapia, etc.) em doentes em que se prevê a morte a curto prazo e em que tais medidas se revelariam inúteis e impróprias para se poder verificar uma morte serena e digna.

Seguindo esta linha de raciocínio, não se vislumbram argumentos de peso a favor da eutanásia, tanto mais que a abundante bibliografia internacional existente sobre a experiência registada nos três países em que estas práticas se encontram despenalizadas nos demonstra os seguintes factos.

As razões mais vezes invocadas para pedidos de eutanásia não consistem em estados dolorosos ou de sofrimento, antes na perda ou risco de perda de capacidades (físicas ou mentais), situações essas entendidas como privadoras da dignidade;

Estes pedidos são formulados, muitas vezes, por pessoas que vivem sós, sem companhia e que se sentem desmotivadas, sem alegria de viver, fartas de uma existência que nada lhes traz de positivo.

Sendo a esmagadora maioria dos suicídios originada por uma doença tratável (a depressão), os pedidos de ajuda ao suicídio estão maioritariamente enquadrados nesta situação.

Tem-se registado, ao longo da década de eutanásia permitida, na Bélgica e na Holanda, um alargamento das indicações e um abrandamento das restrições à eutanásia. Assim, já não se exige o pedido insistente, esclarecido e repetido de um adulto consciente e lúcido, bastando a declaração de familiares ou próximos de que essa teria sido a escolha da pessoa incapacitada ou demente. Simplificou-se também o processo administrativo, estendeu-se a eutanásia a menores e até a crianças (a pedido dos pais) e um grupo de intensivistas propôs que passasse a ser prática destes especialistas a sedação até à morte dos pacientes sem probabilidades de recuperação, com ou sem anuência da família!

Trata-se do exemplo mais flagrante do fenómeno da rampa escorregadia: o que inicialmente é excepcional torna-se, com o decorrer do tempo, banal ou até usual; neste caso, a eutanásia voluntária, restrita, excepcional, adquire os contornos da eutanásia involuntária, ameaçando um dia tornar-se social e eugénica, como meio de eliminação dos velhos improdutivos, marginais, dementes.

Por outro lado, sobre a relação médico-doente lança-se uma sombra potencialmente aniquiladora: será que o médico quer tratar-me ou encara a possibilidade de me eliminar?

Devemos pugnar pela morte assistida, digna, sem dores nem sofrimento, acompanhada e, sempre que exista indicação, com cuidados paliativos; não precisamos para nada de ajuda ao suicídio e de eutanásia, que a serem despenalizadas seriam acompanhadas por um cortejo de consequências calamitosas, acima apontadas.