Dominar as estantes
Manguel, o humanista, mistura dois critérios de organização da relação com a biblioteca, governada ora pelo prazer ora pela utilidade, sem abdicar de nenhum deles nem dos fundamentos da sua distinção.
Num capítulo da História da Leitura no Mundo Ocidental — coordenada por Guglielmo Cavallo e Roger Chartier (editada em 1997) — Anthony Grafton explica como Maquiavel concebia e praticava dois tipos de leitura bem diferenciados. Uma é leitura de entretenimento, destinada a alimentar a imaginação (com predomínio dos poetas, clássicos ou modernos, maiores ou menores); outra é uma leitura prática, de que se extraem lições para as matérias mais graves da esfera política, em diálogo permanente com filósofos, mas sobretudo com historiadores como Plutarco, Tito Lívio ou Tácito.
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Num capítulo da História da Leitura no Mundo Ocidental — coordenada por Guglielmo Cavallo e Roger Chartier (editada em 1997) — Anthony Grafton explica como Maquiavel concebia e praticava dois tipos de leitura bem diferenciados. Uma é leitura de entretenimento, destinada a alimentar a imaginação (com predomínio dos poetas, clássicos ou modernos, maiores ou menores); outra é uma leitura prática, de que se extraem lições para as matérias mais graves da esfera política, em diálogo permanente com filósofos, mas sobretudo com historiadores como Plutarco, Tito Lívio ou Tácito.
Este estilo de organização humanista da relação com a biblioteca, governada ora pelo prazer ora pela utilidade, poderá parecer distante da que propõe Alberto Manguel (autor, também, de Uma História da Leitura, traduzida em 1998 na Editorial Presença e bem diversa da de Chartier e Cavallo), sobretudo neste livro A Biblioteca à Noite, mas não anda tão longe quanto isso. Basta imaginar Manguel como o humanista que decidiu misturar os dois critérios, de maneira a não se perceber qual deles está em vigor, mas sem abdicar de nenhum deles nem dos fundamentos da sua distinção. E, sobre isso, acrescentar a diferença (no fundo, meramente pessoal) entre um humanista com projectos políticos bem determinados e outro que transferiu todas as ambições para o próprio terreno dos livros e da suprema competência livresca.
Pode estranhar-se esta ideia, sobretudo pela parte que diz respeito ao uso instrutivo e prático dos livros. Todavia, o próprio Manguel é claríssimo nesse ponto. Logo no início da mencionada Uma História da Leitura, há uma página que decerto nunca sai da cabeça dos seus bons leitores e um parágrafo que, para a resumir, conclui nestes termos: “Todos nós nos lemos a nós mesmos e ao mundo que nos rodeia para poder vislumbrar o que somos e onde estamos. Lemos para entender, ou para começar a entender. Não temos outro remédio senão ler. Ler, quase tanto como respirar, é a nossa função essencial.” Sublinhar esta passagem serve para tirar da cabeça a ilusão de que Manguel possa ser alguma espécie de discípulo do Roland Barthes que escreveu O Prazer do Texto ou mesmo um espírito claramente afim do de Jorge Luis Borges. Esses não são, em rigor, leitores nem escritores humanistas: sem deixarem de tirar toda a espécie de proveito da vasta biblioteca que dominavam, faltava-lhes esta visão a que poderíamos chamar bibliocrática: a visão em que a leitura é promovida a definição antropológica.
A diferença em relação a Barthes é mais nítida. Esta Biblioteca à Noite tem quase nada de perverso. À noite era exactamente a hora a que Maquiavel se recolhia no escritório para dialogar, devidamente vestido como quem visita uma corte, com “os homens antigos” a quem perguntava pelo sentido dos feitos que tinham cometido. E, obtendo as respostas que procurava, era esse, agora que estava afastado do poder político, o auge do seu quotidiano. No final do capítulo A Biblioteca como Oficina, verdadeiro coração deste livro, Alberto Manguel cita uma parte da carta em que Maquiavel declara que durante as quatro horas nocturnas de leitura se esquece do mundo e de “todos os dissabores” por força desta razão simples: “passo para o mundo deles (os antigos)”. Abrindo o capítulo seguinte, declara que, ao jeito de Maquiavel, é à noite que frequentemente se senta “na companhia” dos seus livros (decerto sem se vestir para a ocasião, real ou figuradamente). As suas estantes também não lhe fogem na escuridão. Mesmo quando (e não é a primeira vez: veja-se a sua História da Curiosidade traduzida em 2015) descreve a dificuldade de as arrumar, acabam perfilando os livros de tal modo que eles nunca deixam de responder quando solicitados. É essa a maior diferença perante Barthes: aqui há sempre livros, obras, autores, nunca há essa matéria esquiva e pouco domesticável que era, para o ensaísta das Mitologias e de S/Z, o texto ou a escrita.
Também não encontramos, nesta noite clara, aquela espécie de biblioteca alucinada em que Borges era perito. A organização dos capítulos di-lo bem: é sempre A Biblioteca como X, desde A Biblioteca como Mito até A Biblioteca como Lar. E a própria biblioteca, cosmopolita e nunca esgotada, vai fornecendo as chaves para a autodecifração e entendimento dos seus vários “comos”. Mas a tranquilidade de proprietário de livros, com que Manguel parece sempre tomado duma confortável euforia bibliófila, não tem de se lhe aplicar como modo de leitura obrigatório. Basta considerar, em alternativa, a maior ausência deste livro, que não é a de algum livro ou texto que fosse fundamental mencionar: é a do gesto sem o qual ele não poderia ter sido escrito: o gesto de sublinhar. Nem no capítulo A Biblioteca como Oficina se fala de sublinhados com o sentido de uma operação importante. Essa ressurreição do escritório ou do estúdio humanista é, no entanto, a que mais merece ser sublinhada, para que uma leitura atravesse estas páginas e desenterre todos os seus fantasmas. O sublinhado pode começar numa frase da página 158: “Se a minha biblioteca é uma crónica da minha vida, o meu escritório guarda a minha identidade.”
Esta frase diria outra coisa se, em vez de identidade, falasse de estilo. Assim, é uma afirmação pré-freudiana, confiante na crença de que a verdade do eu está no lugar exacto onde metodicamente se concentra e isola (um espaço, uma antologia de objectos, certa arrumação e ordem), não no denso e partilhado caos das suas dispersões (família, erotismo, sonhos, etc.). Este ego leitor é, enfim, um insólito fantasma bibliográfico do sujeito cartesiano (leio e anoto os meus livros, logo existo) temperado por uma versão hedonista da ética, talvez mais protestante do que católica, do trabalho intelectual. Isso não faz concluir que a escrita de Manguel seja desinteressante ou inócua. Pelo contrário, converte-a numa alegoria bastante sugestiva do estado actual da literatura, da filologia e da erudição consideradas enquanto formas de poder. Um poder frágil, obrigado a fazer girar os seus próprios símbolos (a biblioteca será dos principais) e a equilibrar-se em cima deles para não se esfumar definitivamente no meio da floresta de sinais informáticos cujos arquivistas são empresas que contabilizam o anacrónico humanista como um utilizador entre milhões de outros.
A ironia é que a informática fornece à biblioteca uma forma bem concreta de ela não desabar tão cedo: na leitura de livros anotados, modelo clássico dos de Alberto Manguel, acelera prodigiosamente a procura das raridades literárias reveladas nas notas. Prova definitiva de que um bom livro não é o que nos promete conversas com o autor, mas aquele que nos encaminha para um livro ainda melhor. Parece desumano, mas é assim.