O Rio perdeu Freixo, mas a esquerda ganha com ele
Em 2016, perdendo, Marcelo Freixo está mais forte.
1. 19h14
Estou a começar esta crónica minutos depois do fecho das urnas no Rio de Janeiro, domingo, 30 de Outubro de 2016. A sondagem de boca de urna diz que o “pastor”, aliás, “bispo” da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) Marcelo Crivella será eleito prefeito com 57%. A pesquisa foi feita pelo IBOPE, com uma margem de erro de apenas dois por cento. O tio de Crivella deve estar a abrir champanhe, é o próprio Edir Macedo, fundador da IURD. Enquanto fazia tempo em Lisboa para o fecho das urnas no Rio de Janeiro vi um vídeo em que tio Edir literalmente treina os seus “pastores” para sacarem dinheiro aos fiéis. “Pastor” não tem de ser humilde, diz ele, “pastor” tem de ir na raça, com convicção de sacar mesmo, porque se um fiel não dá outro há-de dar. De facto: o que não falta por aí é descuido do Estado, gente desesperada; e uma igreja que se treina para sacar dinheiro aos desesperados nunca há-de querer que o desespero acabe. No mesmo vídeo, o tio Edir e seus “pastores” aparecem a mergulhar nas águas paradisíacas de Angra dos Reis e depois acocorados num templo da IURD em Nova Iorque, a contar notas no chão, colheita do dia.
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1. 19h14
Estou a começar esta crónica minutos depois do fecho das urnas no Rio de Janeiro, domingo, 30 de Outubro de 2016. A sondagem de boca de urna diz que o “pastor”, aliás, “bispo” da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) Marcelo Crivella será eleito prefeito com 57%. A pesquisa foi feita pelo IBOPE, com uma margem de erro de apenas dois por cento. O tio de Crivella deve estar a abrir champanhe, é o próprio Edir Macedo, fundador da IURD. Enquanto fazia tempo em Lisboa para o fecho das urnas no Rio de Janeiro vi um vídeo em que tio Edir literalmente treina os seus “pastores” para sacarem dinheiro aos fiéis. “Pastor” não tem de ser humilde, diz ele, “pastor” tem de ir na raça, com convicção de sacar mesmo, porque se um fiel não dá outro há-de dar. De facto: o que não falta por aí é descuido do Estado, gente desesperada; e uma igreja que se treina para sacar dinheiro aos desesperados nunca há-de querer que o desespero acabe. No mesmo vídeo, o tio Edir e seus “pastores” aparecem a mergulhar nas águas paradisíacas de Angra dos Reis e depois acocorados num templo da IURD em Nova Iorque, a contar notas no chão, colheita do dia.
2. 19h29
Peço a quem está no Rio que vá mandando notícias do pós-urnas. “Não vai dar Freixo”, diz o meu primeiro “correspondente”, logo a seguir à divulgação da sondagem. Acredito que cerca de 99,9% dos meus amigos cariocas votaram Marcelo Freixo, a alternativa a Crivella, e não digo 100% porque calhou alguns estarem em Lisboa durante este segundo turno das municipais brasileiras (e esta noite, talvez já vítimas do sortilégio do fado, falam quiçá em lançar-se ao Tejo com pedras nos bolsos, ou não voltar jamais ao Brasil, mas aposto que passa rápido). Não me lembro de nenhuma eleição em que pudesse, e quisesse, dizer isto: ter todos os amigos de um lado. A próxima nos Estados Unidos seria outro exemplo, mas Trump não a vai ganhar, enquanto que o sobrinho do tio Edir vai mesmo ser prefeito, com aspirações à presidência. Que todos os deuses valham contra o deus único.
3. 19h46
Marcelo Freixo convocara os seus apoiantes a seguirem a apuração dos resultados no Centro do Rio de Janeiro. “A Cinelândia não pára de encher”, relata uma amiga. “Vim num vagão de metro com todos cantando o jingle.” O jingle de campanha que Caetano Veloso gravou (“Não ataca, não abusa, que eu não deixo / eu voto 50 e fecho com Marcelo Freixo”). “Desde o Lulalá, jingle do Lula em 89, não se ouve um jingle pegar tanto.” Em directo lá da Cinelândia, a minha amiga continua: “Achei que a praça ficaria vazia, mas não. O clima é de festa, mesmo na perspectiva de vitória. A linguagem do carioca é a festa, não tem jeito. Me lembra o ‘Je ne fais rien sans gayeté’, do Montaigne. Bebês, crianças, velhos, camelôs a cantar. Tá bonito.” E na mensagem seguinte corrige: “*mesmo na perspectiva de derrota, quis dizer.” Talvez porque a linguagem do carioca é acreditar, não tem jeito.
4. 20h25
“Não deu”, remata outro amigo. Nos sites dos jornais a sondagem mantém-se sem novidades. Andando para trás nas notícias, Crivella aparece a dizer que Freixo é “o candidato da maconha, do aborto e das drogas”. Há-de ter rendido votos, repercutido na TV Record, cabeça do império de comunicação da IURD. A palavra da IURD transforma-se rapidamente em qualquer coisa que dê jeito. Freixo é um drogado, como quem o defenda é “comunistóide”. Falo por mim, do que apanhei pelas bandas do “pastoreio”.
5. 20h50
A minha amiga na Cinelândia: “Freixo subindo para falar agora, ovacionado, e já gritam fora, Crivella!” Mais adiante: “Outro grito que acaba de brotar: “É... só o começo!!!” Um amigo põe um vídeo da Cinelândia em directo, e vejo a praça cheia, ainda dia, céu nublado, hashtag: #vaiterluta.
6. 20h55
O rapper carioca B Negão escreve para os seus 11 mil seguidores no Facebook: “O saldo positivo desse cenário apocalíptico é que o Freixo está maior do que nunca, e se firma de vez como a grande liderança de uma nova forma de pensar e fazer política...e isso é realmente MUITO importante, ainda mais num momento tão bizarro quanto esse que estamos vivendo nesse país... Dias da Serpente (boa sorte pra todos nós, no meio de tudo isso...) Asé. Namastê.”
7. 21h50
Crivella é eleito com 59,37% dos votos. Saltando entre redes e mensagens vejo tristeza, zanga, choque pela perspectiva do que aí vem: quatro anos nas mãos de um farsante homofóbico que ameaça a conquista de um estado laico. E tristeza, zanga, choque porque a soma de nulos, brancos e abstenção é maior do que os votos que elegeram Crivella. A maioria dos eleitores escolheu não escolher. 1,3 milhões abstiveram-se (mais do que no primeiro turno) e 717,5 votaram nulo ou branco: dá mais de dois millhões de pessoas. Crivella teve 1,6 milhões, Freixo 1,15.
8. 22h17
Para derrotar Crivella teria valido a pena votar útil em qualquer candidato laico e fora da “banda podre”. Mas Freixo é muito mais do que isso, é talvez a melhor esperança política do Brasil, e uma das melhores esperanças da esquerda em geral. Há nele uma conjugação rara na política brasileira de frescura, integridade, energia e liderança partilhada. Sigo-o desde a campanha de 2012, travada em plena euforia económica do Rio de Janeiro, quando o prefeito Eduardo Paes foi reeleito por terços. Agora, em 2016, perdendo, Freixo está mais forte. O Rio perdeu Freixo, mais do que Freixo perdeu o Rio, valerá a pena a esquerda trabalhar em torno disto. Não vejo ninguém tão preparado para a luta: nada de entregar o Rio de Janeiro, e de caminho o Brasil.