Breve história da táctica de negociar orçamentos

Guterres tentou aprovar um Orçamento com o BE, mas a memória perdeu-se por causa do queijo. Mas tem no currículo um orçamento aprovado por toda a esquerda, muitos anos antes do actual, que começa a ser discutido esta semana no Parlamento.

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Contado assim parece o início de uma anedota: estavam o secretário-geral da ONU, o Presidente da República e o primeiro-ministro de Portugal a discutir o Orçamento de 1998… Os factos estão certos. António Guterres era o primeiro-ministro da altura, que negociou com o líder do PSD, Marcelo Rebelo de Sousa, com a ajuda de um dos seus jovens lugares-tenentes, António Costa, a aprovação das contas daquele ano da graça da Expo e do Nobel da Literatura para José Saramago.

O Orçamento passou. Mas houve uma negociação complexa, que põe a um canto os actuais dilemas de Costa, primeiro-ministro minoritário, que tem de negociar, à vez, com Catarina Martins e Jerónimo de Sousa e que depende, em absoluto, dos dois deputados d’Os Verdes de Heloísa Apolónia.

Guterres só dependia de Marcelo. Reza a lenda que ambos chegaram a acordo facilmente. O Governo abdicaria da sua proposta de “colecta mínima” de impostos no IRS (já existia para o IVA e passou a existir para o IRC, com outro nome, “pagamento especial por conta”) a troco do voto dos social-democratas que queriam tanto como os socialistas que aquele primeiro Orçamento da “era Euro” passasse.

Mas para que tudo parecesse um pouco mais difícil, Marcelo terá sugerido que o Governo fizesse finca-pé na colecta mínima, e dela só desistisse em pleno debate parlamentar, para sublinhar a “vitória” do PSD e a cedência magnânima de Guterres. António Costa escreveu então uma carta ao Presidente da Assembleia da República, Almeida Santos, que logo veio citada no Expresso, acusando o PSD de "instrumentalizar o próximo debate orçamental para fins eleitorais", por insistir na queda da colecta. Parecia mesmo que o Governo defendia a medida. Reza a lenda que não…

Mas a memória desta lenda, e dos factos, que guarda o então secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, António Carlos dos Santos, responsável político pelo tema, é outra. “A história é muito mais complexa do que isso”, afirma o fiscalista ao P2. Tudo está certo, alega, menos a complexa “jogada” política sugerida por Marcelo. Essa não passa, garante o ex-governante, de “uma efabulação”. Uma daquelas que fazem parte do universo “dos míticos poderes do professor Marcelo”, sorri.

Uma das versões da história garante que só os três personagens referidos no primeiro parágrafo deste texto estavam por dentro da negociação. António Carlos dos Santos duvida: “Não acredito que Sousa Franco [ministro das Finanças] não soubesse, e ele era muito leal comigo.” Além de que a campanha movida pelo PSD, continua o antigo secretário de Estado, com cartazes nas ruas a exigir “pena máxima para a colecta mínima” fosse do agrado do Governo… Isto “para além de a medida interferir nas previsões orçamentais”.

Há outro facto, dois anos depois, que vem pôr em causa outra lenda. A de que o Orçamento em vigor, o de 2016, foi o primeiro na história da democracia aprovado com os votos dos partidos da esquerda. Não foi. Este é apenas o segundo.

Foi em 1999. Marcelo ajudou Guterres a terminar o seu mandato com dignidade, aprovando três Orçamentos (1997, 1998 e 1999). Mas o último não acautelou uma verba importante: 1,5 mil milhões de dívidas do Serviço Nacional de Saúde. Entretanto, houve eleições e daí surgiram duas novidades: O PS repetia a maioria relativa, mas faltava-lhe apenas um deputado para a absoluta; e, pela primeira vez, o recém-criado Bloco de Esquerda elegia dois deputados. Um deles era Francisco Louçã, que lembra agora, 17 anos depois, que data dessa altura o primeiro “acordo entre PS, PCP e BE para a aprovação de um Orçamento”. Ainda que “rectificativo”, Louçã recorda que foi um passo “simbolicamente significativo”.

Nessa negociação estiveram envolvidos, além de Louçã, o líder parlamentar comunista, Octávio Teixeira, e o ministro das Finanças, Sousa Franco. Mas o significado não foi além da simbologia. Logo de seguida, quando foi preciso elaborar os Orçamentos de 2000, 2001 e 2002, o Governo do PS encontrou uma nova forma de negociação, do outro lado do hemiciclo. Jorge Coelho foi o principal elo entre as (várias) partes.

O primeiro Orçamento passou com a abstenção do CDS de Paulo Portas, e significou, na prática, algo que parece familiar aos espectadores do debate sobre o OE 2017: aumentos de sete contos das reformas dos 500 mil pensionistas rurais e das deduções do IRS das famílias que mantêm idosos a cargo. Era um Orçamento de “reposição do poder de compra”. Um dos últimos, aliás. Talvez fosse a isso que aludia a célebre frase de Guterres dita nesta altura, e a este propósito: “Entre a espada e a parede, escolho a espada:”

Mas – coincidência – havia um deputado do CDS que levava a cabo uma greve de fome no Parlamento, precisamente quando os deputados discutiam esse mesmo Orçamento. Daniel Campelo, presidente da câmara de Ponte de Lima, protestava (reza a lenda que também ele “simbolicamente”) contra a deslocalização de uma fábrica de queijos da sua região, o famoso Limiano. E se Jorge Coelho era primo de Paulo Portas, havia um amigo de Campelo no Governo socialista liderado por Guterres: José Sócrates.

As negociações com o deputado do CDS (que entretanto suspendera o mandato, para o reassumir no Outono, em pleno debate do OE 2001) avançaram e foram seladas num almoço, entre Campelo, Guterres e Coelho. A contrapartida foi exclusivamente local: novos acessos às auto-estradas, melhoria dos centros de saúde e apoio estatal à instalação de uma nova fábrica de queijo.

No ano seguinte (que seria o último) a negociação foi a mesma, desta vez em nome do “mundo rural”. Campelo tornou-se deputado independente, foi suspenso do CDS (diz a lenda que também “simbolicamente”), e absteve-se no final, viabilizando o Orçamento imediatamente anterior ao “pântano”.

Na biografia de Guterres, escrita por Adelino Cunha (Os Segredos do Poder), o actual secretário-geral da ONU faz um balanço claro: "Cometi um erro político ao permitir a aprovação do chamado 'orçamento limiano'; devia ter dito que um chumbo na Assembleia da República levaria à minha demissão. Se isso acontecesse, candidatava-me novamente a primeiro-ministro. Já o último Orçamento [2002] quis que fosse aprovado para salvaguardar os interesses do país. Foi uma medida cautelar para tomar as medidas que quisesse depois das eleições, incluindo a minha demissão."

O que pouca gente conhece é o “plano B” que Guterres chegou a pôr em marcha. Em 2000, conta Francisco Louçã, “Guterres convidou-me para um almoço privado em São Bento para discutir estratégia”. Foi uma conversa “muito solta” e sem que tenha surgido qualquer sinal do primeiro-ministro quanto ao Orçamento. Esses vinham apenas dos deputados socialistas, como Afonso Candal, que pediram a deputados bloquistas e comunistas que indicassem quais as suas propostas mais importantes para tentar inclui-las no diploma. Tudo normal…

Mas em 2001 houve uma mudança: “A única iniciativa que o Governo tomou foi um pedido de Pina Moura, que tinha sido meu colega de turma na faculdade, para uma conversa no ministério das Finanças”, lembra Louçã. Aí, o ministro das Finanças do PS foi claro. Sugeriu ao Bloco um “acordo sobre o Orçamento”. “Estaria disposto a dar-me uma lista das propostas. Disse-lhe que estávamos dispostos a discutir o OE tecnicamente se ele nos desse o diploma atempadamente. Não houve nenhuma discussão concreta. Queria saber da disponibilidade. A conversa não deve ter demorado meia hora. Ficou de enviar o OE e nunca enviou…”, lembra Louçã. Até hoje – ou melhor, até há menos de um ano – nunca mais o PS tentou coisa semelhante. E Sócrates bem precisou, nos dois orçamentos, de 2010 e 2011, que teve de aprovar sem maioria no Parlamento.

O primeiro foi fácil. O PSD, liderado por Manuela Ferreira Leite, tinha avisado que por causa da crise se absteria mesmo sem ler o documento. Um ano depois, já com Passos Coelho à frente do partido, o PSD voltou a deixar passar as contas do Estado. Mas houve uma curiosa negociação.

Foi na Lapa, um dos bairros lisboetas que menos precisam de se adaptar à “austeridade”, que foi assinado, às 23.14h do dia 29 de Outubro de 2010, o acordo entre os representantes dos dois maiores partidos portugueses. O território não era neutro, era a sala de jantar de Eduardo Catroga. O ex-ministro das Finanças era o líder negocial do PSD, mas é também amigo (e vizinho na Aldeia da Coelha) de Cavaco Silva.  

As negociações iniciaram-se seis dias antes. Quatro dias depois houve uma “ruptura”. O PSD abdicara, logo no primeiro encontro, de negociar a subida do IVA; o Governo cedera, depois, na introdução de limites às deduções fiscais. Feitas as contas, separavam-nos nessa altura menos de 0,2% do PIB. O que, sendo dinheiro, não valia o incómodo. Por isso, Catroga e os dois outros negociadores do PSD, Manuel Rodrigues e Carlos Moedas, foram almoçar juntos ao Café In, em Belém.

Do lado do Governo, Teixeira dos Santos dizia ter atingido o seu “limite” nas cedências. Miguel Relvas, então secretário geral do PSD, fez pressão para que o PS “reconsiderasse”. Durão Barroso disse, em Bruxelas, que tinha "esperança". Cavaco Silva convocou o Conselho de Estado. E José Sócrates pediu contenção aos seus ministros.

Catroga deu uma entrevista à SIC. Moedas deu outra à TVI. A RTP tinha convidado o ex-ministro das Finanças mas, ao saber da sua presença numa estação rival, cancelou o pedido de entrevista. Catroga, sem o saber, deslocou-se à televisão pública. Quando voltou para casa, já o "clima" tinha mudado. Sócrates e Passos estavam ambos de partida para Bruxelas. Cada um, à vez, ouviu os “conselhos” da chanceler alemã Angela Merkel.

Menos de 24 horas depois da “ruptura”, Teixeira dos Santos telefonou a Eduardo Catroga e as negociações regressaram. O acordo surgiu, já a noite ia avançada. E logo se percebeu o futuro. Álvaro Aguiar, o assessor do ministro das Finanças Teixeira dos Santos, decidiu não registar o momento para a posteridade, confiante de que no dia seguinte, no Parlamento, teria oportunidade de fotografar o acordo num local mais institucional.

Carlos Moedas e Manuel Rodrigues usaram o telemóvel e fizeram logo ali a foto, conscientes de que o momento seria irrepetível – no dia seguinte não haveria nenhum plano dos dois partidos em aproximação. As fotos saíram desfocadas. Sem sorrisos. Em nenhuma delas Santos e Catroga olhavam em simultâneo para a objectiva. Tinham ambos copos do Depósito da Marinha Grande na mão, com que brindaram ao último Orçamento antes da troika. Os copos estavam cheios de água.