Quatro personagens à procura de um autor
O sistema multipartidário tem regras diferentes do sistema bipartidário. O novo quadro obriga os partidos a mudar de cultura política e a re-definir a sua posição topológica.
As duas últimas eleições espanholas confirmaram o fim do bipartidarismo e o regresso ao multipartidarismo: os dois grandes partidos, o Partido Popular (PP) e o Partido Socialista (PSOE), deixaram de conseguir ter maioria absoluta sozinhos e têm de contar ou um com o outro, ou com os dois novos partidos, o Unidos Podemos e o Cidadãos, para formar maiorias no Congresso dos Deputados.
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As duas últimas eleições espanholas confirmaram o fim do bipartidarismo e o regresso ao multipartidarismo: os dois grandes partidos, o Partido Popular (PP) e o Partido Socialista (PSOE), deixaram de conseguir ter maioria absoluta sozinhos e têm de contar ou um com o outro, ou com os dois novos partidos, o Unidos Podemos e o Cidadãos, para formar maiorias no Congresso dos Deputados.
O sistema multipartidário tem regras diferentes do sistema bipartidário. Desde logo, deixa de haver uma concentração do poder executivo e parlamentar num só partido. Por outro lado, nenhum partido que queira governar não pode não partilhar o poder com os outros partidos. Por último, a bipolarização entre os dois maiores partidos é substituida pela clivagem entre o “arco da governabilidade” e os partidos marginais, enquanto o Governo tende a preencher o centro politico.
O regime constitucional espanhol foi desenhado para um sistema deste tipo e inclui o mecanismo da moção de censura construtiva para proteger Governos minoritários. A partir da investidura do novo Governo do PP, este só pode ser derrubado por uma maioria alternativa onde têm de estar os outros três partidos relevantes: os últimos meses demonstraram que essa maioria não pode existir. Nesse sentido, a duração do Governo depende da vontade do PP e a governabilidade fica entregue à oposição.
O novo quadro obriga os partidos a mudar de cultura política e a re-definir a sua posição topológica. O PP passou a ocupar o centro: recusa formar uma coligação governamental com o Cidadãos e, eventualmente, com os democratas-cristãos do Partido Nacionalista Vasco (PNV), e prefere manter um Governo minoritário com as mãos livres para fazer acordos parlamentares à direita e à esquerda. A credibilidade do PP para assumir este novo personagem moderado e dialogante podia ser maior se Mariano Rajoy não voltasse a ser o Presidente do Conselho, mas nem tudo mudou na política espanhola. Contra vontade, o Cidadãos passou a ser o parceiro de direita do novo Governo e corre o risco de vir a ser co-optado pelo PP: a sua sobrevivência depende da capacidade de Albert Rivera para reconstruir a identidade do novo partido como uma formação europeísta e liberal sem perder os novos eleitores.
O PSOE, pela sua parte, está perante uma escolha ao mesmo tempo óbvia e impossível: ou ocupa o seu lugar como o parceiro de esquerda no “arco da governabilidade”, ou alinha com os populistas radicais numa estratégia de bloqueio institucional que pode precipitar eleições antecipadas, em data marcada pelo Governo. A escolha, óbvia para a velha guarda socialista e para os “barões territoriais” que viabilizaram a investidura de Rajoy, é um dilema impossível para a jovem guarda de Pedro Sánchez, cada vez mais refém, política e ideologicamente, da extrema-esquerda. Por fim, o Podemos decidiu assegurar a sua autonomia política com uma “estratégia do exagero”, com um pé dentro do parlamento e outro nas manifestações convocadas para “rodear o Congresso” - uma linha na melhor tradição bolchevik de que os bolivarianos espanhóis não se querem separar. O objectivo de Pablo Iglesias continua a ser destruir o PSOE e, para tal, quer polarizar o Congresso entre o “arco da governabilidade” e uma “frente de rejeição” que comanda a luta contra o Governo do PP.
A radicalização à outrance do Unidos Podemos é o seguro de vida do Partido Popular. Mas a ameaça do separatismo na Catalunha - a questão decisiva do novo Congresso - pode impor uma nova fórmula para neutralizar a entente cordiale entre a herança bolchevik de Iglesias e o imobilismo maurassiano de Rajoy.
Com efeito, o rei Felipe VI tem a legitimidade necessária para mobilizar um “arco federal”, cujos pilares são o PP, o PSOE e o Cidadãos, que devem poder definir uma estratégia comum face à ameaça de secessão da Catalunha. Até à data, a performance de Rajoy e do PP neste domínio resume-se a uma política de intransigência cuja continuidade só pode beneficiar as tendências separatistas do nacionalismo catalão e prolongar um impasse perigoso. Pelo contrário, a conjunção dos três partidos moderados espanhóis torna possível uma revisão constitucional que reconheça a especificidade da Catalunha e do País Basco num quadro federal que garanta a unidade da Espanha e a legitimidade nacional do regime democrático.
Esse exercício de concertação, com a necessária mediação do Rei, não só é decisivo nos seus próprios termos, como pode ser uma forma eficaz de marginalizar o Podemos e as correntes separatistas, cujo isolamento se tornou indispensável para restaurar a normalidade democrática.