Estas conversas são o abrigo de quem está na rua
A Associação Conversa Amiga surgiu há dez anos com o objectivo de combater a exclusão e a solidão de quem dorme nas ruas de Lisboa. E fá-lo conversando. Hoje, dá às pessoas que acompanha um local próprio e seguro, companhia e saúde.
Está há um ou dois dias atracado no terminal de passageiros de Santa Apolónia. “Uns vão, outros vêm”, perde-se a conta. R não se cansa de admirar o enorme cruzeiro. Gostava muito de entrar num destes. Talvez fazer um cruzeiro.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Está há um ou dois dias atracado no terminal de passageiros de Santa Apolónia. “Uns vão, outros vêm”, perde-se a conta. R não se cansa de admirar o enorme cruzeiro. Gostava muito de entrar num destes. Talvez fazer um cruzeiro.
Será agora a sua vez? Afinal não. “Eu tenho tempo, quando a Joana puder”, afirma. R tem 33 anos e uma história dura que o trouxe para a rua. Vive em situação de sem abrigo há um mês, o suficiente para os seus caminhos se terem cruzado com os da Associação Conversa Amiga (ACA).
Esta é uma terça-feira como todas há mais de dois anos. Joana Teixeira, psicóloga comunitária, chega às 12h30 a Santa Apolónia para responder às dúvidas das pessoas em situação de sem abrigo que a associação acompanha. “Às vezes vimos só conversar.” Antes esteve em Arroios, desde as 10h30.
- Bom dia, está tudo bem? Amanhã vai lá à consulta?
Joana conhece os horários dos compromissos de quem acompanha. Sabe-lhes os nomes, os hábitos e as histórias de cor. “Começamos muitas vezes a falar sobre coisas triviais e a conversa desenrola-se. Conversamos sobre coisas que nos levam a ir fazer o cartão do cidadão, ajudar nos pedidos de rendimentos, articular com a segurança social ou pedir um quarto.” Dar a conhecer os direitos de quem acha que os perdeu ou não sabe que os tem é uma grande parte do seu trabalho.
Esta terça-feira, já combinou com três pessoas tratar da renovação do cartão do cidadão e na quinta-feira lá estará com M para tratarem da sua entrada num centro de alojamento. Mas estas conversas não se ficam pelo círculo informal. A ACA encaminha os casos – que sinaliza nas acções de rua – para o Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem Abrigo (NPISA), onde Joana se torna formalmente a gestora de caso. Actualmente, acompanha 45 pessoas.
Quando chega a Santa Apolónia, um grupo de cerca de dez pessoas espera. Guardam a vontade de falar.
A conversa é a base de todo o trabalho. “Às vezes pensamos erradamente sobre as coisas que eles precisam.” Como podem saber o que se precisa quem vive na rua, sem ouvir quem lá está?
Faz três anos que, destas conversas, perceberam a dificuldade que estas pessoas tinham em guardar os seus pertences. Daí surgiram os cacifos solidários, destinados a quem dorme na rua – para já, perto das zonas de Arroios e Santa Apolónia. São 24 cacifos, existentes desde Outubro de 2013, numa iniciativa apoiada pela Câmara Municipal e por uma campanha de crowdfunding.
Até ao final do ano, a associação espera ter mais 36 na rua, para completar a rede de 60 cacifos na cidade. Doze no Cais do Sodré, outros tantos no Oriente e no Rossio – nestes dois últimos locais o impasse com as juntas de freguesia mantêm-se.
Como destaca Duarte Paiva, presidente da ACA, os cacifos são um “local seguro e digno” que permite ampliar a rede de apoio: “Este projecto permite-nos ter um acompanhamento regular com cada vez mais pessoas e vimos que mais de 40% dos casos saíram da rua”. Quem os utiliza assina um contracto e compromete-se, a todas as terças-feiras, vir sentar-se à conversa com as psicólogas.
Estes armários amarelos nunca são revistados e as chaves são trocadas sempre que mudam de dono. Nos atuais 24 cacifos, já passaram 47 pessoas.
Para o sr. A, de “50 e tal anos”, os cacifos foram “uma ideia mágica”. É lá que guarda “a casa” antes de ir trabalhar. Assim, durante o dia, nem se lembra que dorme na rua. “Assim sei que as minhas coisas estão seguras e limpas. Ninguém rouba, nem a Câmara tira”.
No sábado passado, quando os voluntários chegam para conversar, o sr. A sorri e farta-se de sorrir. Esta não parece uma noite triste.
Um amigo
Era Natal, daqueles frios em que a solidariedade também nos aquece. Duarte Paiva, na altura estudante de arquitectura, foi entregar comida e roupa na rua. Percebeu aí: “Estas pessoas têm comida e roupa, mas isso não lhes chega.”
Nessa altura, veio-lhe à memória um senhor que dormia na rua, junto à casa onde morava, nos Açores.Tinha oito anos quando decidiu ir entregar-lhe comida: “Ele perguntou-me se o que levava era pão. Olhou-me com tal desdém que eu deixei o saco no chão e fui a correr para casa. Se calhar, eu dar-lhe pão era uma humilhação. O que é que ele queria?”
A pergunta cresceu com Duarte e, naquele Natal, foi capaz de lhe dar uma resposta: “Percebi que havia uma coisa muito importante que eu tinha para dar: o meu tempo.” Criou um blogue e convidou outros a virem conversar, nas ruas de Lisboa, com as pessoas que encontrassem a dormir na rua. Oferecia-lhes chá como pretexto para se sentar à sua beira. Percebeu que a conversa as satisfazia mais do que o alimento.
Onze anos depois, é ainda assim que funciona “Um sem abrigo, um amigo”, um dos sete projectos da ACA. “Há muitos grupos que distribuem comida e roupa. Todos essenciais, mas a conversa também o é. Nenhuma associação substitui a outra”, afirma.
Dois sábados por mês, às 20h, as quatro equipas de voluntários segue para a rua. Para Santa Apolónia, Oriente, Arroios e outra para o Cais do Sodré. O objectivo? Combater a exclusão e a solidão na rua. Compreender as pessoas. Ouvi-las.
“No início, às vezes, berram connosco. Só às vezes”, ri-se Duarte. “Mas à medida que vamos construindo esta relação de paridade, as pessoas conversam e abrem-se connosco.” Tudo começa com o contacto simples. A horizontalidade na fala, no modo de tratar o outro. Os laços que se criam são o grande triunfo da acção nas ruas.
Foi a partir deste projecto, criado um ano antes, que em 2006 surgiu a ACA. Hoje, a associação tem cinco pessoas em trabalho a tempo inteiro: Duarte, o presidente, Joana Teixeira, a psicóloga comunitária, Joana Guerreiro, psicóloga clínica, Joana Feliciano, na comunicação e marketing, e Diana Silva, enfermeira nos Quiosques da Saúde.
Aos voluntários exige-se brio. Responsabilidade. Humanidade. Ninguém sai para a rua sem passar pela selecção e formação, 20 horas no total. Há uma “lição” que Joana olha com “mais carinho”: porque devem dizer “pessoa em situação de sem abrigo” e não “sem abrigo” - porque “a condição de sem abrigo não as define como pessoas”, explicava mais tarde Guilherme Pereira, de 24 anos. Um dos 43 voluntários do projecto.
A casa de Santa Apolónia
- Limpem os pés antes de entrar que ainda hoje aspirei – graceja o sr. J. Não deixa que os voluntários se sentem no chão. “Tenho muitos sofás”, diz, ao distribuir cobertores.
São quatro voluntários no grupo de Santa Apolónia deste sábado: Guilherme, nutricionista, Maria José Felgueiras, professora de inglês, Mónica Correia, psicóloga, e Pedro Faria, médico. Noutros grupos há também empresários, estudantes, militares. Mónica é a coordenadora da equipa e veio de propósito para a lateral da estação para ver como estavam o sr. J e o sr. A. Da outra vez tinham-na deixado preocupada.
O sr. J, de 45 anos, já leu o livro que lhe levaram. E quer mais. “Claro que isto não era o que a gente queria. Mas desde que me dêem livros, a vai-se aguentado.” Desde que não sejam de Saramago ou José Rodrigues dos Santos, prontifica-se a acrescentar. Já deu uma boa oportunidade a ambos, mas “quem pode gostar de Rodrigues dos Santos depois de ler Dan Brown?”, pergunta.
Ainda há-de escrever um livro. Ele é que diz e Guilherme concorda. “Não uma autobiografia, uma autocrítica: sobre as peripécias.” Talvez também sobre as viagens e sobre os trabalhos: no matadouro, nas empilhadoras, nos camiões, numa grande empresa. E sobre a heroína. Depois, sobre o vício que acabou numa das ilhas do Atlântico. Nunca mais lhe tocou.
Desde que voltou a Lisboa, pede o mesmo que pediu nos Açores: “Não pedi rendimento, pedi um quarto.” Quer deixar o "número 1 da Rua da Amargura.”
Os voluntários começam a conhecer-lhes as dinâmicas - ainda que em Santa Apolónia as caras mudem com muita frequência. As namoradas, os amigos, a literatura, o cinema, o jornal do dia. A vida como ela é, mas na rua.
- Já vão? Fiquem para o serão – diz o sr. J. À saída, pede aos voluntários que fechem a porta, dá corrente de ar. Também há-de mandar consertar a janela da sua casa na rua.
Por volta das 22h, em frente à estação, serve-se o chá de baunilha e caramelo, uns copos atrás dos outros, e desejos de boa noite. Os voluntários seguem para o viaduto, o “Palácio de Inverno” do sr. J e o sr. A quando a chuva insiste em cair.
- Estas são dores que não interessam nem aos animais - conta a Pedro um outro sr. J, de 71 anos.
Cedo perceberam que havia uma falha “urgente” a colmatar: o acesso a cuidados de saúde, ainda que primários. “A maioria das pessoas que acompanhamos não têm acesso a um médico de família ou não têm como se deslocar a até ele”, nota Sofia Remtula, médica e coordenadora do projecto “Saúde na Rua”. A equipa que coordena tem quatro médicos que a cada sábado acompanham os voluntários do “Um sem abrigo, um amigo”.
Pedro é o médico de serviço em Santa Apolónia. Esta noite, mediu por três vezes a tensão e entregou alguns compridos para as dores. Algumas só a conversa cura.
Já passava das 23h, a hora em que está previsto acabarem as conversas, mas o grupo ainda tem que passar pelo outro lado do viaduto, para ver se alguém está acordado. Sim, um outro sr. J está desperto. Mónica pergunta sempre se se pode sentar. “Não se pode entrar sem pedir no espaço de outra pessoa, mesmo que seja na rua”, já tinha contado. Senta-se à conversa.