Uma rainha para todo o serviço

The Crown é a primeira produção britânica do Netflix e uma das suas maiores apostas — o P2 esteve nas filmagens com Stephen Daldry, John Lithgow e com a jovem Isabel II

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É aquela sensação de chegar a uma festa a transbordar de gente e distinguir finalmente os nossos amigos no meio da multidão. Só que eles não nos conhecem e estão vestidos de forma estranha, como se fosse 1953 e tivessem acabado de sair do funeral de uma rainha. É isso que parece uma pausa na rodagem de The Crown: no meio de centenas de figurantes, há caras familiares, aquele actor do filme absolutamente fabuloso e da pequena série britânica, mas cujo nome por vezes nos escapa — as estrelas, os actores que reconhecemos de 3.º Calhau a Contar do Sol ou de Dr. Who, ficaram no interior da Catedral de Southwark. A rainha de Inglaterra também está por perto.

A primeira produção britânica do Netflix tinha de ser isto: o século XX visto pelo prisma da família real britânica, a queda de um império, a velhice de Winston Churchill e a vida privada de Isabel e Filipe com Peter Morgan (o dramaturgo de A Rainha) e Stephen Daldry (o realizador de As Horas, O Leitor, Billy Elliot) ao leme.

No início da década de 1950, a rainha Maria acaba de ir a enterrar. Em Agosto de 2015, a recriação do seu funeral é empurrada por um chá em copos de papel na entrada da catedral ou por uma pastilha elástica a destoar com as insígnias militares da casaca. O elenco principal manteve-se então dentro da Catedral de Southwark, que faz as vezes da Capela de São Jorge no Castelo de Windsor, onde a rainha Maria foi sepultada. A sua neta, Isabel, interpretada pela actriz Claire Foy, passa nas suas pantufas às riscas. Tinha terminado a cena em que atirou terra sobre o caixão e que selou a confirmação de que a sua avó não veria a sua coroação. Sorri aos jornalistas estrangeiros. Cerca de 200 figurantes fazem as vezes das 2000 pessoas presentes no funeral histórico, central para um dos dez episódios que dia 4 de Novembro aterram no Netflix. Os actores estão bem ensaiados — dizem, a cada entrevista, uma variante da frase “The Crown é como se fossem dez filmes de uma hora”.

Uma produção de uns estimados 100 milhões de libras (112 milhões de euros), começou a ser filmada no fim de Julho de 2015. Quando o P2 visitou a rodagem nos últimos dias de Agosto, estavam ainda longe do término. Em Southwark já fora filmado um funeral e um casamento real. No dia seguinte, estamos nos estúdios Elstree, nos arredores de Londres, para ver a filmagem de um detalhe da coroação de Isabel II. Vagueamos também pelo interior reconstituído do Palácio de Buckingham. “Há coroações, casamentos e funerais — parece um projecto de Richard Curtis, não parece?”, ri-se Stephen Daldry em Elstree, aludindo ao autor de Quatro Casamentos e um Funeral e a outro nome que, como ele, é um dos mais conhecidos do cinema britânico das últimas décadas.

Traumas muito públicos

Daldry e Morgan são os nomes maiores do projecto. Há a imponência do americano John Lithgow como Winston Churchill, a leveza de Foy como a jovem rainha ou o galã britânico Matt Smith como Filipe, mas o realizador e o dramaturgo contrabalançam com o peso do seu trabalho recente o fardo da representação da família real, da Inglaterra do pós-guerra e da monarquia constitucional — um regime sobre o qual têm muitas opiniões. Stephen Daldry é um conhecido crítico da monarquia e dirigiu a peça A Audiência, escrita por Morgan depois da sua nomeação para o Óscar por A Rainha.

A Audiência, sobre os encontros semanais de Isabel II com os seus primeiros-ministros, foi uma espécie de ponto de partida para The Crown, mas o espectro alargou-se. “O que é fascinante para nós é a relação entre a família, por mais que seja disfuncional, e as ramificações constitucionais dessa família no governo”, explica Daldry. E “o que é fenomenalmente interessante para nós é quanto dos problemas, crises e relações pessoais da família são discutidos no executivo. Hobbies, casos amorosos, interesses pessoais, educação, tudo é discutido pelo gabinete do primeiro-ministro”, descreve o realizador. O inverso também o fascina — como, exemplifica, “era discutido à mesa da cozinha” de Isabel e Filipe o avanço dos movimentos de independência dos países que integravam o Império Britânico. O drama histórico tem já encomendada uma segunda temporada. Mas pretende estender-se ao longo de mais décadas do século XX. E retratá-lo.

Mas a série também quer fazer outro retrato: as conversas de Isabel e Filipe no leito matrimonial, os banhos conjuntos e os jogos de apanhada que gostam de fazer; os cães corgui de Isabel II, o mundo cada vez mais mediático a observá-los. O mundo tem um fascínio pela família real britânica e o Netflix quer apostar nisso para fazer o seu Downton Abbey, a sua Guerra dos Tronos. São séries que, pela sua britishness ou pelos mundos detalhados que constroem, vêm à baila em Elstree. “Não sei por que é que a nossa família real é tão interessante”, admite Matt Smith, que interpreta o príncipe Filipe. Isabel II “é a monarca que há mais tempo está no poder, passou por muitos primeiros-ministros, guerras, subiu ao trono muito cedo, é carismática”, diz, mas a extensão imperial do seu reinado desfez-se tardiamente, o que lhe deu uma escala planetária mais longa. E as cerimónias, as vestes, os romances proibidos, as coroações, os casamentos, os media, a inevitável Diana fizeram o resto para projectar a monarquia britânica para a dimensão do imaginário fantasioso.

A família real, claro, está ciente de que há uma série que a vai passar em revista, mas mantém o seu ar sisudo e os lábios firmemente comprimidos. Ainda assim, eles “têm muita influência”, ironiza o produtor Andrew Eaton. “Filmámos na Catedral de Ealey porque não fomos autorizados a filmar na Abadia de Westminster. Argumentámos que somos contribuintes, pagamos pela Abadia e pela família real por isso devíamos ser autorizados”, critica. Um ano depois, a Gucci seria autorizada a fazer um desfile de moda na Abadia. “É uma zona cinzenta política interessante”, sorri, matreiro.

Sobre “se somos pró ou contra a monarquia”, como diz Daldry ao P2, “a resposta é, de certa maneira, ambos ao mesmo tempo. Não estamos aqui para denegrir a família real nem para os sabotar, mas os desafios e o drama que viveram são extraordinários. Quase tudo aquilo de que falamos em todos os episódios é de domínio público, mas juntar tudo isso…” – é sabido que Filipe, o Duque de Edimburgo, e suas irmãs tinham simpatias nazis, exemplifica, mas concentrar esses e outros “traumas muito públicos” no “sumo do drama” tem um efeito que, admite, vai ser poderoso.

“Não temos como objectivo ter uma abordagem satírica sobre a família mas às vezes é impossível resistir-lhe”, ri-se Daldry, com a sala a rir com ele. A conversa continua a oscilar entre o sarcasmo e a reverência. “Por mais que as minhas tendências republicanas estejam em campo”, admite Daldry “espanta-me o meu respeito” pela rainha. “Não posso negá-lo, e por mais que me desafie — e acreditem, faço-o todos os dias — saio daqui a pensar que ela é uma pessoa espantosa.”

The Crown não passa ao lado de Portugal — não só pela passagem de Wallis Simpson e do Duque de Windsor pelo país, mas também nos bastidores da série. Numa sala cheia de roupa vintage a perder de vista, a coordenadora do guarda-roupa, Michele Clapton (premiada por A Guerra dos Tronos), explica como juntam ou confeccionam roupa da época — há visitas aos arquivos reais, tentativas de réplicas… e um alfaiate lisboeta. Foi um acaso, conta, uma viagem a Lisboa em que a deformação profissional obriga a meter o nariz em todas as lojas e potenciais arcas do tesouro. “Numa prateleira junto ao tecto estavam rolos e rolos de tecido original de fabrico britânico. Só por oito euros o metro”, ri-se, pegando no azul riscado que depois veio a ser material precioso nos fatos da série. “Ok, vamos mandar uma carrinha”, disseram ao lojista português.

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O parque temático da Coroa

A equipa almoça com vista para o George Lucas Stage — o primeiro Star Wars foi filmado aqui em 1977 — e para um descampado dos Elstree Studios onde brotam espécies que não costumam conviver. De um lado, o portão do Palácio de Buckingham; do outro, o tijolo escuro de Downing Street, cuja porta teve de ser aumentada em altura, à escala, para manter as proporções da imagem de Churchill a entrar para a sede do Governo britânico — é que John Lithgow é um Golias, homem alto e possante de 1,93m, e Churchill tinha menos 26cm; e, por fim, lonas negras e plásticos rodeados de luzes. É o exterior do enésimo Big Brother do Reino Unido, que começara na véspera. Existem no vazio estas peças de cenário, mas, “se continuarmos aqui mais duas temporadas, este terreno pode tornar-se um parque temático da coroa”, brinca o produtor Andrew Eaton.

Philip Martin, que com Daldry e Julian Jarrold é um dos três realizadores da série, faz a sua própria piada sobre a dimensão da produção em que está envolvido: “É como um road movie com as pessoas mais ricas do mundo.”

Tudo começa em 1947; a 1.ª temporada termina em 1953. Hoje, Isabel II é a monarca há mais tempo no trono — e num país a preparar a saída da União Europeia, uma decisão que Peter Morgan disse este Verão ter a certeza de que seria o voto da rainha. Agora, a série quer “explicar por que é que ela se tornou rainha — o pai [Jorge VI] nunca esperou ser rei, porque o irmão mais velho [Eduardo VIII] foi rei, mas depois ele abdicou” para se casar com a divorciada Wallis Simpson; “e ela nunca esperou ser rainha a não ser aos 30/35 anos e de repente torna-se rainha muito jovem. Peter escreve sobre o choque de ser uma jovem e ter esta responsabilidade atirada para cima dela”, resume o produtor Andrew Eaton entre um biscoito e um chá.

John Lithgow foi Rei Lear em 2014 e em 2016 é Winston Churchill, o primeiro-ministro que sobreviveu à II Guerra com Inglaterra e que, já muito idoso, “dizia a Isabel II como devia ser rainha”. Depois, ela desafiá-lo-ia. “Há um mar de melancolia em Churchill, que não suporta envelhecer, não ter poder. E tem uma espécie de complexo messiânico”, evoca Lithgow com a solenidade de actor veterano.   

Está ciente de que “já houve muitos Churchills — tive de carregar no delete em todas as minhas recordações” e também no facto de que é um Churchill americano. “É provavelmente o homem britânico mais ilustre do século XX, cuja voz, pronúncia, jeitos e idiossincrasias, historietas e citações — toda a gente conhece”. A equipa abraçou-o e ao seu Churchill, “Sinto-me um coração feliz que sobreviveu a um transplante de coração. O corpo [o resto do elenco] não me rejeitou.”

Ouvem-se gaivotas em Elstree e os jornalistas riem-se quando Lithgow conta que a irmã lhe disse, quando o viu curvado e com chumaços no corpo para parecer mais anafado como Churchill, “pareces um nabo”.

O detalhe e a fidelidade histórica são garantidos pelos documentos, muitas “páginas de biografias, documentos governamentais ou de ex-secretários” dos membros da família real ou do governo, explica Daldry. Nos bastidores há um “consultor real”, que trabalhou 30 anos com os Windsor, para corrigir gestos ou protocolos. E o resto será dramatização, uma linha ténue entre a ficção e a realidade.

Claire Foy e Matt Smith, o casal real enquanto jovem, dizem não querer ser caricaturas. Foy não quis “pôr a voz” da rainha a que a sua imagem televisiva a reduziu. Smith, que abraça a cadeira que está ao seu lado na mesa de Elstree, espera estar a ser Filipe “com respeito”. O peso de representar um dos homens mais conhecidos do mundo, pergunta o P2, influi nessa abordagem? “Quando fiz Dr. Who, senti o peso da representação, porque de certa maneira o Dr. Who é tão importante para algumas pessoas quanto o príncipe Filipe é para outras”, ri-se sobre a emblemática personagem de ficção científica naif britânica. “Sempre tive afecto pela monarquia, faz muito pelo nosso país. Gosto do Palácio de Buckingham”, tamborila na mesa despreocupadamente. Para o jovem actor, Filipe é “um pouco perigoso”, “cool”, “brincalhão”, o homem que abdicou da carreira militar para ser o marido da rainha. E agora o actor tem “mais afecto” pelo casal real.  

Claire Foy, alegre e borbulhante, será sempre comparada a Helen Mirren, que foi Isabel II no cinema e também em A Audiência. Mas a veterana britânica “estava a interpretar uma rainha que toda a gente conhece”, argumenta Foy, que será a jovem Isabel, uma filha que perde o pai, uma rapariga apaixonada, a mulher de um militar que dá festas em Malta. “Cresci com ela”, enfatiza, “todos os Natais, todos os anos da minha vida soube que ela existia e tive consciência dela. Aceitamos que essa pessoa é parte de quem somos.” Mas esse conhecimento da sua rainha “é como ler um livro sobre Tom Cruise — toda a gente tem uma perspectiva enviesada sobre ele”, explica. The Crown pesa sobre a sua cabeça. Escolheu ser a sua própria rainha Isabel II. “É como representar Shakespeare, 4000 pessoas já interpretaram uma personagem de Shakespeare. Portanto, temos de ser nós mesmas”, disse, quase falando no plural majestático.

O PÚBLICO viajou a convite do Netflix