Pippo Delbono na corda bamba: “É a arte que revela a verdade”

Figura maior do teatro europeu, o actor e encenador italiano esteve no Doclisboa a apresentar… um filme: Vangelo. Em busca de uma linguagem nova para filmar figuras que não pertencem à arte tradicional.

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Começar com Shakespeare para falar de Pippo Delbono faz, acreditem, todo o sentido. Em Hamlet, o príncipe dinamarquês pede a uma companhia de teatro que apresente uma peça específica, para “revelar” a verdade secretamente. Delbono, actor, encenador, dramaturgo, realizador, figura de determinação imparável e de uma atenção constante ao outro, conversador torrencial, pega na comparação, segue com ela para duas figuras maiores do teatro do século XX - Bertolt Brecht e Edoardo di Filippo – e acaba numa história real durante a rodagem de Vangelo, o filme que trouxe ao concurso internacional do Doclisboa.

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Começar com Shakespeare para falar de Pippo Delbono faz, acreditem, todo o sentido. Em Hamlet, o príncipe dinamarquês pede a uma companhia de teatro que apresente uma peça específica, para “revelar” a verdade secretamente. Delbono, actor, encenador, dramaturgo, realizador, figura de determinação imparável e de uma atenção constante ao outro, conversador torrencial, pega na comparação, segue com ela para duas figuras maiores do teatro do século XX - Bertolt Brecht e Edoardo di Filippo – e acaba numa história real durante a rodagem de Vangelo, o filme que trouxe ao concurso internacional do Doclisboa.

É por aí que começamos: nas sessões de trabalho com refugiados que aguardam a decisão das autoridades italianas no centro de acolhimento de Asti. Um dos homens que Delbono filma em improvisos “representa” uma lágrima e, assim que o take termina, ri-se. “A minha assistente disse-me às tantas «não gosto disto, porque ele não está a ser sincero, vês que se começa logo a rir...» E eu viro-me para ela e digo «Ma che cosa dice? Achas que a verdade são os actores que ficam três horas a pensar na tristeza da vida enquanto a câmara filma? Tu achas que pessoas que atravessaram o inferno, que viram a mãe morrer, vão representar a tristeza?» E aí ela percebeu, coitada. A verdade não é o naturalismo. É de lucidez que precisamos, não de naturalismo. Porque é a arte que revela a verdade.”

Delbono, uma das mais polarizadoras e aclamadas figuras do teatro europeu dos últimos 30 anos, discípulo de Pina Bausch, está longe de ser um desconhecido do público português. Os seus espectáculos têm sido regularmente apresentados entre nós e, no dia em que nos encontramos, tinha aproveitado a viagem-relâmpago a Lisboa para discutir trazer a Portugal o seu novo espectáculo, estreado no final de 2015 – que também se chama Vangelo, mas que pouco tem a ver com o filme (ver caixa). A sua carreira de cineasta, que chega aqui à sexta longa-metragem, é no entanto bem mais secreta. Não será por acaso; são filmes mais próximos do ensaio ou do bloco de notas, que nada têm a ver com as lógicas tradicionais da narrativa, da divisão entre “ficção” e “documentário”. Fala da experiência de uma amiga, a actriz Irène Jacob, com Michelangelo Antonioni no último filme do mestre italiano, Para Além das Nuvens. “Ela disse-me que ele apenas filmava um único take de cada cena. Ficava à espera do momento certo, e essa é a essência do cinema: parar um momento. Que é este. Não é antes, não é depois, é agora. Os meus filmes são todos assim: o que importa é o instante que tu crias, o modo como chegas a um momento único, irrepetível.”

Lançado, Delbono fala do jazz ou da música improvisada para definir o seu método de criação (em palco ou num plateau), como se fosse um trapezista que se atira sem rede. “Mas é isso, a nossa profissão!” exclama. “Diziam-me que não podemos estar na corda bamba o tempo todo, mas é isso que fazemos. Não pode haver psicologia! Quem sobe à corda bamba não pode dizer «ai, vou ser o rapazinho triste na corda bamba». Não: subo, atravesso-a, e é tudo. Basta!”, solta em italiano. “Um músico conhece bem as notas, os ritmos. Mas quando sobe ao palco e faz improvisação há uma libertação completa, entra e abre-se à discussão, à experiência.”

É por isso que Delbono tem um especial gosto por actores não-profissionais, sem-abrigos, deficientes, refugiados – gente que não vem “contaminada” por regras, escolas, ideias feitas. “São pessoas com uma capacidade extraordinária de estar frente a uma câmara,” explica, deslumbrado. “Há gente genial no mundo, e esse génio está muitas vezes fora do mundo do teatro ou do cinema. As pessoas olham para a Meryl Streep e dizem «ah, Meryl Streep!»” Delbono imita o ar de reverência com que se fala da actriz americana. “E eu olho para a Meryl Streep, e digo «sim, excelente actriz!», e pronto.” Pausa dramática. “No cinema «tradicional», conseguimos muitas vezes compreender que o actor ou a actriz estudou a personagem, e vemos um actor a representar uma personagem. Mas com estas pessoas... é alucinante: alguns são analfabetos, mas colocamos uma câmara à frente deles e algo se revela. Vês a força, a violência, o amor, a fúria, o ódio, porque naquele dia eles sentem isso, e encontro o segredo do que significa ser actor. Não quero fazer uma coisa intelectual, contemporânea. Como é que se sentem? O que é que pensam, hoje? Atravessaram o mar, viram a morte, estiveram 24 horas imóveis num barco. São heróis para mim, são pessoas que têm a lucidez da vida. E que me dão lições de sabedoria.” 

Fala de Vincenzo Cannavaciuolo aliás Bobo, o surdo-mudo analfabeto que Delbono foi buscar ao manicómio e se tornou numa figura central do seu teatro, mas cita também Safi Zakria, o refugiado nigeriano que conheceu em Asti e que ingressou no elenco fixo de Vangelo-espectáculo. Zakria acompanhou-o à estreia do filme no festival de Veneza. “A experiência de vida dele não tem nada a ver com a passadeira vermelha, e o Safi compreendeu perfeitamente a situação – apareceu bem vestido e dava-me conselhos de roupa! «Não podes ir com esses sapatos, não tires esse casaco senão vais parecer-te com um refugiado, porque é que fazes cara de mau, podes respirar um bocadinho...» Coisas de uma lucidez espantosa! E é aí que percebo como são pessoas extraordinárias. Não posso fazer um filme “normal” com estas pessoas. Uma ficção? Um documentário? É preciso inventar uma linguagem nova, cinematográfica, para contar estas histórias extraordinárias. E chego lá durante o processo de feitura.” Faz uma pausa. “Não acredito nos milagres, não sei o que é a vida, o que é o mistério da vida, mas sei que há milagres que existem, e que o cinema os faz existir muitas vezes. E os meus filmes, os meus espectáculos, estão cheios deles.”