VIH entrou nos EUA por Nova Iorque e o “doente zero” não foi o primeiro
Equipa de cientistas reescreveu a história da conquista dos Estados Unidos pelo vírus da sida. Corrigiu alguns factos, esclareceu outros e, desta vez com provas genéticas, confirmou que o chamado “doente zero” nos EUA não foi o primeiro do país. O número zero foi confundido com a letra O.
Chamem-lhes cientistas, historiadores epidemiológicos ou detectives genéticos (ou as três coisas ao mesmo tempo). O facto é que investigadores norte-americanos reconstituíram a história do início da epidemia da sida nos EUA. Recuperaram material genético com mais de 40 anos e decifraram o genoma completo do VIH- 1 de oito doentes. Foi assim, contam num artigo publicado na última edição da revista Nature, que confirmaram que o vírus da sida veio das Caraíbas e entrou na América do Norte por Nova Iorque em 1970 ou 71. Só depois chegou a São Francisco, na Califórnia.
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Chamem-lhes cientistas, historiadores epidemiológicos ou detectives genéticos (ou as três coisas ao mesmo tempo). O facto é que investigadores norte-americanos reconstituíram a história do início da epidemia da sida nos EUA. Recuperaram material genético com mais de 40 anos e decifraram o genoma completo do VIH- 1 de oito doentes. Foi assim, contam num artigo publicado na última edição da revista Nature, que confirmaram que o vírus da sida veio das Caraíbas e entrou na América do Norte por Nova Iorque em 1970 ou 71. Só depois chegou a São Francisco, na Califórnia.
O trabalho também esclarece definitivamente o mal-entendido que durava há décadas sobre o “doente zero” nos Estados Unidos. O número 0 foi apenas confundido com a letra O usada, neste caso, para assinalar que o doente não era da Califórnia (Out(side)-of-California).
É um daqueles célebres momentos em que a realidade estraga uma história. Foram precisos vários anos para esclarecer definitivamente que o “doente 0” não foi o doente zero da epidemia da sida nos EUA.
A história apelativa de uma pessoa identificada como doente zero começou com um relatório dos Centros para o Controlo das Doenças (CDC), divulgado em 1982. Neste documento, os especialistas identificavam um grupo (cluster) de homens que faziam sexo com homens que apresentavam sintomas de pneumonia e sarcoma de Kaposi. O relatório semanal sobre morbilidade e mortalidade dos CDC ficou na história, tendo sido a primeira vez que oficialmente se reconheceu a existência desta nova doença. “Descreviam uma doença horrível que estava a matar os homossexuais e foi assim que o mundo começou a perceber que estávamos perante uma nova síndrome”, recordou, na conferência de imprensa da Nature, Michael Worobey, da Universidade do Arizona e um dos autores do artigo.
Na revista, a equipa de investigadores esclarece que os especialistas dos CDC ligaram 40 homens em dez cidades norte-americanas a uma mesma rede sexual. Foi identificado um doente com sarcoma de Kaposi que servia para representar o centro daquela rede como um dos potenciais hospedeiros de um agente infeccioso. Foi identificado como “doente O” – um paciente que resida fora da Califórnia.
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A abreviação foi um erro. E por mais que os investigadores dos CDC se tenham esforçado por esclarecer o seu significado original, rapidamente, a letra O se transformou no número zero. O doente que não residia na Califórnia entrou na literatura com a designação de “doente zero”. Em 1987, o livro do jornalista Randy Shilts com o título And the Band Played On (adaptado para um filme de Roger Spottiswood, que em Portugal se chamou E A Banda Continua a Tocar) fortaleceu irremediavelmente o equívoco, identificando o “doente zero” como um assistente de bordo franco-canadiano sexualmente muito activo. A cobertura dos media sobre o polémico livro fez o que faltava, e o “doente zero” agora até tinha um nome e um rosto: Gaëtan Dugas, um homem jovem de olhos claros e corpo atlético.
Um grande mal-entendido, insistem os autores do artigo científico Genomas de VIH-1 dos anos 70 e do ‘Doente 0’ esclarecem a história inicial de VIH/sida na América do Norte. Reconhecendo que foram feitas várias tentativas sem sucesso para corrigir este erro e que “hoje ainda há muita gente que acredita nesta história”, a equipa espera que as provas apresentadas neste artigo científico coloquem um ponto final no enredo.
Um dos genomas de VIH analisados era precisamente deste doente e revela que era “típico das variantes norte-americanas desta altura e já não estava na base da diversidade norte-americana”. Ou seja, nada indica que Gaëtan Dugas foi o primeiro caso da epidemia da doença. “Este indivíduo era simplesmente um entre milhares de infectados”, esclareceu Richard McKay, da Universidade de Cambridge e outro dos autores do artigo, na conferência de imprensa.
Mas, e se este artigo é sobre a conquista dos EUA pelo VIH, os investigadores conseguiram perceber quem foi o doente zero? A resposta é “não”. E ainda que admitam que esse pode ser um dado interessante no campo da saúde pública para se saber mais sobre a chegada da doença, Richard McKay nota que olhar para um só doente também acarreta o risco de desprezar “factores estruturais, como a pobreza ou as desigualdades culturais”, que podem ter importância na origem de um surto.
Há outros riscos como, por exemplo, encarar o primeiro infectado como o culpado da disseminação do vírus. Sobre isso, Michael Worobey sublinha que “a direcção geográfica do movimento do vírus está clara, ele estava nas Caraíbas antes de se mudar para os EUA, mas ninguém deve ser culpado por espalhar um vírus que não se conhecia”. Aliás, o cientista faz questão de notar que na altura do salto do VIH das Caraíbas para os EUA, no início da década de 1970, o país importava “muitos produtos de sangue” do Haiti. E confirma que, apesar de sabermos agora quando foi, a pergunta “como chegou o vírus aos EUA” fica em aberto.