A sobranceria das elites culturais
Para os guardiões da alta cultura, Dylan é um impuro, como tal não lhe devia ter sido outorgada a honraria que apenas os puros merecem.
As polémicas são reveladoras. A que estalou à volta da atribuição do Nobel da Literatura a Bob Dylan tem-no sido. Há alturas em que a velha distinção entre baixa e alta cultura parece adormecida. À mínima oscilação, volta. É o que tem acontecido por estes dias.
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As polémicas são reveladoras. A que estalou à volta da atribuição do Nobel da Literatura a Bob Dylan tem-no sido. Há alturas em que a velha distinção entre baixa e alta cultura parece adormecida. À mínima oscilação, volta. É o que tem acontecido por estes dias.
Há dias, o escritor peruano Vargas Llosa, laureado com o Nobel em 2010, criticou a atribuição do prémio a Dylan, dizendo que é sintoma da dominante “cultura do espectáculo”. Para ele, a cultura implica “selectividade” e uma elite, e aquilo que se apresenta como democratização cultural não é mais do que a “banalização do frívolo”. No mesmo sentido foi Lídia Jorge. O prémio “confirma que a Academia está a viver o tempo do espectáculo em vez do da literatura”, afirmou. “Corre-se atrás da moda e não do trabalho verdadeiramente literário.” Já o americano Gary Shteyngart recorreu à ironia: “Entendo o comité do Nobel. Ler livros é difícil.”
A estes exemplos muitos outros se poderiam acrescentar, a maior parte deles provinda de escritores, ditos, sérios. É um posicionamento que forma uma linha separadora: nós e eles. Não existe o desejo de interrogar se a dinâmica intrínseca de um prémio como o Nobel não é por si espectacular. Da mesma forma que não parece haver noção do lugar que se ocupa. Llosa é capa de revistas cor-de-rosa. Utiliza a notoriedade para se pronunciar sobre as mais diversas matérias. É estrela em festivais literários, ouvido por discípulos que sorvem as palavras do seu guia como o público dos concertos as letras de cantores. Mas, claro, nada disso faz parte da tal sociedade do espectáculo.
É fácil dizer que o inferno são os outros. Difícil é assumir que se integra o mesmo sistema que se pretende criticar. Por outras palavras: como acabar com a banalidade com complexos de superioridade? Não é por acaso que a maior parte dos críticos do prémio afirmou, paternalisticamente, que até gostava de Dylan.
A sua falsa tolerância é desmascarada quando se percebe o que não apreciaram: o prémio ter sido concedido a um poeta-cantor, ou seja, a alguém portador da nódoa da baixa cultura. Para os guardiões da alta cultura, é um impuro, como tal não lhe devia ter sido outorgada a honraria que apenas os puros merecem.
Pior do que isso. A partir do momento em que o sistema — ou seja, a Academia — permitiu que um impuro entrasse no seu templo, os puristas têm agora receio de que este seja inapelavelmente poluído.
Dylan é antes de tudo um cantor e escritor de canções e neste contexto a sua poesia torna-se secundária face à ramificação que divide a baixa e a alta cultura, como há dias assinalava o músico e compositor António Pinho Vargas. Ser cantor assinala-o como símbolo de inferioridade. Neste quadro é como se tudo o resto fosse secundário: a qualidade ou não como poeta ou se aquilo que produz é ou não literatura.
A desconfiança é recíproca. Também existe no sentido contrário. Quem sabe se não é isso que motiva o silêncio de Dylan? Estas barreiras artificiais implicam uma hierarquia de valores. É pena. O mundo é demasiado complexo para linhas divisórias que estão apenas nas construções sociais, porque as práticas artísticas são entidades que possuem uma dignidade intrínseca e igualitária.
Não se trata de relativizar. Nem de suspender juízos. Mas de compreender cada prática nos seus próprios termos, em relação dinâmica com outras, percebendo diferentes concepções, porque interessarmo-nos pelas mais diversas experiências não menoriza, pelo contrário, só enriquece.
Claro que, para lá das construções sociais, a realidade é bem mais estimulante e difusa. O sentido último da cultura foi-se complexificando nas últimas décadas com a problematização das ramificações clássicas (alta vs. baixa cultura, minorias vs. massas ou arte vs. entretenimento), da mesma forma que existem cada vez mais práticas de fronteira, híbridas, tangenciais.
Esses agentes de fronteira acabam por ter um papel relevante. Alguns deles são simultaneamente escritores, cantores ou artistas, estabelecendo pontes entre diversos territórios, pertencendo a vários sem a pressão de terem de escolher, assumindo essa dualidade, mostrando-nos que a realidade é tantas vezes mais entusiasmante do que os muros morais onde a tentamos enclausurar.