Um ano para Faustin mostrar a comunidade como resistência
Na recta final da sua presença em Lisboa como Artista na Cidade, Faustin Linyekula apresenta cinco espectáculos numa cidade a que também já passou a pertencer.
Na conferência de imprensa da sua apresentação como Artista na Cidade 2016, em Janeiro, o congolês Faustin Linyekula recordava a sua chegada a Lisboa em 2002. Ao aterrar na Portela, os seus olhos haviam de espantar-se perante um avião abandonado, que pertencera à frota particular do ditador Mobutu, identificado com a bandeira da República do Zaire. Num instante, era como se Lisboa deixasse de imediato de lhe ser estranha. “Não me é uma cidade estrangeira, porque há um pedaço da minha história aqui”, disse então.
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Na conferência de imprensa da sua apresentação como Artista na Cidade 2016, em Janeiro, o congolês Faustin Linyekula recordava a sua chegada a Lisboa em 2002. Ao aterrar na Portela, os seus olhos haviam de espantar-se perante um avião abandonado, que pertencera à frota particular do ditador Mobutu, identificado com a bandeira da República do Zaire. Num instante, era como se Lisboa deixasse de imediato de lhe ser estranha. “Não me é uma cidade estrangeira, porque há um pedaço da minha história aqui”, disse então.
Passados nove meses sobre o arranque oficial desta ligação cultivada durante todo o ano com Lisboa, a familiaridade entre artista e cidade tomou várias formas, desde projectos desenvolvidos com alunos de escolas ou a sua peça autobiográfica Le Cargo levada a bairros periféricos como Vale da Amoreira, Padre Cruz ou Bairro do Condado. “A um nível pessoal”, confessa Linyekula ao PÚBLICO numa altura em que se apresta para iniciar uma série de cinco espectáculos que constitui o último grande fôlego da sua condição de artista residente, “pela primeira vez senti que podia viver na Europa.” E tanto sentiu que tornou esse desejo consequente, comprando uma casa em Lisboa.
Ao cruzar a dança com o teatro em cada uma das suas peças para reflectir sobre a História do Congo a partir da sua própria biografia, Linyekula sempre se definiu com um contador de histórias. E o relato sobre a descoberta da sua recente casa em Lisboa, de facto, mais parece ficção. Casado com a produtora francesa Virginie Dupray, há mais de dez anos que ambos mantêm uma residência parisiense na qual não passam mais de dois meses por ano. Faustin nunca se sentiu verdadeiramente em casa nessa morada de Paris. Mas no dia em que Virginie lhe ligou a dizer que, após visitar várias casas, encontrara o espaço perfeito para os dois habitarem em Lisboa, mal pôde acreditar quando ela lhe revelou que ficava na… Rua do Zaire.
De certa forma, foi o culminar de uma ligação a um país que foi descobrindo, por exemplo, em Portugal – a Flor e a Foice, livro de Rentes de Carvalho. “Percebi aquilo que havia em Portugal do sonho de ser um império e depois tudo colapsar. Esta pequena porção de terra, como ele lhe chama, separada da Europa por Espanha e do resto do mundo pelo oceano dá-lhe uma certa fragilidade. Não tem a arrogância daqueles que olham para si como o centro, como acontece em Paris ou em Berlim.” Agora, ao regressar numa altura em que a discussão sobre o próximo Orçamento do Estado invadia os jornais, sorriu ao ver os grandes cartazes da esquerda nas ruas apelando ao “não ao bullying da Europa, não à subjugação” e reivindicando “o controlo do próprio destino”. Não havia como não encontrar aqui uma flagrante familiaridade.
Cinco espectáculos
Ao pensar na forma como gostaria de se apresentar em Lisboa, Faustin Linyekula concluiu que teria de seguir o mesmo pensamento que o tem levado à criação em Kisangani, em que através de uma obra que classifica como “uma espécie de auto-retrato permanente” tenta “criar um espaço de respiração.” A necessidade desse espaço torna-se mais gritante quando, passados mais de dez anos sobre a estreia de Le Festival des Mensonges (28 e 29 de Outubro, São Luiz), as crónicas quotidianas que Bibish Mumbu escreveu sobre a vida em Kinshasa levam Linyekula a desabafar que “é como se nada tivesse mudado”. Inspirado por uma história de Luis Sepulveda em que numa aldeia da Patagónia as pessoas reuniam anualmente para passar uma noite em branco a contar mentiras e votar na maior de todas, Faustin imaginou como poderia semelhante dispositivo existir numa cidade como Kinshasa, colocando em confronto os textos de Bibish e os pomposos discursos políticos, gerando entre eles uma tensão óbvia. “Mobutu falava do quão grandiosos éramos enquanto povo e enquanto país, ao mesmo tempo que tínhamos uma realidade verdadeiramente miserável e em que toda a gente sonhava fugir”, diz.
Neste “cabaret a céu aberto”, replicador do ambiente dos concertos das bandas congolesas em que a música coincide com barbecues e venda de bebidas, Faustin quis evocar também a tradição local de o portador de más notícias junto de uma família esperar que toda a gente tenha comido e as crianças estejam deitadas para, só então, “quando todos estão fisicamente bem, anunciar essas más notícias”. Ao mesmo tempo, num país em que “dizer certas coisas” pode ainda levar à prisão, música e dança ajudam a suavizar cada golpe.
Ainda no São Luiz, Faustin levará a palco Sans Titre (2 e 3 de Novembro), resultado do seu encontro com o coreógrafo e bailarino Raimund Hoghe. A partir de várias conversas desembocadas na ideia de que a História para Faustin é um grito e para Hoghe é silêncio – “mas um silêncio antes ou depois do grito” –, o congolês dança os seus próprios movimentos num espaço físico e mental coreografado pelo alemão. Para lá das significações de um africano a navegar num espaço europeu, a Linyekula interessa sobretudo que os filtros de uma longa relação histórica possam sair do caminho para colocar a questão: “agora que estamos aqui, como é que avançamos?”
É uma questão que emerge também em More More More Future (10 e 11 de Novembro, Gulbenkian), peça que tenta reclamar um futuro quando ele é sistematicamente negado pelo país. Aqui encontramos a ideia mais recorrente na obra de Linyekula: “a necessidade construção de um espaço em que possamos cuidar uns dos outros, cuidar da nossa imaginação.” É uma forma de subversão que elege a vida em comunidade e a procura de partilha como lugar de resistência, desde que “o bem-estar não signifique escapar”.
Se há coisa que Faustin faz, e temos como exemplo Statue of Loss (CCB, 18 e 19 de Novembro) é não permitir o esquecimento. No caso, resgata a memória dos soldados congoleses que participaram na I Guerra Mundial nas fileiras belgas. Nos mesmos dias, Triptyque Sans Titre recuperará o seu início, quando as histórias não conseguiam ser contadas por fazerem tanto barulho. Tal como a resistência de More…, inspira-se na energia transbordante e na vida dura da maior cidade do país, e em como no fim do dia, num dos muitos terraços de Kinshasa em que se pode beber uma cerveja fria, estes são momentos para celebrar a sobrevivência e preparar o dia seguinte.
O artista na sua cidade
Em paralelo com a programação do Artista na Cidade que Faustin Linyekula confessa funcionar como “uma longa pausa para clarificar aquilo que temos andado a fazer” e que reforça a certeza de que é necessário continuar a fazê-lo, durante o ano de 2016 o bailarino e coreógrafo congolês tem dedicado boa parte do seu tempo ao projecto de construção de um centro de tratamento de águas que possa abastecer a população da região de Kisangani de água potável. Um centro que deverá funcionar também como centro de artes onde as crianças possam experimentar fazer música, filmes, fotografia ou dança. Depois de consultada a população para perceber o preço que estaria disposta a pagar para ajudar à sustentabilidade do projecto, o início da construção está previsto para Janeiro e a inauguração para Agosto de 2017. Será, diz Linyekula, mais “um espaço para nos lembrarmos de que ainda estamos vivos e estamos aqui”.