O grande e supremo juiz
Karl Kraus encarnou, com a sua escrita satírica satírica, a figura diabólica de um “eterno descontente” e de um juiz implacável que chama o mundo inteiro a julgamento.
Em Viena, na viragem do século XIX para o século XX, até ao final da Primeira Guerra, quando o Império Austro-Húngaro se desmoronava sob a forma de um “feliz apocalipse”, um homem só, Karl Kraus, escritor, dramaturgo, poeta, anti-jornalista e sobretudo satirista, “o maior satirista de língua alemão” (assim lhe chamou Elias Canetti), montou um tribunal perante o qual mandou comparecer não só os seus pares, os vivos e os mortos (descer aos infernos não foi para ele uma interdição) mas o mundo inteiro. Fê-lo com um furor apocalíptico e arvorado em juiz supremo da vida intelectual e até da humanidade. Para o definir, serviram nomes de terrível grandeza: profeta, mágico, guerreiro, juiz, ogre. Viena foi, nessa grande época, o mundo inteiro, como dirá Diotima, uma personagem de O Homem sem Qualidades, de Robert Musil. Ou, pelo menos, uma “civilização” onde ganhou figura um dos rostos do modernismo europeu, tardiamente descoberto. O “feliz apocalipse” vienense foi assim nomeado, num lúcido olhar retrospectivo, por outro génio da mesma constelação mitteleuropeia, Hermann Broch.
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Em Viena, na viragem do século XIX para o século XX, até ao final da Primeira Guerra, quando o Império Austro-Húngaro se desmoronava sob a forma de um “feliz apocalipse”, um homem só, Karl Kraus, escritor, dramaturgo, poeta, anti-jornalista e sobretudo satirista, “o maior satirista de língua alemão” (assim lhe chamou Elias Canetti), montou um tribunal perante o qual mandou comparecer não só os seus pares, os vivos e os mortos (descer aos infernos não foi para ele uma interdição) mas o mundo inteiro. Fê-lo com um furor apocalíptico e arvorado em juiz supremo da vida intelectual e até da humanidade. Para o definir, serviram nomes de terrível grandeza: profeta, mágico, guerreiro, juiz, ogre. Viena foi, nessa grande época, o mundo inteiro, como dirá Diotima, uma personagem de O Homem sem Qualidades, de Robert Musil. Ou, pelo menos, uma “civilização” onde ganhou figura um dos rostos do modernismo europeu, tardiamente descoberto. O “feliz apocalipse” vienense foi assim nomeado, num lúcido olhar retrospectivo, por outro génio da mesma constelação mitteleuropeia, Hermann Broch.
Viena foi para Kral Kraus um laboratório e um posto de observação do fim do mundo. Esta linguagem apocalíptica soa hoje a uma velharia com alguns pergaminhos, mas naquele tempo nada que estivesse abaixo da catástrofe era digno de ser pensado. Recordemos que quase ao mesmo tempo em que é publicado Os Últimos Dias da Humanidade (que Kraus escreveu durante a guerra e, na sua versão definitiva, saiu em 1992) surgiu na Alemanha O Declínio do Ocidente, de Spengler. Mas as afinidades entre ambos limitam-se às conclusões do diagnóstico, uma palavra fundamental dessa época que se apresentou e se representou como um doente em estado terminal. Quanto ao resto, nada os aproxima: a cultura alemão não tinha nada do espírito vienense, era uma outra “civilização”.
Como muitos dos escritores, artistas e intelectuais vienenses, Karl Kraus era oriundo de uma província do Império. Nasceu numa pequena cidade da Boémia, Jicin, em 1874, mas aos três anos veio com os pais - uma família de judeus comerciantes abastados - viver para Viena. Em 1897, a sua veia satírica e polémica revelou-se num pequeno livro que se chamava A Literatura Demolida. Um dos cafés de Viena frequentado por um círculo de escritores e artistas, o café Griensteidl, tinha sido demolido e isso serviu de pretexto a Kraus para ele demolir o maneirismo decadente e a complacência desse grupo de notáveis. Começou assim a sua acção de polemista e moralista sem maneiras, intransigente em relação aos seus pares e aos intermediários culturais – jornalistas, críticos e directores de teatro. Dois anos depois, em 1899, funda uma revista Die Fackel (A Tocha), que ele manteve até morrer, em junho de 1936. É uma história prodigiosa de sobrevivência, graças à obstinação e tenacidade de um homem só, de uma publicação periódica. Novecentos e vinte e dois números dessa revista concebida como um anti-jornal foram publicados ao longo de trinta e sete anos. Até 1912 foi um periódico bimensal que contou com a colaboração ocasional de nomes importantes (Heinrich Mann, Strinberg, Wedekind, Werfel e muitos outros); a partir de 1912, com uma periodicidade irregular, tornou-se uma empresa sustentada por um homem só, desempenhando ao mesmo tempo as funções de proprietário (graças à fortuna do pai, que herdou ainda novo), autor, redactor e editor. Die Fackel foi a arma que Kraus usou para conduzir um interminável processo contra o seu tempo, a sua cidade e os seus contemporâneos. sempre ele, o grande inimigo do seu tempo e dos seus contemporâneos. E o primeiro alvo da sua ferocidade foi a imprensa, veículo favorito da cultura liberal vienense do século XIX. Ao jornalismo, chamou ele a “magia negra”. Na enorme colecção de aforismos que escreveu, há uma parte importante dedicada aos jornais e aos jornalistas, nomeados com verve por um juiz implacável que não se importava nada de cometer injustiças. São da sua lavra estes ditos e escritos: “A missão da imprensa é divulgar o espírito e, ao mesmo tempo, destruir a inteligência”; “Os jornalistas escrevem porque não têm nada a dizer, e têm algo a dizer porque escrevem”. O que ele denunciou na imprensa foi, antes de mais, aquilo a que chamava a 'fraseologia' (Phrase), uma forma de corrupção estética e ética da linguagem, através do estereótipo, da falsificação, da tagarelice e da opinião (a simples ideia de “opinião pública” era uma coisa odiosa para Kraus). O jornalismo é assim visto como um lugar de onde desapareceu a responsabilidade fundamental do homem em relação à linguagem. Reconhecemos aqui a atitude analítica e de crítica da linguagem própria da cultura austríaca, o que a tornou tão apta a um humor de autoflagelação, tão desconfiada da História e do pensamento dialéctico. Do emudecimento de Lord Chandos (o escritor, imaginado por Hofmannsthal, que renuncia à escrita e faz um voto de silêncio quando perde a confiança no poder referencial das palavras) ao grito final de Moisés na última ópera de Schönberg, “Oh palavra, palavra que me falha”, das análises de Wittgenstein à posição moral de Kraus, todo o pensamento vienense afirma uma desconfiança radical na linguagem e, por conseguinte, a necessidade de a submeter a uma crítica.
Kraus atravessou o meio artístico, literário e intelectual de Viena como uma fora da lei, sem escrúpulos, em nome de uma moral inflexível. Os processos que lhe foram movidos apenas serviram para ele conquistar o palco. Na verdade ele foi um homem de palco, um actor do verbo, da escrita inviolável, da razão de um homem só contra todos. Os testemunhos de quem o ouviu a declamar os seus poemas e a ler os seus textos perante um auditório são unânimes no reconhecimento do seu génio. Parte da fama que conheceu em vida deve-se às suas 'performances'. Fez mais de setecentas leituras públicas e conferências ao longo da vida. Em palco, sempre só, ele encarnou a figura de um grande actor: “Eu sou talvez o primeiro exemplo de um escritor que vive a sua escrita também como um actor”, escreveu ele. Enquanto actor, foi um génio da mímica e do poder de desmascarar o adversário, capaz, portanto, de dar um grande espectáculo. Era o seu “teatro da poesia”, que ele opunha ao “teatro dos encenadores e decoradores”. “Decoração”: eis a palavra que designa o objecto dos ódios mais inflamados de Kraus. Viena era a capital da decoração, isto é, da mentira e da imitação. Adolf Loos, que partilhou com Kraus um olhar impiedoso sobre Viena e outras afinidades intelectuais e artísticas, chamou-lhe “a cidade Potemkine”. Loos, o autor de Ornamento e Crime, o arquitecto do edifício da Michaelerplatz que o imperador Francisco José tinha repudiado e se recusava a olhar de frente, foi o maior cúmplice do puritanismo estético e ético de Kraus. Um fio bem visível liga a batalha de Kraus contra a corrupção da linguagem pelo jornalismo, a de Loos contra a decoração e o Kitsch, e a de Musil, mais tarde, contra a estupidez. São três estações obrigatórias do modernismo vienense.
Da união do temperamento trágico com a verve satírica e a retórica apocalíptica nasceu a obra desmesurada que tem por título Os Últimos Dias da Humanidade, escrita durante a Primeira Guerra. Chamemos-lhe drama ou tragédia, é uma obra monstruosa, dotada de um furor retórico no mais alto grau. Lembremos que paralelamente a esta obra, Kraus publicou em 1919 uma recolha de textos que já tinham saído na sua revista, Die Fackel, com o título Weltgericht, que tanto significa “Juízo Final” como “juízo do mundo” (ou da humanidade). Engendrado como uma colagem de textos de diversas proveniências (mas a maior parte é da imprensa da época), este concerto polifónico que põe em cena os acontecimentos da Primeira Guerra constrói-se a partir de documentos autênticos. Kraus assegurou: “Os factos mais inverosímeis aqui expostos aconteceram realmente; limitei-me a representar o que foi feito, sem mais. As conversas mais inverosímeis que aqui escutamos foram produzidas, palavra por palavra; as invenções mais brutais são citações”. À guerra, produto da civilização, respondeu Kraus com um texto à medida dessa guerra. Robert Musil, com um forte espírito crítico relativamente a Kraus, apontou esta incongruência: “A hostilidade de Kraus em relação a guerra é moralmente tão estéril quanto o entusiasmo guerreiro”. É uma crítica que pode ser transferida para outras zonas da obra de Kraus.
Em Os Últimos Dias da Humanidade não existe um herói individual e as personagens históricas, por exemplo o imperador Francisco José, não passam de marionetas, completamente irresponsáveis. E os grandes mestres da carnificina são a alta finança e a imprensa. Este texto imenso, onde se acumulam vozes numa montagem cacofónica, reflecte à sua maneira o que os jornais, durante a guerra, veiculavam diariamente. Kraus construiu assim o anti-jornal da guerra. Este drama que, para ser representado na sua totalidade, precisava de mais de duas dezenas de horas, traz logo no início de um prefácio esta advertência do autor: “Este drama, cuja extensão, medida à escala terrena, daria para preencher uns dez serões, destina-se a ser representado por um teatro do planeta Marte. O público do nosso mundo não teria forças para suportá-lo”.
A este aviso de que se trata de um texto irrepresentável poderia seguir-se outro de que se trata de um texto intraduzível. Ou quase, acrescentemos por prudência. Em português, essa tarefa temerária, mas muito conseguida, coube a António Sousa Ribeiro cuja tradução de uma parte muito substancial da obra foi publicada pela Antígona em 2003. Uma tradução integral, pelo mesmo tradutor, sairá agora a acompanhar a encenação da peça (por Nuno Carinhas e Nuno M. Cardoso), editada pelo próprio Teatro Nacional São João. Irrepresentável pela extensão e pela própria natureza do texto, que rompe com todas as convenções dramatúrgicas clássicas, Os Últimos Dias da Humanidade conheceu em 1929 uma versão para o teatro, feita pelo próprio Kraus. Foi a sua própria resposta à desmesura de um texto que tinha a ambição de instaurar um processo onde deveria comparecer toda a tragédia do século XX – a que estava a acontecer e a que se anunciava.
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