No meio da multidão que chora a morte de João Lobo Antunes
Dizem que fica mal aos médicos armarem-se em deuses. Pois sim. Digam isso às pessoas que ele salvou.
Sou só uma pessoa da grande multidão de pessoas cujas vidas foram salvas por João Lobo Antunes. Somos muitos a chorar. Choramos por egoísmo. Choramos de medo. Choramos de raiva. Choramos pela injustiça. Mas também choramos por ele, João. E também choramos pelas pessoas que o amam.
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Sou só uma pessoa da grande multidão de pessoas cujas vidas foram salvas por João Lobo Antunes. Somos muitos a chorar. Choramos por egoísmo. Choramos de medo. Choramos de raiva. Choramos pela injustiça. Mas também choramos por ele, João. E também choramos pelas pessoas que o amam.
Faço parte da grande multidão de pessoas que o João Lobo Antunes salvou, directa e indirectamente. Tal como quase todas elas, não tive a sorte de ter sido amigo dele. Mal o conheci. Mas vi-o, vi-o sempre de atalaia, rodeado pelos colaboradores, todos eles salvadores de vidas. Um desses neurocirurgiões, Alexandre Raínha Campos, removeu um tumor canceroso do cérebro da Maria João, salvando-lhe a vida e devolvendo-me a pessoa amada.
Estava lá o João Lobo Antunes. Logo de manhãzinha e depois da operação, a presença dele acalmava, garantia que tudo o que se pudesse fazer iria ser feito.
O João era um herói. É preciso estofo para se ser herói. O João tinha. Não é preciso paciência nem generosidade nem sabedoria nem cultura nem criatividade para se ser herói. Mas o João era um herói que tinha isso tudo. É preciso coragem para se ser um herói. O João tinha. Não é preciso ter uma visão ambiciosa e exacta de onde se pretende chegar. Mas o João tinha e chegou lá. Construiu o impossível contra a mesquinhez das possibilidades e, uma vez construído, tratou a construção com a maior das naturalidades, como se sempre tivesse sido assim. Partilhou o que sabia com a mesma alegria com que tinha aprendido.
O João era um investigador, um esteta, um dandy e um senhor. Deve ter tido defeitos mas juro, para quem não o conheceu, é como se não tivesse tido. Admito, no caso de João Lobo Antunes, que o homem era um deus.
É assim que todos nós que fazemos parte da multidão de pessoas cujas vidas ele salvou o víamos: como um deus. Dizem que fica mal aos médicos armarem-se em deuses. Pois sim. Digam isso às pessoas que ele salvou e às pessoas – muitas mais ainda - que amam essas pessoas. Os médicos não podem ser deuses mas, no caso de João Lobo Antunes, exigimos que se abra uma excepção.
Era um deus que, ao contrário do verdadeiro, tinha sentido de humor. Sabia que era um herói mas preferia ser tratado como se não fosse. Era impossível elogiá-lo. Aproveito agora que ele está morto mas isso só me enche – só nos enche – de tristeza.
Seria tão bom e justo e útil e feliz e merecido que João Lobo Antunes estivesse vivo e saudável e bem disposto, a piscar aqueles olhos azuis, a viver a vida que sabia viver.
Numa crónica, comovida e comovente, que António Lobo Antunes escreveu para a Visão, dedicada ao Professor Luís Costa com o título O último abraço que me dás a primeira frase é esta: “O lugar onde, até hoje, senti mais orgulho em ser pessoa foi o Serviço de Oncologia do Hospital de Santa Maria, onde a elegância dos doentes os transforma em reis”.
Foi assim, também, no Serviço de Neurocirurgia do mesmo hospital, dirigida pelo irmão, João Lobo Antunes, quando a Maria João foi lá operada por Alexandre Raínha Campos. Foi o “lugar onde, até hoje” ela e eu “sentimos mais orgulho em sermos pessoas”.
Cito outra passagem da mesma crónica, por ser tão verdadeira para a multidão que não conhecia o Professor Lobo Antunes e que ele salvou ou ajudou a salvar: “A extraordinária delicadeza e atenção dos médicos, dos enfermeiros, comoveu-me. Tropecei no desespero, no mal-estar físico, na presença da morte, na surpresa da dor, na horrível solidão da proximidade do fim, que se me afigura de uma injustiça intolerável. Não fomos feitos para isto, fomos feitos para a vida”.
É o mesmo Luís Costa que vem salvando a vida da Maria João. Foi João Lobo Antunes que a levou para ele. É verdade que “não fomos feitos para isto, fomos feitos para a vida”.
Mas há certas pessoas que, tal como os deuses, não deveriam morrer senão quando assim entendessem. São raras. Mas João Lobo Antunes era, certamente, uma delas.
Peço desculpa à família do João e a todos os amigos que tinha o muito tempo e o muito João que vos roubámos, eu e o resto da multidão das pessoas que ele salvou.
As tristezas injustas são as que mais doem e mais custam a passar. A perda de João Lobo Antunes, neste maldito dia de Outubro, só agora começa a fazer-se sentir. Vai levar muito tempo a passar. Sofrer e sentirmo-nos indignos é o mínimo que podemos fazer.