Opinião: Marte agridoce para a Europa
A Agência Espacial Europeia tem no currículo várias missões incríveis, ainda que nem sempre as saiba comunicar para o público da melhor forma.
Nas últimas décadas, a Agência Espacial Europeia (ESA) tem tido sucessos notáveis na exploração do espaço. E têm vindo em crescendo, principalmente se olharmos para duas missões incríveis – a aterragem na lua Titã, em 2005, e a aterragem num cometa, em 2014. A aterragem em Marte, na última quarta-feira, surgiria como a fasquia seguinte numa sucessão de feitos extraordinários da ESA. Não foi.
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Nas últimas décadas, a Agência Espacial Europeia (ESA) tem tido sucessos notáveis na exploração do espaço. E têm vindo em crescendo, principalmente se olharmos para duas missões incríveis – a aterragem na lua Titã, em 2005, e a aterragem num cometa, em 2014. A aterragem em Marte, na última quarta-feira, surgiria como a fasquia seguinte numa sucessão de feitos extraordinários da ESA. Não foi.
Em 2005, a ESA fazia aterrar um aparelho (a sonda Huygens) em Titã, onde nunca tínhamos sequer tentado ir e de onde as brumas densas que tapam esta lua de Saturno impediam que tivéssemos imagens do solo. Pela primeira vez, íamos a Titã e víamos um mundo novo – uma paisagem marcada por um ciclo “hidrológico” de metano, com rios e lagos de metano e calhaus arredondados. Em 2014 foi a vez da impressionante aterragem num cometa, outra proeza inédita na história da humanidade. Dois corpos pequenos em movimento, o minúsculo módulo File (largado horas antes da sonda-mãe, a Roseta) e o cometa 67P/Churiumov-Gerasimenko, conseguiam encontrar-se, ainda que com alguns percalços. Mais uma vez, chegaram-nos imagens de um mundo totalmente novo: víamos como era o núcleo de um cometa, como se estivéssemos lá com o nariz colado ao chão. Titã e o cometa alargaram os horizontes.
Além destas missões, a ESA teve outras dignas de nota – como a primeira sonda (a Giotto) a aproximar-se do núcleo de um cometa (o Halley), em 1986; a primeira sonda (a Ulisses, em conjunto com a NASA) a estudar especificamente o Sol, em 1994; ou o telescópio espacial Planck (que observa os primórdios do Universo), em 2009. Mesmo o celebérrimo telescópio espacial Hubble, que todos associam à NASA, tem uma participação de 15% da ESA.
Marte mostraria agora a todos – à opinião pública – que a ESA é tão capaz como a NASA, que já aterrou com sucesso sete vezes no planeta vermelho. Mas Marte é um planeta traiçoeiro para os aparelhos espaciais, como as estatísticas bem mostram. Aterrar lá teve, até agora, teve uma taxa de sucesso de apenas 50% (das 14 tentativas, só sete, todas dos Estados Unidos, tiveram sucesso). A ex-União Soviética tentou quatro vezes, e falhou-as todas. Mesmo os Estados Unidos também falharam uma vez (com a Mars Polar Lander, em 1999). A Europa, através de uma universidade britânica, que desenvolveu grande parte do módulo Beagle 2, falhou uma primeira vez, em 2003. E agora voltou a falhar, com a ESA.
Por tudo isto, não seria assim tão raro que a missão do módulo europeu Schiaparelli acabasse esmagada no solo marciano, que é designado como “cemitério” de aparelhos espaciais, uma vez que é muito difícil controlar a descida na atmosfera marciana, muito mais rarefeita do que a da Terra. O que já não é tão normal são as primeiras declarações dos responsáveis da ESA, em conferência de imprensa, no dia seguinte à aterragem do Schiaparelli e que se mantinha em silêncio desde os instantes previstos para a chegada ao planeta. Prenunciava-se já o fracasso da chegada ao solo. Mas os responsáveis da ESA colocaram no mesmo pacote a aterragem do Schiaparelli e a entrada em órbita de Marte da sua sonda Trace Gas Orbiter, essa bem sucedida, também na quarta-feira, e consideraram a missão globalmente como um “grande sucesso”.
Aliás, a ESA não costuma ser boa a comunicar o que faz, nem mesmo quando o que tem para dizer é bom. Talvez em parte porque, enquanto a NASA é de um só país, a ESA é uma organização de 22 Estados-membros (Portugal incluído) e isso complica as coisas um pouco mais. Titã serve de novo aqui um exemplo. A Huygens tinha começado a entrar na atmosfera da lua na manhã de 14 de Janeiro de 2005 e, depois de um dia inteiro de espera (ou de sete anos de espera, o tempo da viagem entre a Terra e a lua, ou de 22 anos de espera, o tempo de preparação da missão), ao início da noite a ESA divulgava a primeira imagem de algo que nunca visto. No Centro Europeu de Operações Espaciais da ESA, na Alemanha, um responsável da agência aparecia a comentar a imagem. Pouco depois foram divulgadas mais duas imagens. As três fotografias iam surgindo no ecrã dos televisores internos do centro, mas não havia ninguém que as comentasse. E no site da ESA, eram disponibilizadas com uma resolução muito pequena para se publicarem com qualidade num jornal. Depois de tanta expectativa, em termos de relações públicas, era um anticlímax.
Mesmo que agora se possam tirar muitas lições para o futuro sobre o que correu mal nos seis minutos de descida até ao solo marciano com o Schiaparelli, obtendo assim mais conhecimento, a aterragem não deixa de ser um desaire. Até porque o objectivo da ESA era mesmo mostrar que conseguia aterrar em Marte. A ESA já disse entretanto, em comunicado, que o pára-quedas do Schiaparelli ter-se-á soltado mais cedo do que o previsto e que os propulsores ter-se-ão desligado também cedo demais, pelo que o módulo esteve em queda livre mais tempo a grande velocidade e esmagou-se no chão. E, não estando em causa as reais capacidades da ESA, que de facto já mostrou em missões anteriores o que valia, este é um golpe duro na sua imagem. Marte deixou-lhe assim um sabor doce com a Trace Gas Orbiter e um travo amargo com o Schiaparelli.