Como se “ouve” e sente o teatro num mundo silencioso?
Teatro Nacional de São João estreou-se esta temporada na língua gestual portuguesa. Como se traduz a arte e o sentimento do teatro a um Surdo? Subimos ao palco com as intérpretes Joana Cottim e Cláudia Braga.
Na ponta esquerda do palco, debaixo de um foco de luz, Cláudia Braga é o centro do mundo para Joana Cottim. A poucos metros, na primeira fila da plateia do Teatro Carlos Alberto, no Porto, olha-a como se a ouvisse. “Ouve-a”, de facto, quando em língua gestual portuguesa (LGP) Cláudia Braga lhe faz saber que a cortina do palco está a fazer ruído a subir. Que um instrumento musical está a imitir som, ora baixo, ora alto. Que os dois actores iniciaram um diálogo. Joana nasceu Surda. Até há pouco tempo, o teatro era um destino fora do seu mapa. Inacessível. Esta temporada, o Teatro Nacional de São João estreou um serviço de LGP — e ao dar espaço à palavra inclusão no dicionário interno, abriu portas ao teatro no imaginário dos Surdos. Joana Cottim não ficou na plateia apenas como assistente.
A interpretação da peça é um trabalho a dois — e só faz sentido assim. Uma parceria entre uma intérprete ouvinte e uma intérprete Surda (assim, com letra maiúscula, porque não significa apenas ausência de audição: diz respeito à pertença a uma comunidade linguística e cultural diferente). Uma junção da técnica de Cláudia Braga e do sentimento e saber de Joana Cottim. Nesse ponto de partida, há uma sintonia perfeita entre as duas. Palavra de Cláudia: “Tenho formação, sei fazer uma tradução, mas como se sente o teatro sendo Surdo não sei. Nunca vou saber”, disse ao PÚBLICO minutos antes de iniciar o ensaio geral da peça O Bem, o Mal e o Assim-Assim, que hoje, às 16 horas, tem uma sessão com LGP no Teatro Carlos Alberto.
O processo é trabalhoso. O texto da peça é enviado a Joana pelo TNSJ. Ela lê, analisa. Vai assistir a um primeiro ensaio. Encontra-se com Cláudia uma, duas, várias vezes. Pensam na melhor forma de adaptar cada palavra, frase, emoção. De dar sentido ao ritmo. “Não é fácil”, testemunha Joana, 30 anos. “Traduzir teatro não é subir ao palco e repetir [o que os actores dizem]. É preciso traduzir a arte, o sentimento. Fazer com que quem está sentado sinta o teatro. Não é um ‘Google translate’.”
Entre as duas línguas — a portuguesa e a gestual portuguesa — há um infinidade de diferenças. Palavras e gramáticas distintas: o que torna a tradução “frase a frase” descabida. Tanto pode ser preciso acrescentar contexto a uma oração curta como traduzir uma declaração longa apenas com a ideia geral. No texto inédito de Gonçalo M. Tavares — encenado por João Luiz e o Teatro Pé de Vento — há “imensas metáforas e filosofia”. E, para um Surdo, diz Joana, isso é um dificuldade acrescida. “Para explicar uma metáfora, a intérprete tem de se afastar um pouco dela. Traduz-se a mesma ideia, mas com uma frase diferente.”
É como um puzzle, cheio de peças em busca da posição perfeita. Em O Bem, o Mal e o Assim-Assim, a dificuldade começou logo no título, sorriem. Para a palavra “bem”, a LGP tem três gestos possíveis. Para “mal” outros três. “É preciso perceber qual se adapta melhor àquele contexto”, explica Joana Cottim enquanto vai mostrando qual o gesto mais acertado.
O ensaio geral vai arrancar dentro de minutos. O encenador circula, a acertar pormenores. Afina-se a luz. Testa-se o som. Os três actores vão-se posicionando no palco. Cláudia Braga também. O foco de luz assinala o seu lugar, no canto do palco — demasiado fora de cena, vai dizendo Joana Cottim, de bloco de notas e texto da peça nas mãos. A posição do intérprete é fulcral para o Surdo. Se estiver demasiado fora da cena, o olhar é obrigado a saltitar constantemente e a experiência torna-se cansativa e algo frustrante.
Joana pede outra posição para Cláudia — e o encenador concede alguns passos. “Façam uma marca no chão aqui”, assinala. Na última peça que a dupla interpretou — a estreia deste serviço no TNSJ —, o encenador Ricardo Alves, da companhia Palmilha Dentada, não esteve com meias medidas. Se Cláudia Braga ia estar em palco, que estivesse completamente dentro de palco. “Foi fantástico”, recorda Joana Cottim, “a vivência da peça muda completamente.”
Teatro para todos?
O TNSJ não foi o primeiro do país a apostar na LGP. Em Portugal, há alguns exemplos de boas práticas, sublinha Pedro Costa, presidente da Federação Portuguesa das Associações de Surdos (FPAS). Numa avaliação global, porém, a nota ainda é negativa: “A cultura continua a ser uma área maioritariamente inacessível”, lamenta. Apesar de a LGP estar consagrada na Constituição da República Portuguesa desde 1997, “continua a existir um desconhecimento sobre os direitos das pessoas Surdas”.
No Porto, a vontade de tornar o teatro um espaço para todos tinha começado com a inclusão de legendas em inglês. Este ano, subiu-se outro degrau. Ao terceiro sábado de cada mês, o TNSJ tem uma visita guiada às instalações com um intérprete Surdo. No primeiro domingo, é a vez do Mosteiro de São Bento da Vitória. A par disso, surgiu a LGP e também a audiodescrição, serviço para pessoas cegas que, com uns auscultadores, vão recebendo “informação visual” sobre a peça. Neste caso, explicou o administrador e director de comunicação do TNSJ, José Matos Silva, os espectadores são convidados a chegar uma hora mais cedo para poderem subir ao palco, tocar nos figurinos, conhecer os actores e ter uma percepção mais real do cenário. Não é possível fazê-lo em todas as peças, mas o compromisso é ter “uma a duas por mês” com esta possibilidade (a próxima é Os Últimos Dias da Humanidade, a 30 de Outubro e 6 e 13 de Novembro). “Entendemos que tornar a cultura e o teatro mais acessível fazia parte da nossa missão”, justifica.
Missão. Eis uma palavra que Joana Cottim conhece desde menina. Filha de pais Surdos, com um irmão Surdo, a portuense fez do mundo silencioso uma batalha. Cresceu entre as paredes da Associação de Surdos do Porto, onde o pai era presidente. Fez-se activista. Nunca se sentiu diferente. Concluiu duas licenciaturas, em Ciências da Educação e em Língua Gestual Portuguesa. Passou pela FPAS, preside a Comissão Nacional de Jovens Surdos. É professora. “Senti sempre que tinha uma responsabilidade social de fazer a sociedade mudar.” E algo tem acontecido, diz. “Em Serralves, onde faço visitas guiadas, a primeira vez tinha três pessoas. Na última estavam vinte.”
Cláudia deixou-se fascinar pela língua gestual ainda miúda. Todos os dias, a caminho da escola, passava perto do Centro António Cândido, uma escola de educação de Surdos, e pasmava-se com a comunicação através das mãos. Gravou aquela imagem na cabeça, a ideia de que comunicar não era apenas juntar sons. Por isso, quando chegou a altura de escolher um curso superior a opção foi apenas uma: tradução e interpretação de língua gestual portuguesa (à qual juntou, mais tarde, uma pós graduação na mesma área).
Para ela, as oportunidades profissionais surgem sobretudo em escolas, aos poucos em universidades também. Mas “são escassas”. Há dias, Cláudia soube que tinha sido colocada em Coimbra. Três horas de viagem de comboio diárias. “É difícil”, admite. Uma espécie discriminação lateral a quem está ligada a uma comunidade particularmente discriminada: “Nós, ouvintes, temos, muitas vezes, poucas oportunidades. Mas as deles são muito menores.”
O caminho é longo. Cláudia Braga ainda espera o dia em que um Surdo possa ir ao médico sem ter de pagar a um intérprete para o acompanhar — e, antes disso, que deixem de existir profissionais de saúde que se recusam a deixar entrar o intérprete na consulta. “Parece impossível, mas acontece”, diz. Se a LGP fosse reconhecida como a segunda língua do país — como tanto se tem pedido —, muitos dos problemas seriam atenuados. “A falha é dos ouvintes. Somos nós quem não os entende. Eles são bilingue. Nós falamos com um estrangeiro, aprendemos a língua dele, mas não aprendemos a língua de um Surdo”, lamenta Cláudia. O passo, diz Joana como quem faz um convite, não é assim tão complicado: “Aprender chinês é bem mais difícil.”