Queríamos ainda mais escuro, Leonard
Cohen vai chegando ao fim, aparentemente em paz, mas ainda com sarcasmo: You Want It Darker.
Leonard Cohen está no ringue encostado às cordas e, quando Ela chega e levanta a sua grande mão negra, Leonard tira as luvas, levanta a cabeça e diz uma última frase: “I’m ready, my Lord”. Isto é uma imagem mas tem um lado literal: pensem na Canção como o lugar em que um homem pode expiar os seus medos com um pouco menos de dor – há luvas nas mãos, o chão não é de cimento. O árbitro é o tempo e já passou demasiado tempo: aos 82 anos Leonard Cohen já viveu o suficiente para cantar “I’m ready, my Lord” em You Want It Darker, a faixa que abre o disco homónimo.
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Leonard Cohen está no ringue encostado às cordas e, quando Ela chega e levanta a sua grande mão negra, Leonard tira as luvas, levanta a cabeça e diz uma última frase: “I’m ready, my Lord”. Isto é uma imagem mas tem um lado literal: pensem na Canção como o lugar em que um homem pode expiar os seus medos com um pouco menos de dor – há luvas nas mãos, o chão não é de cimento. O árbitro é o tempo e já passou demasiado tempo: aos 82 anos Leonard Cohen já viveu o suficiente para cantar “I’m ready, my Lord” em You Want It Darker, a faixa que abre o disco homónimo.
Andamos desde 2004 nisto de ver cada novo disco de Leonard Cohen como o seu último testemunho; talvez seja desta, talvez não, quem sabe? Pouco importa: de cada vez que ele lança nova colecção de canções, mais que apreciá-las encontramos nelas a chance de lhe agradecermos tantas sessões de boxe, tanto uppercut abençoado.
Pergunto-me às vezes se termos chegado a este momento em que Cohen é objecto de devoção incondicional é prova de que a humanidade evoluiu. Nas décadas de 70 e 90 (em que, admitamos, pouco produziu) ele parecia esquecido. O melhor da sua obra está entre 1967 e 1974 – e discos como Death of a Ladies’ Man, Recent Songs, Various Positions ou I’m Your Man já se perdem na neblina da idade. Talvez por vezes precisemos de tempo para aferir da importância de alguém nas nossas vidas: Cohen é o nosso educador sentimental e ainda estamos a aprender. Só que agora já somos capazes de entrever a grandeza da matéria dada.
Não será a mais brilhante pérola do cardápio de adágios de Leonard Cohen, mas serve como exemplo do charme do canadiano: “Tomei ácido atrás de ácido à espera de ver Deus”, disse ele há tempos à New Yorker, falando dos seus tempos na Grécia. “Mas por norma só consegui ficar de ressaca”.
Este humor desarmante atravessa a obra do autor de Songs of Love and Hate, adocica os surtos de cinismo e crueldade que marcam os primeiros discos, cria uma espécie de balanço, torna-o tragável: Cohen pode ser o bardo que fala de suicídio em Stories of the street mas também canta “Don’t go home with your hard on/ it won’t melt down in the rain”.
O charme e o humor são importantes na figura de Cohen, limam-lhe as arestas, fazem-nos crer que, ao contrário de Dylan e Van Morrison, ele é alguém que podíamos convidar a jantar lá em casa. Cohen, sabemos, pode conversar sobre o erótico e o pagão, o sagrado e o político sem ser indelicado. Imaginamo-lo como o tipo de homem que informa a família da sua doença terminal e depois ainda os conforta dizendo que foi bom andar aqui com eles. Ao contrário de Dylan não se fechou na sua amargura nem fez joguinhos connosco – vemo-lo como alguém que além de compor e escrever aproveitou para aprender com o que compôs e escreveu. Não é apenas um criador – é um homem.
Em parte isso explica a recepção dos seus discos desde 2004, que, com variações de qualidade, são um pouco tépidos para quem ainda não faz contas a seguros de saúde pelo preço do ambulatório, em parte porque a voz abandonou Leonard e ele é obrigado a recorrer a um registo de declamação que, se tem algo de sedutor e lhe confere autoridade, torna cada canção num hino solene (sendo que as palavras, não raro traem essa solenidade) por vezes (como dizer isto?) pouco musical.
I Want It Darker mantém o registo. O tema título, por exemplo, podia ser uma grande canção do Cave de Let Love In, mas não possui a força necessária; On the level opta por ficar do lado da beleza quando podia aspirar aos céus; e Leaving the table, com outros arranjos e outra entrega, teria lugar nos primeiros discos (ou ao lado de I came so far for beaty). São canções bonitas à guitarra ou ao piano, bem arranjadas, com as ocasionais cordas, sempre delicadas, sempre suaves.
É escusado procurar aqui (ou na obra desde 2004) a tormenta do início ou o cinismo sábio da década de 80 – a voz de Cohen mal lhe permite cantar. Também não faz sentido querer fazer de You Want It Darker a herança de Cohen, o seu último testemunho, a derradeira lição – há toda uma obra para trás. Julgo que nenhum outro músico foi tão importante na minha formação humana; procurar nos últimos discos de Cohen as qualidades que não têm seria negar uma vida de grandes canções.
É que o que temos para lhe agradecer não se confina a uma crítica exagerada num jornal ou uma sucessão de epitáfios durante umas horas nas redes sociais. Dura uma vida e implica um certo ascetismo. Porque é assim que a luz entra.