Manuel, tal e qual
Teixeira Gomes, boémio, negociante, melómano, viajante, escritor, diplomata e Presidente da República.
De Manuel Teixeira Gomes revive a memória do intelectual e do político que se afirmou como grande escritor, se impôs como notável diplomata e se distinguiu como Chefe de Estado, um dos que mais prestigiaram a República. Qualquer um destes aspectos é conhecido, na generalidade e, por vezes, com alguma polémica.
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De Manuel Teixeira Gomes revive a memória do intelectual e do político que se afirmou como grande escritor, se impôs como notável diplomata e se distinguiu como Chefe de Estado, um dos que mais prestigiaram a República. Qualquer um destes aspectos é conhecido, na generalidade e, por vezes, com alguma polémica.
Contudo, uma biografia feita por José Alberto Quaresma, editada pela Imprensa Nacional e o Museu da Presidência da Republica, veio evidenciar muitos pormenores, até agora desconhecidos do homem rebelde, insatisfeito, frontal, aberto ao mundo, «com todos os sentidos despertos» – assim se definiu Teixeira Gomes – «para glorificar o esplendor da luz e para divinizar quantas maravilhas ela nos revela, desde o cristal das fontes, que fecundam a terra sequiosa, até ao corpo humano, carne ambulante e sensual, onde se encerra e se propaga a essência da razão e do amor».
Sete anos de investigação em arquivos públicos e privados, nacionais e internacionais, a consulta de milhares de documentos inéditos – o livro tem 560 páginas, apoiadas em 1699 notas factuais e justificativas – permitem desvendar a intimidade quotidiana do homem. Aliás o objectivo é tão visível quanto José Alberto Quaresma, para estabelecer uma aproximação com o leitor, no decurso dos sucessivos capítulos da narrativa biográfica, nomeou sempre Teixeira Gomes, apenas por Manuel.
Aprofunda as origens da família, a intervenção nas campanhas entre liberais e miguelistas, os vínculos à Maçonaria, mortes e prisões políticas; o Algarve remoto, sem estradas e transportes para vencer o isolamento; a agricultura precária e a indústria de pesca e frutos secos; um território pleno de recursos naturais, a querer despertar do marasmo e da rotina.
Retrata o boémio, o negociante, o melómano, o viajante, o escritor, o diplomata e o Presidente da Republica. Tal e qual reencontrou nos testemunhos da história. Acompanha o seminarista em Coimbra; o estudante que não conseguiu realizar o curso de Medicina em Coimbra e no Porto. Segue os passos do jovem insinuante nas principais tertúlias de escritores, poetas, músicos e artistas plásticos; o convívio, com aristocratas e republicanos, nos salões dos condes de Proença-a-Velha; e a frequência, em Lisboa e outras cidades europeias e do Norte de África, das mais famosas casas de prostitutas.
Ao publicar os primeiros livros, aos 40 anos, Teixeira Gomes destacou-se, tal como Raúl Brandão e, logo após a morte de Eça de Queiroz, entre os maiores escritores de língua portuguesa. Coleccionador de arte, apaixonado pela música, conseguiu dedicar-se simultaneamente, aos trabalhos práticos da produção, comercialização e exportação de frutos secos, na gerência de empresas familiares, em Portimão e no escritório em Antuérpia. Tais aptidões voltarão a ser exercidas, em Londres, em face da ausência de funcionários, para despachar o expediente burocrático na representação diplomática portuguesa.
Identifica-se com a realidade politica, social e cultural da transição do seculo XIX para o seculo XX, o percurso de Teixeira Gomes. Participante e espectador crítico das lutas no fim da Monarquia e dos 16 anos de Republica; dos cenários da Iª Guerra Mundial, dos debates e conflitos nos fóruns internacionais, os bastidores e tribunas da Sociedade das Nações. Enquanto Presidente da República, de Outubro de 1923 a Dezembro de 1925, enfrentou sucessivas crises partidárias e militares que provocaram quedas e substituições de governos.
Procurou a reconciliação da classe política e das Forças Armadas. Reuniu a 5 de Dezembro de 1925, os comandantes das unidades militares para um almoço no Palácio de Belém. Ao pressentir que não havia, nem solução, nem alternativa, fez a seguinte declaração que se tornaria profética: «enquanto certos políticos da nossa terra teimarem em pensar com o estomago e digerirem com os miolos, isto não tem concerto possível. E o pior é que já é muito tarde para tê-lo, porque quer os senhores queiram, quer não (acentuou, voltando-se à direita para o General Carmona e tocando-lhe nos galões) isto vai-lhes directamente parar às mãos».
Perante o impasse, decidiu, no dia 10 de Dezembro, apresentar a demissão. Meses depois, o Exército implantava a ditadura. Durou quase meio século. Até ao 25 de Abril de 1974.
Teixeira Gomes deixou Portugal. Definitivamente. Resolveu peregrinar de país em país. Foi o que chamou «a grande Primavera da Liberdade». Andava só, transformado num vulgar cidadão anónimo, através do Mediterrâneo e, por fim, do Norte de África. O Magreb passou a constituir a terra do seu refúgio e do seu afecto. Mesmo em plena velhice, «saudável, próspero e feliz como um deus que regressou do Olimpo», - ele próprio o confessa - fazia «cerca de dez quilómetros de marcha diária, caminhadas sem fim até ao salutar cansaço que prepara os sonos profundos de onde se ressurge mais rijo e satisfeito».
De 1931 a 1941 radicou-se em Bougie, actualmente denomina-se Bejaia, tem um monumento à sua memória e uma escola com o seu nome. Manteve rigorosa privacidade. Os contactos com Portugal, com a família, inclusive as duas filhas e a mãe delas, limitaram-se a mera troca de correspondência. E sem mencionar onde residia. Apenas indicava o número de uma posta-restante do correio.
Escolheu o pequeno Hotel l’Etoile para se consagrar, em tempo inteiro, à escrita. O quarto tinha (e tem) o número 13 e uma janela para o mar. A vista abrange a cordilheira de Kabila, sempre coberta de neve. Longe de tudo e de todos ali faleceu e se despediu da vida no momento que desejava: «quando desponta a aurora, em manhã luminosa e tépida, sacudir sobre o mar as cinzas dos sonhos». Foi a 18 de Outubro de 1941. Precisamente há 75 anos.