Há 40 anos, o Brasília deu cor a um país ainda a preto e branco. Hoje, tenta reerguer-se
Um dos primeiros grandes centros comerciais da Península Ibérica celebrou esta semana 40 anos. No final dos anos 1970 e 1980, portugueses e espanhóis enchiam os lojas e os corredores do Brasília. Longe desse fulgor, os comerciantes tentam agora revitalizá-lo.
Há uma altura em que os centros comerciais, mais do que serem catedrais do consumo, eram ponto de encontro para o desfilar de novas tendências de moda ou de estilos de vida alternativos onde as tribos urbanas podiam encontrar os seus pares e, sem vergonha, marcar a diferença, num Portugal acabado de sair de uma realidade a preto e branco pré-Abril de 1974. Há quatro décadas, o Brasília, um dos primeiros grandes centros comerciais do país, que foi apenas antecedido pelo Castil, em Lisboa, é uma das portas de entrada para os primeiros sinais de cosmopolitismo, que até àquela altura só podia ser experienciado além fronteiras. A celebrar 40 anos este mês, este centro comercial, no coração da Boavista, é um dos emblemas da revolução de mentalidades, que em Portugal tardou a impor-se.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Há uma altura em que os centros comerciais, mais do que serem catedrais do consumo, eram ponto de encontro para o desfilar de novas tendências de moda ou de estilos de vida alternativos onde as tribos urbanas podiam encontrar os seus pares e, sem vergonha, marcar a diferença, num Portugal acabado de sair de uma realidade a preto e branco pré-Abril de 1974. Há quatro décadas, o Brasília, um dos primeiros grandes centros comerciais do país, que foi apenas antecedido pelo Castil, em Lisboa, é uma das portas de entrada para os primeiros sinais de cosmopolitismo, que até àquela altura só podia ser experienciado além fronteiras. A celebrar 40 anos este mês, este centro comercial, no coração da Boavista, é um dos emblemas da revolução de mentalidades, que em Portugal tardou a impor-se.
As lojas estavam sempre cheias. Os corredores apinhados de gente, que se vestia a rigor para ir passear ao Brasília. Não se poupava em esforços para apostar no melhor penteado ou no salto alto mais alto, que por vezes ficava preso entre as ranhuras dos degraus das escadas rolantes, as primeiras do país. Quem o recorda é a presidente da associação de comerciantes do centro, Ana Paula Santos, que diz conhecer o espaço melhor do que ninguém. Há 39 anos o pai abriu a ourivesaria que hoje gere. Desde sempre que se habituou a passear nos corredores daquele shopping, onde na altura “não era fácil circular”. “Vinha cá gente de todo o país e de Espanha fazer compras”, recorda.
Era novidade e cedo se tornou na nova “coqueluche” da cidade. O público era diverso, assim como o tipo de comércio que lá se instalou. Nos 280 espaços em funcionamento havia lojas de roupa, de decoração, cabeleireiros, centros de estética, lojas de música ou cafés. Ao mesmo tempo era também onde estavam algumas das discotecas mais procuradas da cidade, como o Griffon’s, o Romanoff ou o Glassy, frequentadas por quem se interessava por sonoridades de origem anglo-saxónica, nomeadamente por alguns músicos que mais tarde construíram uma carreira musical de sucesso.
O Brasília era o sítio da cidade onde se podia encontrar a peça de roupa mais na moda ou onde se podia fazer o penteado mais extravagante, mas era também o ponto de encontro de grupos de jovens que de acordo com a sua “tribo” se espalhavam pelo café mais à sua medida. “Era um lugar onde se podia encontrar gente gira”, afirma Ana Paula Santos. A própria zona da Boavista cresceu na sequência da abertura do shopping. Como lembra, foi criado um eixo que se estendia até à Rua Júlio Dinis, onde foram também aparecendo novos espaços comerciais e de lazer.
Sofia Silva, proprietária da Strass, uma das lojas mais antigas do centro comercial (37 anos), recorda que na altura do Natal tinha que ficar alguém na porta da loja para controlar a entrada de pessoas, que só passava a porta depois de outro grupo sair. Não era um exclusivo do espaço criado pelo seu pai: “Era igual em todas as lojas”. O Brasília, funcionava como ponto de encontro, mas o objectivo primordial que seria o negócio também funcionava em pleno. “Descobriu-se petróleo na Boavista”, brinca. Nos anos 1980 já tinha mais quatro lojas no mesmo centro comercial. Todos com sucesso. “Havia uma classe média endinheirada que comprava e muito”, afirma. Na altura, “parecia que ia ser sempre assim”.
Até meados dos anos 1990, o Brasília conservou a posição de espaço comercial de referência e de preferência. Actualmente quem entra no centro comercial, já não encontra o movimento de que se fala mais acima. O piso zero continua com quase todas as lojas ocupadas, mas, à medida que se vai subindo as escadas rolantes, para as quais eram formadas filas só para as experimentar, nos primeiros anos de funcionamento, encontram-se muitas lojas fechadas nos pisos superiores.
O frenesim, e a “nova realidade” trazida nos tempos de maior fulgor do Brasília, de acordo com Ana Sofia, parecia indicar que o caminho a seguir pelo comércio seria idêntico. Terá sido, na sua perspectiva, o próprio sucesso deste centro comercial que acabou por o afundar. Depois do Brasília, ainda nos anos oitenta, apareceram mais centros comerciais na cidade que tentaram replicar o sucesso do shopping e que entretanto já fecharam. Mas foi em meados dos anos 1990, que esse sucesso foi replicado com melhores resultados, por projectos semelhantes, mas de maior dimensão em área e mais adaptados à realidade da época. Foi aí, diz, que os primeiros sinais de que o negócio estava a abrandar surgiram.
Comerciantes não desistem
Das 280 fracções existentes, apenas cerca de 150 é que estão ocupadas. A presidente da Associação de Comerciantes do Brasília, admite que o centro já passou por melhores dias. No entanto, afirma estar optimista em relação ao futuro.
Conta que há cerca de um ano houve um investidor interessado em comprar o centro comercial para lhe “dar uma nova cara”. Essa notícia diz ter trazido alguma esperança aos comerciantes. Porém o projecto caiu por terra. “Há uma grande dificuldade em negociar a uma só voz”, afirma e explica que ao contrário do que acontece com os centros comerciais mais recentes, que têm apenas um proprietário que arrenda os espaços às diferentes marcas, no Brasília há 180 proprietários das diferentes fracções. Quando o potencial investidor percebeu que ia ter “grandes dificuldades em resolver essa questão”, terá desistido.
Foi nessa altura que diz terem voltado a “arregaçar as mangas” para encontrar alternativas ou outros investidores. Ana Paula Santos diz ser necessário apostar na modernização do espaço e para isso contribuem as lojas pop up espalhadas pelo primeiro piso, que entende serem uma mais valia para o centro.
Das lojas originais sobram umas cinco. Frequentemente, abrem novos projectos “alguns com sucesso outros nem tanto”. Prefere sublinhar os casos de sucesso, referindo a importância dos mesmos para a revitalização do Brasília. Tendo em conta que não existe uma loja âncora, acredita que o caminho poderá passar por projectos diferenciadores e especializados, com um público específico, como é o caso de uma loja de tatuagens que abriu recentemente ou a loja Mundo Fantasma, especializada em banda desenhada.
Quem parte do mesmo princípio é Rui Rodrigues, proprietário da RR Tattos, que afirma ter escolhido o Brasília por estar “num dos pontos mais bem localizados da cidade”. Acredita que o tipo de negócio que montou tem a vantagem de ter um público específico e fiel. “Mesmo que estivesse num sítio mais escondido, quem é cliente ia lá na mesma”, afirma. Outro ponto que pesou foi o valor das rendas, que diz serem “mais convidativas”.
A administração do condomínio do Brasília afirma que este é o primeiro grande centro comercial de Portugal e até mesmo da Península Ibérica. No entanto, em Lisboa, três anos antes da inauguração do shopping portuense, abriu o Edifício Castil em 1973. Embora o edifício seja ocupado maioritariamente por escritórios, há também uma área comercial. Por isso mesmo, há quem considere que o Brasília é o primeiro centro comercial do país uma vez que todo o edifício foi construído para albergar sobretudo lojas.
O debate sobre qual foi o primeiro centro comercial é antiga pois também há quem defenda que o pioneiro foi o Apolo 70, também em Lisboa, que abriu em 1970. Porém, este não foi construído de raiz como tal já que é, ainda hoje, uma galeria comercial debaixo de um prédio. A administração do Brasília, não ignorando a existência de outras galerias e espaços comerciais anteriores à sua inauguração, diz que o centro comercial da Boavista é o primeiro a ser construído de raiz e com uma configuração próxima daquela que tem hoje um centro comercial moderno. <_o3a_p>
Nostalgia dos anos 1980
O Brasília inspirou músicas, foi lugar de reunião de bandas ou de passagem de algumas figuras que hoje em dia são conhecidas por, de alguma forma, estarem associadas à cidade.
É impossível falar do Brasília sem se falar de Carlos Tê, que imortalizou o dia-a-dia deste centro comercial na letra de “Rapariguinha do Shopping”, do álbum Ar de Rock, gravado por Rui Veloso, em 1980. Não esteve presente na inauguração, mas foi ouvindo dizer que “havia qualquer coisa a acontecer para os lados da Boavista”, numa altura em que “parava mais para os lados dos Leões”. No Brasília encontrou “o despontar de um lado cosmopolita” que até então não existia. A rapariguinha do shopping é “uma espécie de um upgrade da caixeira tradicional, mais sofisticada e que aparentava estar noutro patamar”. Como o Chico Fininho, é mais uma figura da cidade, que aparece em finais de 1970 e princípios de 1980. É a imagem que associa ao Brasília que, de repente, é um sítio onde “passam mulheres bonitas e com outra atitude”.
Álvaro Costa, que na altura em que o centro abriu estudava na Faculdade de Letras, recorda também “a gente gira” que por lá passava. Diz ter sido um dos estreantes. Foi ao Brasília nos primeiros dias após a sua abertura. Era sítio de passagem regular. Lembra as filas que eram formadas para experimentar as escada rolantes, “novidade em Portugal”. “Era o shopping, não havia outro, símbolo da modernidade e de um novo estilo de vida”, afirma. Até 1976 “o maior centro comercial da cidade era na rua, em Santa Catarina. A zona das discotecas ficava para os lados da Rua de Santo António. Pouco se passava para os lados da Boavista”. De repente, “cria-se um novo eixo com coisas novas a acontecer e o Brasília é o ponto de partida para tudo isso”. Ao Brasília ia também pelas discotecas “o Griffon’s ou o Glassy, muito à frente no tempo”. Orgulha-se de, apesar de ser novidade, depois de sair dos bares, nunca teve problemas com a escadas rolantes: “Orgulho-me de nunca ter caído”, brinca.
Rui Reininho também era uma das figuras que frequentava o Griffon’s ou o Glassy. Sobretudo o Griffon’s recorda com alguma nostalgia. “Era o lugar onde encontrava os freaks ou pessoal do new wave e do pós-punk”. O Glassy lembra-se de ser um lugar com uma estética “mais espacial, mais futurista”. O Brasília era um sítio de encontros, onde, aliás, conheceu Jorge Romão, que mais tarde faria parte dos GNR. “Conheci-o numa loja de discos que lá havia”. Quando recorda o Brasília dos anos 1980, surge-lhe na mente a imagem de “penteados, jeans e saltos altos”.