Sardinhas assadas na mesa do rei

Os menus do Palácio da Ajuda mostram uma família real que à mesa tinha hábitos simples e gastava pouco dinheiro.Garante o gastrónomo Virgílio Gomes que a única coisa que Maria Pia fazia questão de comer todos os dias era canja.

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Imaginemos uma mesa palaciana da segunda metade do século XIX, com o seu aparato de toalhas bordadas, faqueiro completo e pratas polidas, com vidros e porcelanas a brilhar. Depois imaginemos que um dos pratos principais do almoço servido a D. Luís I e D. Maria Pia é simplesmente sardinha assada. Um prato popular que salta à vista num menu composto mas despretensioso, escrito em francês. Sabia que os reis de Portugal também comiam migas à alentejana?

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Imaginemos uma mesa palaciana da segunda metade do século XIX, com o seu aparato de toalhas bordadas, faqueiro completo e pratas polidas, com vidros e porcelanas a brilhar. Depois imaginemos que um dos pratos principais do almoço servido a D. Luís I e D. Maria Pia é simplesmente sardinha assada. Um prato popular que salta à vista num menu composto mas despretensioso, escrito em francês. Sabia que os reis de Portugal também comiam migas à alentejana?

Estes foram precisamente os dois pratos que mais surpreenderam o gastrónomo Virgílio Nogueiro Gomes, que há 20 anos estuda os menus da família real portuguesa dentro e fora do país. Numa conferência dada esta semana no Palácio Nacional da Ajuda, a casa que o rei D. Luís I (1838-1889) e a rainha D. Maria Pia (1847-1911) escolheram para educar os seus dois filhos, Carlos e Afonso, o investigador da História da Alimentação falou destas e de outras perplexidades que envolvem a cozinha e a sala de jantar da residência oficial dos monarcas, ainda hoje palco dos jantares de Estado.

“Esta era uma casa muito moderna na organização das refeições, com menus escritos em francês e mapas de consumo de mercadorias por mesa”, explica Virgílio Gomes, recorrendo a muitos documentos que identificou nos arquivos da Ajuda, onde as ementas abundam e as receitas rareiam, algo que o gastrónomo diz ser “natural”, já que, naquela época, eram mais vistas como “ajudas de memória” para quem já sabia cozinhar.

Nos mapas a que Virgílio Gomes se refere percebe-se que as três refeições quotidianas do palácio – almoço, jantar e ceia – eram pensadas em função da mesa a que se destinavam, embora houvesse pratos repetidos de umas para as outras. A ementa mais cuidada, naturalmente, era a da mesa de Estado, onde se sentavam os reis, seguindo-se a dos príncipes, a das senhoras que acompanham a rainha ou a das criadas. “Nestes mapas sabemos exactamente que quantidades de carne e de peixe está previsto gastar em cada mesa. É de uma organização extraordinária.” 

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Menu de 13 Maio 1887 Luisa Oliveira / ADF / DGPC

Uma organização que não prescinde, sequer, de um regulamento para o pessoal de cozinha e de concursos para escolher os fornecedores do palácio. Tudo para controlar os gastos, explica o gastrónomo, que analisou em detalhe 66 menus, alguns já do tempo de D. Carlos (1863-1908) e D. Amélia (1865-1951), que não viviam na Ajuda (a residência oficial do filho mais velho de D. Luís e D. Maria Pia, que começou a reinar em 1889, era o Palácio das Necessidades), para chegar à conclusão de que “a família real era de alimentação muito simples e pouco dispendiosa”.

Na mesma refeição na mesa de Estado podia servir-se, depois da canja, as tais sardinhas, arroz de galinha, rosbife à inglesa e, para rematar, arroz doce à portuguesa. “Se havia exageros na monarquia, eles não passavam pela mesa”, diz o investigador, que é há muitos anos voluntário do palácio. Os luxos, garante, eram reservados para os banquetes e ocasiões festivas, com menus mais elaborados, sendo a excepção do dia-a-dia o uso de trufas pretas, já na altura caras, que eram servidas para agradar à rainha. “Estas trufas são muito comuns no Piemonte, onde Maria Pia nasceu, e talvez fossem servidas para que sentisse ainda mais em casa. As trufas e tudo o que aparece com indicação de ter sido feito ‘à milanesa’, ‘à piemontesa’ ou ‘à romana’”, diz Virgílio Gomes. Garante que a rainha não interferia no que se confeccionava nem fazia questão de ter à mesa este ou aquele prato, com uma excepção que muito provavelmente se devia mais a uma indicação do médico da família, o conde de Mafra, do que ao gosto pessoal: “A rainha exigia que houvesse canja à refeição todos os dias e gostava de tudo o que lhe punham à frente, contando que fosse em pouca quantidade. Se gastava muito em vestidos e mobília [ver caixa], o mesmo não se passava com a mesa.” 

 

Panade à la alentejana’

As migas alentejanas, servidas em dois almoços de Maio de 1887, é outro exemplo de um prato popular na mesa dos reis, que às vezes também recebia a visita de uns pés de porco à brasileira (talvez resquícios do tempo em que a família real viveu no Brasil para fugir às tropas de Napoleão). “Hoje em dia se quiséssemos reviver estas ementas, teríamos muitas dificuldades, teríamos de fazer muitas escolhas. O que queria dizer ‘à brasileira’, ‘à portuguesa’ ou ‘à moderna’ no final do século XIX? Não sabemos ao certo.” No caso das migas, no entanto, seria bem mais fácil recriar o prato, já que nos arquivos do palácio há a receita, escrita em francês e em português. “Quando aparece no menu, parece outra coisa, um prato mais sofisticado – ‘panade à la alentejana’ – mas são migas na mesma.”

A designação em francês obedecia a normas internacionais que ainda hoje vigoram em algumas casas reais, como a de Isabel II. “Quando dá um jantar, a rainha de Inglaterra ainda apresenta o menu em francês, porque é a língua francesa que continua a ter o vocabulário mais exacto e completo para falar de cozinha.”

Entender a mentalidade da época é fundamental para perceber a ementa, recheada de peixes e mariscos (pregado, salmonetes, linguado, lampreia, lagosta), carnes (vaca, vitela, pavão, fraca, peru) e caça (gamo, lebre, codorniz), mas também fruta e legumes da época (agriões, alcachofras, alface, favas, rabanetes, chicória, morangos e cerejas). A ementa que, quando apresentada a bordo do iate de D. Carlos, o D. Amélia, dispensava o francês. “Talvez porque se entendia que não eram precisas essas formalidades”, diz o professor de História da Alimentação, mesmo sendo a rainha filha do conde de Paris e muito mais interventiva no que à cozinha do palácio dizia respeito do que a sogra.