O admirável mundo de Donald Trump
Tudo os separa, também, na concepção sobre o papel internacional dos Estados Unidos. Clinton quer manter e reforçar a liderança americana no mundo. Trump quer regressar ao isolacionismo.
Não me lembro de a política externa ter sido, alguma vez, um factor decisivo nas presidenciais americanas. Tema de debate, sim, que uma grande potência não pode esquecer o seu lugar no mundo. Mas nunca o factor decisivo para eleger um presidente. E, se é certo que continua a não ser decisivo, não é menos certo que, desta vez, ganhou alguma importância e saltou para o debate público. E a razão é simples: é que estão em confronto personalidades diametralmente opostas, concepções sobre o papel internacional dos Estados Unidos frontalmente contraditórias e políticas externas claramente distintas.
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Não me lembro de a política externa ter sido, alguma vez, um factor decisivo nas presidenciais americanas. Tema de debate, sim, que uma grande potência não pode esquecer o seu lugar no mundo. Mas nunca o factor decisivo para eleger um presidente. E, se é certo que continua a não ser decisivo, não é menos certo que, desta vez, ganhou alguma importância e saltou para o debate público. E a razão é simples: é que estão em confronto personalidades diametralmente opostas, concepções sobre o papel internacional dos Estados Unidos frontalmente contraditórias e políticas externas claramente distintas.
Hillary Clinton representa a continuidade. Depois de um presidente negro, uma presidente mulher seria a confirmação do “politicamente correcto”, dominante em Washington. Não é simpática nem empática. É fria e contida. Mas é, tecnicamente, preparada e conta com um sólido currículo político e experiência internacional. Como secretária de Estado declarou e negociou, correu o mundo e os think tanks. É o espelho perfeito do establishment político norte-americano.
Donald Trump, pelo contrário, representa a ruptura. É homem, branco, protestante e politicamente incorrecto. Multimilionário, é um outsider sem currículo político nem experiência diplomática. E, ainda por cima, é desbocado, provocador e imprevisível. Tudo o que, dizem os livros, não deve ser um presidente do país mais poderoso do mundo. É a antítese da elite política dominante.
Tudo os separa também na concepção sobre o papel internacional dos Estados Unidos. Clinton quer manter e reforçar a liderança americana no mundo. Trump quer regressar ao isolacionismo de Charles Lindbergh nos anos 30: America first. De um lado está a abertura e o cosmopolitismo, do outro o retraimento e o nativismo. De um lado, a defesa da globalização, do multilateralismo e da ordem internacional liberal. Do outro, a defesa do nacionalismo, do proteccionismo e do unilateralismo. Para Hillary, a política internacional é a alta política e a hegemonia americana. Para Trump, a política internacional não vai muito para além dos negócios. E do imaginário 007, do James Bond da Guerra Fria. Tudo o resto é política interna.
Mas em que se traduziriam tais concepções no exercício concreto da política externa americana? Se podemos imaginar, sem dificuldade, o que poderia ser a política externa de Hillary Clinton, o mesmo não se pode dizer da política externa de Donald Trump. E a razão é simples. É que, para o bem ou para o mal, Clinton é previsível e significaria a evolução na continuidade da política externa da Administração Obama. Trump, pelo contrário, é a ruptura com o sistema. E não significaria nem o realismo de Bush pai, nem o neoconservadorismo de Bush filho. Provavelmente, um neo-isolacionismo. E, pior do que isso, totalmente, imprevisível.
Mas, afinal, o que disse Trump sobre a política externa e a segurança internacional? Tudo e o seu contrário. Mas de tudo quanto disse ficam cinco ou seis coisas concretas. Primeiro, a luta contra o terrorismo através de uma “América fortaleza” de onde os muçulmanos seriam, temporariamente, banidos e onde seriam introduzidos testes de avaliação ideológica para quem quisesse imigrar para os Estados Unidos. Segundo, o elogio do autoritarismo imperial de Putin e a vontade de reforçar laços de amizade e a cooperação com a Rússia na luta contra o Estado Islâmico. A troco, bem entendido, do reconhecimento da anexação da Crimeia. Terceiro, a denúncia, pura e simples, do acordo nuclear com o Irão. Quarto, a pergunta: porque não hão-de poder os Estados Unidos usar o seu poder nuclear, e o Japão ou a Coreia do Sul adquirir a bomba atómica? Isto é, não vê grande problema na proliferação nuclear. Quinto, que o acordo comercial com o Canadá e o México é um péssimo acordo para os Estados Unidos, que é preciso renegociar, urgentemente. Se é assim na América com a NAFTA (Acordo de Livre Comércio da América do Norte), imagine-se como seria na Europa com o TTIP (Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento). Sexto, que a NATO está obsoleta e que ele, uma vez Presidente, só responderia ao artigo V da Aliança se os membros europeus tivessem cumprido a meta de 2% do PIB, no investimento para a Defesa — isto é, só cumpriria a obrigação de auxílio mútuo se os aliados pagassem a conta. E se isto é válido para os aliados europeus, não é diferente para os aliados asiáticos.
Ora, no fundo, o que querem dizer estas seis ou sete coisas? Nada mais nada menos do que a renegociação dos acordos comerciais e dos pactos militares, ou seja, a denúncia das alianças permanentes dos Estados Unidos, na Europa e na Ásia; o fim do regime de não proliferação nuclear; o agravamento das relações com o mundo islâmico; e a aproximação à Rússia de Putin. E o que é que tudo isto significa? Em boa verdade, o fim da ordem internacional liberal como a conhecemos desde o segundo pós-guerra. E o caminho para um admirável mundo novo de Donald Trump. Novo e perigoso.
É certo que o se diz em campanha não é o que se faz no poder, que aconselha moderação e impõe realismo. Mas com Trump nunca se sabe. Se ousasse fazer um quarto do que já disse, era o bastante para acabar com a estabilidade e a segurança internacional. E não é difícil imaginar quem seriam as primeiras vítimas: a NATO, a União Europeia, o Ocidente. É claro que o Japão e a Coreia também não devem estar muito tranquilos. Mas se eu estivesse no lugar dos responsáveis europeus, desta vez, começava a pensar a sério na defesa da Europa.
Vice-reitor da Universidade Nova de Lisboa, professor convidado nas universidades Georgetown (2000) e Berkeley (2004)