“Make America Hate Again”?
Nada indica que a vaga de fundo populista encabeçada por Trump se vá diluir depois das eleições.
A América encontra-se perante escolhas dramáticas. Nos últimos dias, a vitória de Donald Trump tornou-se menos provável. Se esta tendência se confirmar no dia 8 de Novembro, será uma esplêndida notícia para os democratas e para os 50 dirigentes republicanos que, em Agosto, proclamaram que Trump “seria o Presidente mais perigoso da História dos Estados Unidos”. A maioria dos europeus e asiáticos suspirará de alívio — a excepção seria Vladimir Putin. Mas a eventual vitória de Hillary Clinton não será um garante de bonança.
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A América encontra-se perante escolhas dramáticas. Nos últimos dias, a vitória de Donald Trump tornou-se menos provável. Se esta tendência se confirmar no dia 8 de Novembro, será uma esplêndida notícia para os democratas e para os 50 dirigentes republicanos que, em Agosto, proclamaram que Trump “seria o Presidente mais perigoso da História dos Estados Unidos”. A maioria dos europeus e asiáticos suspirará de alívio — a excepção seria Vladimir Putin. Mas a eventual vitória de Hillary Clinton não será um garante de bonança.
Nada indica que a vaga de fundo populista encabeçada por Trump se vá diluir depois das eleições. Pelo contrário, ameaça permanecer como factor de agitação política. Se os democratas não conquistarem o Senado — já que a Câmara dos Representantes parece inacessível —, Hillary será confrontada com uma nova fase de bloqueio institucional, em que dificilmente conseguirá governar.
Thomas Friedman, colunista do New York Times (NYT), equacionou esta hipótese. “O cenário de pesadelo — excluindo, Deus o permita, uma vitória de Trump — é que Clinton vença por margem tangencial e os republicanos dominem a Câmara e o Senado.” Trump manteria “a base republicana em estado de permanente fúria, intimidando os legisladores republicanos favoráveis ao compromisso. Se acontecer, a América ficará à deriva”.
O outro motivo de perturbação é o futuro do Partido Republicano, o Grand Old Party (GOP), em crise de identidade e que se arrisca a ficar refém do “trumpismo”, mesmo que o magnata desapareça de cena. Sem um GOP forte e “normal”, o quadro político americano ficaria perigosamente desequilibrado.
Os republicanos
As opiniões são passionais. O neoconservador Robert Kagan, que abandonou o GOP, escreve no Washington Post: “Das coisas notáveis que aprendemos nestas eleições, a mais significativa é que o actual Partido Republicano é inapto para dirigir o país. Falhou no maior teste que um líder ou um partido pode enfrentar e falhou espectacularmente.” O desafio era a candidatura de Trump. Teme que “engendre o seu próprio suicídio”.
O colunista E.J. Dionne, este do campo democrático, assinala no NYT a responsabilidade do GOP na ascensão do trumpismo: “Durante anos, os republicanos fizeram um excepcional exercício de acrobacia: mobilizar a cólera da extrema-direita populista e os eleitores da classe operária branca por trás de um programa cujos benefícios iam para os bolsos das elites económica.” Hoje o partido está em perigo e “ninguém esperava uma implosão tão espectacular”.
Nas duas últimas semanas, a campanha rodou em torno de três pontos. Hillary consolidou a sua vantagem — cerca de seis pontos na média das sondagens. Ela beneficia, paradoxalmente, do discurso de Trump, que lhe facilita a recuperação do voto das minorias e, sobretudo, das mulheres.
Encostado à parede e contra a opinião do aparelho republicano, Donald Trump reafirmou a sua estratégia de falar para o núcleo duro do seu eleitorado, cuja coesão e agressividade se mantêm, mas que parece insuficiente para uma recuperação vitoriosa. Esta escolha dilacerou o Partido Republicano que enfrenta um dilema: uma demarcação firme de Trump implica o risco de retirar votos aos seus candidatos. Os dirigentes parecem resignados à derrota nas presidenciais e jogam tudo no Congresso.
Mas, à excepção de Paul Ryan, líder da Câmara dos Representantes, optaram pela mudez, deixando a praça pública aos tribunos de Trump. As últimas três semanas de campanha prometem ser mais agressivas e sujas. E pode haver mais “surpresas de Outubro”.
O populismo
O fenómeno Trump, americaníssimo por história e cultura, soma-se à maré populista que assola a Europa. Em ambos os casos, a base social do protesto é constituída pelos “perdedores” da globalização e das revoluções tecnológicas. O mais politicamente relevante, na medida em que incentiva fenómenos como a xenofobia e a antipolítica, é o sentimento de abandono e insegurança nas classes populares.
Em muitos países europeus, a esquerda constatou uma viragem das classes populares, sobretudo no terreno dos valores, e procurou uma “nova maioria eleitoral” dela excluindo as “categorias populares”. Os “sem-papéis” e as minorias identitárias ou culturais tornaram-se para a esquerda “um povo de substituição”. Esta linha acentuou o divórcio com as classes populares. Da França à Áustria, a extrema-direita tornou-se maioritária no voto operário. É a “esquerda sem povo”
Na América, o populismo tem fundas raízes desde o fim do século XIX e que se reavivaram nos anos 1930. Em termos de política anti-imigração é bom lembrar o slogan “The Chinese must go”, lançado pelo populista Denis Kearney em 1878 e que deu lugar, em 1882, à primeira lei da História americana contra uma nacionalidade específica — o Chinese Exclusion Act. Nos anos 1920, o Congresso impôs severas quotas à imigração da Europa meridional e Oriental (e só revogadas em 1965). Também a palavra de ordem “America First” tem uma história que remonta aos anos 1930. O leitor pode ler um resumo no ensaio acabado de publicar na Foreign Affairs pelo historiador Michal Kazin (autor de The Populist Persuasion: An Americam History)
Os historiadores distinguem duas tradições de populismo. Uma de esquerda, baseada na noção de classe e dirigida contra os patrões e plutocratas, outra de direita, que realça “os verdadeiros americanos” numa óptica de “nacionalismo racial e numa “concepção da América em termos etno-raciais”. É esta segunda família a representada por Trump.
Kazin cita o politólogo Justin Gest, que escreve: 65% dos americanos brancos aceitariam votar por um partido que defenda “suster a imigração maciça, reservando os empregos americanos para os trabalhadores americanos, preservando a herança cristã da América e pondo termo à ameaça do islão”. O papel de Trump não foi apenas dar voz ao protesto. Foi transformá-lo numa força política agressiva que contesta as próprias instituições. Para alguns, a sua campanha poderia substituir o “America First” por “Make America Hate Again” (Façam a América odiar de novo).
Mas nada é simples. “O populismo pode ser perigoso, mas pode ser também necessário”, adverte Kazin. E cita outro historiador, C. Vann Woodward, que em 1959 escrevia em polémica com intelectuais: “Podemos esperar e ter esperança em que futuras sublevações abalem as cadeiras do poder e do privilégio e funcionem como uma terapia periódica que parece necessária à saúde da democracia.”
Trágico será que democratas e republicanos permaneçam surdos ao grande mal-estar que atravessa a sociedade americana ou que o manipulem em termos de mero cálculo eleitoral. O protesto não passará à história no 8 de Novembro.