O último preso conhecido de Tiananmen foi libertado
Miao Deshun era operário e tinha 25 anos quando foi acusado de “fogo posto” por ter atirado um cesto contra um tanque em chamas. Aconteceu na noite do massacre.
Não há imagens de Miao Deshun em liberdade, também nunca houve imagens dele durante os longos anos que passou em prisões da China. Ao que tudo indica, foi libertado este sábado. Que se saiba, era o último prisioneiro encarcerado pela sua participação nos protestos pró-democráticos da Praça de Tiananmen, em 1989.
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Não há imagens de Miao Deshun em liberdade, também nunca houve imagens dele durante os longos anos que passou em prisões da China. Ao que tudo indica, foi libertado este sábado. Que se saiba, era o último prisioneiro encarcerado pela sua participação nos protestos pró-democráticos da Praça de Tiananmen, em 1989.
Antigo operário, tinha 25 anos quando foi acusado de “fogo posto” por ter atirado um cesto contra um tanque em chamas com outros colegas da fábrica onde trabalhava.
O episódio que levou Miao a passar quase toda a vida preso aconteceu na noite de 3 para 4 de Junho de 1989, a mesma em que as autoridades decidiram esmagar os manifestantes que ocupavam, há semanas, a maior praça do mundo, num protesto em que se pedia a abertura do regime comunista, mais direitos e liberdades.
O assalto do Exército fez centenas, talvez milhares, de mortos. Quem estava na rua e saiu vivo, foi tratado como criminoso: muitos foram detidos e depois libertados, mas 1602 pessoas receberam sentenças de prisão formais. Miao começou por ser condenado a prisão perpétua, mas viu a sentença várias vezes reduzida. Ao mesmo tempo, chegou a ser dado como morto. Em Maio deste ano, a organização de defesa dos direitos humanos Dui Hua, com sede nos Estados Unidos, anunciou que seria libertado.
Dele sabe-se que sofre de esquizofrenia e hepatite B e que “não teve contacto com o mundo exterior durante muitos anos” (Dui Hua). Em 2003, foi transferido para a prisão de Yanqing, com uma ala para presos doentes e idosos. Foi ele quem pediu aos familiares para pararem de o visitar, pelo menos há mais de uma década.
Miao demorou tanto a ser libertado porque sempre terá recusado trabalhar na prisão ou participar nas “sessões de reeducação” disponibilizadas aos presos.
“Com o tempo, Miao tornou-se muito teimoso, recusava sistematicamente trabalhar e nunca aceitou escrever cartas de arrependimento. Por isso, foi transferido para uma unidade reservada aos desobedientes”, contou agora, à Associated Press, Wu Wenjian, seu ex-camarada de cela na Prisão n.º 1 de Pequim, mais um dos prisioneiros de Tiananmen. “É um milagre que ele ainda esteja vivo.”
“Quando as penas foram decididas, os cidadãos comuns, como nós, foram condenados a penas mais duras”, disse há dois anos à BBC outro ex-prisioneiro, Zhang Baoqun. “Os tipos que tinham bons contactos, os que foram protegidos por certas associações, receberam penas mais leves”, assegura. “Ninguém falou em nosso nome.”
Muito longe
Segundo Zhang, Miao “recusou visitas” pela primeira vez no início dos anos 90, por “não querer que os pais, idosos, viajassem para tão longe”. Zhang, libertado em 2003, conta que “as autoridades tratavam Miao como se ele fosse doido”. Depois, diz, “soube que o mudaram para Yanqing”, mas não sabe muito sobre esta prisão, apenas que fica “muito longe”.
Os jornalistas da emissora pública britânica descrevem ter conduzido durante horas através de montanhas até alcançarem os portões de Yanqing, numa zona muito remota. “A localização da prisão faz parecer que Miao foi banido da sociedade moderna, bem afastado das políticas da Praça de Tiananmen”, lê-se no site da BBC.
Quem esteve com Miao na prisão evoca um homem muito calmo, franzino (a certa altura, não seria acorrentado como os restantes, por receio que o seu corpo tão magro não suportasse) e deprimido. A vida cá fora não se avizinha fácil.
O último?
Será que é mesmo o último dos prisioneiros de Tiananmen? “Na verdade, pode não ser, o Governo chinês nunca publicou a lista de manifestantes mortos nem dos prisioneiros”, diz ao diário francês Libération Rose Tang, activista dos direitos humanos a viver em Nova Iorque. Tang foi de bicicleta para a praça a 3 de Junho de 1989 e fez parte do último grupo de estudantes expulso pela polícia, na manhã seguinte.
“Há outros na prisão apenas por terem comemorado o que se passou naquela noite, como Chen Yunfei, ele próprio um dos manifestantes de Tiananmen”, lembra a activista. Aliás, em 2014, antes do 25º aniversário, as autoridades prenderam dezenas de activistas e intelectuais, tentando evitar qualquer acção que assinalasse a data.
A detenção de Chen é ainda mais recente: o activista e artista de 49 anos está preso desde o início de 2015 e chegou a ser acusado de “incitar à subversão do Estado”, acusações entretanto retiradas. Está a ser julgado por “procurar disputas e provocar problemas”. Rose recorda que “Chen foi preso depois de se ter ajoelhado junto à campa de um estudante morto durante o massacre.”