Entre a realidade e a ficção, estamos todos a caminho de Marte

Empresas como a SpaceX e a Boeing têm um calendário para pôr humanos no planeta vermelho em breve. Os EUA também. Já esta semana, a sonda europeia da missão ExoMars e o seu módulo Schiaparelli vão chegar a Marte. E a National Geographic vai estrear um documentário ficcionado que nos leva lá.

Foto
Paisagem marciana recriada na série Marte, que se estreará no canal National Geographic em Novembro National Geographic Channels/Robert Viglasky

Ohio, Janeiro de 1999, uma nave tripulada inicia uma viagem a Marte. O calor que emite derrete a neve, liberta a cidade do Inverno: “O foguetão fabricou o clima e, por um breve instante, o Verão caiu na paisagem terrestre…” O arranque auspicioso de Crónicas Marcianas, obra de Ray Bradbury publicada em 1950, desvanece-se nas sucessivas tentativas de colonização do planeta vermelho. Entre Marte e a Terra, o escritor norte-americano narra como os sonhos humanos podem transformar-se em despojos de civilizações esquecidas.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Ohio, Janeiro de 1999, uma nave tripulada inicia uma viagem a Marte. O calor que emite derrete a neve, liberta a cidade do Inverno: “O foguetão fabricou o clima e, por um breve instante, o Verão caiu na paisagem terrestre…” O arranque auspicioso de Crónicas Marcianas, obra de Ray Bradbury publicada em 1950, desvanece-se nas sucessivas tentativas de colonização do planeta vermelho. Entre Marte e a Terra, o escritor norte-americano narra como os sonhos humanos podem transformar-se em despojos de civilizações esquecidas.

Nas décadas seguintes à publicação do livro, a chegada de humanos à Lua e a exploração do sistema solar com sondas aproximou-nos daquela realidade. Marte só foi povoado por módulos e robôs. Em Janeiro de 1999, a única coisa que partiu para o planeta vermelho foi a sonda Mars Polar Lander, da NASA, que deixou de comunicar quando embateu no solo marciano, 11 meses depois. Mas nestas últimas semanas, uma série de declarações pôs o planeta na rota da exploração humana. A ideia mais arrojada veio de Elon Musk, o director-geral da empresa SpaceX, que quer colonizar Marte com um milhão de pessoas em menos de 100 anos.

Foto
O planeta Marte NASA

“Se as coisas correrem muito bem, a primeira nave poderá ir para Marte em dez anos. Mas há um risco enorme”, disse Elon Musk no fim de Setembro, no Congresso Internacional de Astronomia, no México. Para o empresário, a humanidade é vulnerável ao ter a Terra como a única casa. A queda de um grande asteróide poderá decretar o fim da civilização. Por isso, Musk defende a colonização de outros locais do sistema solar, para aumentar a nossa hipótese de sobrevivência. Marte é a melhor opção devido às condições atmosféricas e aos recursos geológicos, diz. Há ainda outra razão, a aventura: “É a coisa mais inspiradora que consigo imaginar.”

Há quem duvide da exequibilidade deste projecto. “Se se gastar dinheiro sem fim e se este for o objectivo principal das potências económicas e tecnológicas mundiais, talvez seja possível, embora tenha dúvidas. Mas tal vontade não existirá e, portanto, penso que não acontecerá”, diz ao PÚBLICO o engenheiro aeroespacial Nuno Silva, criticando a ideia do início da colonização em dez anos.

Nuno Silva é responsável pelo Departamento de Dinâmicas de Voo da empresa Airbus Defence and Space, que está a construir o rover da ExoMars, a segunda parte de uma missão a Marte da Agência Espacial Europeia (ESA) e da Rússia. Em Março, foram lançados a sonda Trace Gas Orbiter e o módulo de aterragem Schiaparelli, para a primeira parte da missão da ExoMars. Vão procurar vestígios de vida em Marte. A viagem dos dois aparelhos está a terminar. Este domingo, o módulo irá separar-se da sonda, e aterrará em Marte na próxima quarta-feira, 19 de Outubro. Se tudo correr bem, será a primeira vez que a Europa chega com sucesso à superfície de Marte. Já o rover será lançado em 2020. O investigador português está ciente das dificuldades de pôr humanos a viver no planeta vermelho.

Foto
Ilustração da missão ExoMars, que está a chegar a Marte ESA/D. Ducros

“É preciso um foguetão com capacidade suficiente para enviar algo tão pesado até Marte. Outra fase crítica é a aterragem. É preciso entrar na atmosfera com o ângulo certo, ter uma protecção térmica capaz de resistir à entrada e um sistema de aterragem seguro”, explica o engenheiro. Depois, vem a vida no planeta. “É necessário energia. A maioria das missões [de robôs] tem usado energia solar. Só se pode produzir energia durante o dia (armazenada em baterias para a noite), a quantidade produzida é proporcional à área dos painéis, e essa área é limitada pela massa e pelo volume que podem ser enviados no foguetão. Também será preciso resistir a temperaturas extremas: entre os 120 graus Celsius negativos e os 40 graus positivos, e serão precisos aquecedores. Em seguida, é preciso pensar na alimentação, geração de oxigénio e na água.”

Algumas destas questões foram provisoriamente abordadas por Elon Musk, que apresentou um vídeo animado da ida a Marte. Juntos, o foguetão e a nave projectados serão mais altos do que o Saturno V – o maior foguetão de sempre, usado para levar os astronautas à Lua, entre 1969 e 1972. Mas haverá inovações para tornar a missão mais barata. A ideia é reutilizar o foguetão que põe a nave em órbita da Terra com uma tripulação de 100 pessoas. O foguetão regressa à Terra (a SpaceX já demonstrou ser capaz de reutilizar foguetões) e coloca-se uma nave semelhante em cima do foguetão, mas agora cheia de combustível. Haverá um novo lançamento desta nave, que irá levar combustível à nave tripulada, que poderá então iniciar a travessia até Marte.

Elon Musk explicou ainda que a nave será de ida e volta. Quando aterrar no planeta vermelho, utilizará metano gelado como combustível produzido a partir do dióxido de carbono da atmosfera marciana e a água congelada no solo. “Nada disto é fácil”, comentou Phil Plait, astrónomo e autor do blogue Bad Astronomy. “Mas é possível.”

Com estas poupanças, Musk estima pedir entre 180.000 e 90.000 euros por pessoa para a viagem a Marte. Mas como é que os colonos vão sobreviver lá? O dono da SpaceX não responde, argumenta que o importante é estabelecer um sistema de transportes entre os dois planetas. “É então que vai florescer que uma quantidade tremenda de empreendedorismo e talento”, diz, sugerindo que as empresas irão resolver os problemas de viver lá. Mas assume o risco. “Penso que a primeira viagem a Marte será muito perigosa. O risco de fatalidades será alto.”

Esta nunca seria a abordagem da NASA e da ESA, diz Nuno Silva: “A NASA não enviará pessoas numa missão se achar que elas vão morrer. Mas isso não quer dizer que não haja um acidente mortal: haverá sempre riscos, mas a NASA (assim como a ESA) fará tudo o que puder para tornar esses riscos aceitáveis.”

Apesar de não sabermos o que é um “risco aceitável” para Elon Musk, o facto é que ele não está sozinho. No início de Outubro, Dennis Muilenburg, director-executivo da Boeing, disse numa conferência em Chicago estar convencido que “a primeira pessoa a pôr o pé em Marte irá chegar lá num foguetão da Boeing”, citou a Bloomberg. É um desafio directo à SpaceX.

E esta semana Barack Obama pôs os EUA na corrida. “Definimos o objectivo claro vital para o próximo capítulo da história da América no espaço: enviar humanos para Marte na década de 2030 e trazê-los em segurança de volta à Terra, com a ambição final de um dia ficarem lá durante um período de tempo alargado”, escreveu o Presidente dos EUA num artigo publicado no site da CNN. Obama disse que o Governo está a trabalhar com “parceiros privados” para concretizar o plano.

Quem não quiser esperar até lá pode sentar-se à frente da televisão já a 13 de Novembro, quando se estrear o primeiro de seis episódios da série Marte, do canal National Geographic. A série é uma mistura entre documentário e ficção, narrando a situação actual da exploração espacial, ao mesmo tempo que conta a aventura dos primeiros humanos que vão para Marte em 2033.

“Adoro narrativas espaciais, gosto da noção de que os humanos têm de alargar as suas fronteiras”, disse Ron Howard, um dos produtores-executivos da série, que realizou o filme Apolo 13, aos jornalistas, incluindo o PÚBLICO. “E temos de apoiar a nossa ambição de sermos uma espécie multiplanetária.”

Na ficção contar-se-ão os desafios de uma missão ao planeta vermelho. A parte documental vai apoiar-se numa série de entrevistas a especialistas. Elon Musk foi entrevistado, assim como Charles Bolden, administrador da NASA e antigo astronauta, Neil DeGrasse Tyson, astrónomo e reconhecido divulgador de ciência, e Ann Druyan, autora e produtora da série Cosmos: Uma Odisseia no Espaço, entre outros.

Se a série tiver sucesso, poderá ter mais temporadas que contarão como os humanos vão adaptar-se a Marte, diz Ron Howard: “O jornalista Stephan Petranek, autor do livro Como Vamos Viver em Marte, fala de um novo tipo de humano, um marciano. A nossa espécie vai começar a adaptar-se à vida lá e irá desenvolver a sua própria cultura.”

A obra de Ray Bradbury termina com uma ideia semelhante. Uma família humana sozinha no planeta vermelho a olhar para o seu reflexo num canal de água – a olhar para marcianos.