A defesa da privacidade nos tribunais
Será alguém responsabilizado pelo suicídio da italiana Tiziana Cantone?
A decisão de um juiz inglês de levar a julgamento o Facebook por ter deixado publicar várias vezes uma fotografia de uma menor de 14 anos nua levanta inúmeras questões, em especial no que toca ao direito à privacidade, cada vez mais estruturante das nossas vidas.
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A decisão de um juiz inglês de levar a julgamento o Facebook por ter deixado publicar várias vezes uma fotografia de uma menor de 14 anos nua levanta inúmeras questões, em especial no que toca ao direito à privacidade, cada vez mais estruturante das nossas vidas.
Dada a evidente violação da privacidade que configura a publicação de uma fotografia de uma menor nua numa rede social, o que se julga é saber em que medida é o Facebook responsável pelas publicações dos seus utilizadores.
Uma questão cuja resposta não é evidente mesmo que a lei europeia desresponsabilize os prestadores de serviços pela publicação de imagens violadoras de privacidade, desde que a empresa prove que faz o máximo possível para evitar a publicação dessas imagens e as retire quando há queixa.
O Facebook tem uma política de “avaliação” ou “censura” do publicado nas suas páginas. Ninguém se esqueceu ainda da censura da fotografia da criança a correr nua no Vietname após um bombardeamento de napalm, uma imagem icónica do século XX. Após a revolta dos utilizadores, levou ao recuo do Facebook. Proibir a publicação da fotografia seria o mesmo que proibir a reprodução de uma obra de Courbet ou de Picasso.
A questão põe-se de forma mais angustiante com o suicídio da italiana Tiziana Cantone, de 31 anos, que lutou durante meses para retirar da Internet um vídeo seu a ter relações sexuais, que se tinha tornado viral e que tinha enviado a um grupo de amigos e a um ex-namorado. Conseguiu que os tribunais lhe reconhecessem o “direito ao esquecimento”, pagou dois mil euros de custas, mas a decisão judicial foi ineficaz face à impossibilidade de controlo efectivo da Internet: as suas imagens íntimas continuavam a correr mundo. Tiziana não aguentou a pressão, após ter mudado de emprego e de residência.
As autoridades italianas abriram um inquérito sob suspeita de um crime de incitamento ao suicídio. Alguém será responsabilizado pela morte de Tiziana?
Os choques e batalhas no mundo da construção dos direitos da Internet, entre a sua liberdade, a eficácia comercial dos serviços e a privacidade dos utilizadores, desenrolam-se nos tribunais.
A proibição de divulgação na Internet não consegue a mesma eficácia da proibição de um livro, que, já de si, era ineficaz. Um dos casos paradigmáticos da dificuldade da proibição dos livros foi o da publicação de Spycatcher, de Peter Wright, ex-agente dos serviços secretos britânicos, proibido pelo Governo de Londres mas publicado nos Estados Unidos e na Austrália.
A Comissão Europeia dos Direitos Humanos, em 1990, condenou o Reino Unido por violar a liberdade expressão dos jornais Observer e Guardian ao proibir-lhes a publicação de excertos do Spycatcher, admitindo a existência de um período em que se justificaria a proibição do livro, antes da sua disseminação mundial. Em 18 de Maio de 2004, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) pronunciou-se também sobre a proibição de um livro: O Grande Segredo, do médico do Presidente Mitterrand, que revelava pormenores da sua doença cancerosa, dos tratamentos e sofrimentos. Com base na provável violação do sigilo médico e de privacidade, Paris conseguira que os tribunais decretassem em Março de 1996 uma proibição provisória da obra para análise da mesma. O TEDH considerou essa proibição compatível com a liberdade de expressão consagrada na Convenção Europeia dos Direitos Humanos.
Mas em Outubro de 1996, o Governo francês conseguiu que fosse prorrogado judicialmente a proibição do livro sem tempo definido. E isso o TEDH não considerou aceitável. Tinham passado meses desde que um juiz proibira provisoriamente o livro, já tinham sido vendidos mais de 40 mil exemplares, existia um debate público sobre a saúde do ex-Presidente pelo que nada justificava a manutenção da proibição. O TEDH condenou a França por violação da liberdade de expressão.
Hoje, a pura e simples proibição de livros é muito dificilmente compatível com a liberdade de expressão europeia (e, de forma mais evidente, norte-americana).