Segunda Circular: júri diz que a empresa actuou de forma a controlar o projecto
Documento do júri do concurso a que o PÚBLICO teve acesso diz que a empresa deliberadamente afastou outras soluções para o projecto e reitera a nulidade do concurso.
O júri do concurso das obras da Segunda Circular, em Lisboa, analisou e não recua na conclusão: existe um “conflito de interesses” que “colide, de forma grave, com os princípios e preceitos fundamentais aplicáveis à contratação pública” no concurso da obra. O documento a que o PÚBLICO teve acesso reforça que a decisão "não pode deixar de ser a nulidade” do contrato, depois de a Câmara Municipal de Lisboa (CML) ter decidido suspender as obras, no início de Setembro.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
O júri do concurso das obras da Segunda Circular, em Lisboa, analisou e não recua na conclusão: existe um “conflito de interesses” que “colide, de forma grave, com os princípios e preceitos fundamentais aplicáveis à contratação pública” no concurso da obra. O documento a que o PÚBLICO teve acesso reforça que a decisão "não pode deixar de ser a nulidade” do contrato, depois de a Câmara Municipal de Lisboa (CML) ter decidido suspender as obras, no início de Setembro.
Em causa está a acumulação das funções de projectista com as de fabricante/fornecedor da RAR, o material que integra a solução técnica do pavimento escolhido para as obras na Segunda Circular.
Tal como o PÚBLICO avançou, em causa está uma alteração da empresa que fez a consultadoria do projecto a 26 de Janeiro deste ano, quando passou a permitir à empresa o fornecimento da solução de pavimento que tinha aconselhado à CML, a 23 de Dezembro de 2015.
A empresa passou a incluir na sua actividade o “fabrico e comercialização de borracha distendida e reagida proveniente da valorização de borracha reciclada de pneus de carros ou camiões e de outros óleos e fillers minerais”, como se pode ler no documento de alteração ao contrato da sociedade, que foi entregue nos serviços do Ministério da Justiça.
No documento, o júri responde à pronúncia de um dos concorrentes do projecto em resposta ao relatório anterior.
Para o concorrente n.º 22, constituído pela empresa Alberto Couto Alves e Tomás de Oliveira Empreiteiros, o entendimento do júri que consta no anterior relatório “carece em absoluto, de fundamento factual, legal e até moral”. No entender do concorrente, o júri não concretiza as diligências e toma a sua decisão de cancelar o concurso “com base em indícios”. “Para uma decisão destas, teríamos de estar perante factos solidamente provados, pois de outro modo estaríamos a permitir que as decisões de contratar fossem revogadas com critérios arbitrários e ilegais”, continua, concluindo que o Segundo Relatório final deveria “ser considerado nulo”.
As duas empresas citam ainda uma entrevista a Jorge Sousa, sócio-gerente da Consulpav, em que o empresário se defendia dizendo que bastava terem falado com ele que ele teria prestado os necessários esclarecimentos.
Ora, durante a fase de esclarecimentos do processo concursal existiram três questões de três empresas concorrentes. Duas a propósito da solução a aplicar no pavimento e uma terceira relativa à questão do fornecedor do material preconizado no projecto de pavimentação e da sua eventual exclusividade em território nacional. São esses que o relatório lembra e recupera.
Mais acrescenta o documento que “todos os esclarecimentos referentes às questões relacionados com o pavimento a aplicar disponibilizados aos concorrentes são a reprodução exacta daquilo que o projectista [a Consulpav] entendeu responder”.
Nota também que aquele que a hipótese de ser considerado um caso de concorrência limitada é negada pela própria Consulpav quando durante os pedidos de esclarecimento responde que “o facto de neste momento só haver uma empresa em Portugal a produzir um produto que pode ser obtido exactamente nas mesmas condições por todos os empreiteiros que queiram concorrer à obra e tenham a experiência, conhecimentos e meios técnicos para a executar não é distorcer as regras de mercado”.
Esta resposta, que acontece em Abril, “leva o júri a concluir que, quando se referia ao único fornecedor da RAR em território nacional, apenas poderia estar a referir-se a ele próprio”, lê-se no documento. Uma “garantia que lhe seria impossível prestar se não fosse o próprio a definir tais condições, na qualidade de único fornecedor em território nacional”.
Posto isto, o júri destaca que “qualquer entidade, exercendo funções na qualidade de projectista, tem, durante a elaboração do projecto, a possibilidade de influenciar o resultado técnico e económico de uma determinada obra, exercendo essa influência através da solução técnica escolhida”, pode ler-se no documento.
Assim sendo, para que o projecto decorra “em condições de absoluta independência e imparcialidade" não poderá existir a acumulação de funções de assistência técnica "com as de fornecedor de um material previsto no projecto de que é autor”.
O relatório recupera uma resposta da construtora, já durante a segunda fase de esclarecimentos, à empresa concorrente Teixeira Duarte, que considera “pouco esclarecedora”, uma vez que não especifica “que marcas e/ou produtos equivalentes poderiam satisfazer as exigências do caderno de encargos”. O motivo tem um propósito claro, considera o júri, que é categórico na sua análise: “no desenrolar do concurso, as respostas da equipa projectista sempre foram no sentido de não serem admitidas propostas variantes”.
Posto isto, o grupo reitera não ter dúvidas:
A Consulpav projectou uma solução na qual incorporou um produto que fabrica e comercializa e que está registado em seu nome ou em nome de uma entidade ligada a esta empresa.
O júri destacou ainda que este conflito de interesses aconteceu “a montante de decisão de contratar a empreitada".
A Segunda Circular de Lisboa é a rodovia com maior nível de sinistralidade, sendo, igualmente, a via mais geradora de poluição atmosférica da cidade pelas emissões de CO2 e poeiras em suspensão e, a par do eixo Norte-Sul, o canal rodoviário mais gerador de ruído, detalha o gabinete de Manuel Salgado que tutela as Obras Municipais, na proposta que será apreciada na próxima reunião da Câmara de Lisboa.
Recorde-se que a primeira fase das obras começou em Julho e deveria ocorrer até Outubro, que incluía troço do nó do Ralis e a Avenida de Berlim, nos Olivais, com um custo previsto de 750 mil euros. A segunda fase implicaria a intervenção na via desde o nó da Buraca até ao aeroporto, numa extensão de dez quilómetros e estaria avaliada em 9,5 milhões de euros. As obras incluiriam a arborização da Segunda Circular com cerca de 500 freixos, o alargamento do separador central e a renovação da sinalização.