Um director de fotografia entre os pássaros
Todas as longas-metragens de João Pedro Rodrigues foram fotografadas por ele, Rui Poças. Não precisam de falar muito, “a confiança mútua e a sintonia são gigantes”.
Desde meados da década de 1990 que Rui Poças é um dos mais requisitados directores de fotografia do cinema português, estando o seu nome por detrás das imagens de filmes de cineastas de várias gerações, de Fernando Lopes a Catarina Ruivo, passando por Jorge Silva Melo, João Mário Grilo ou Margarida Gil, em lista nada exaustiva. As colaborações mais assíduas são com Miguel Gomes, com que trabalhou até Tabu, e sobretudo João Pedro Rodrigues, de quem filmou todas as longas-metragens desde a primeira, O Fantasma, em 2000, para além de várias curtas.
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Desde meados da década de 1990 que Rui Poças é um dos mais requisitados directores de fotografia do cinema português, estando o seu nome por detrás das imagens de filmes de cineastas de várias gerações, de Fernando Lopes a Catarina Ruivo, passando por Jorge Silva Melo, João Mário Grilo ou Margarida Gil, em lista nada exaustiva. As colaborações mais assíduas são com Miguel Gomes, com que trabalhou até Tabu, e sobretudo João Pedro Rodrigues, de quem filmou todas as longas-metragens desde a primeira, O Fantasma, em 2000, para além de várias curtas.
O entendimento já é quase telepático, ainda precisam de falar muito? Rui sorri. “Nem eu nem o João Pedro somos pessoas muito faladoras”. Mas neste ponto não precisam de falar muito, “a confiança mútua e a sintonia são gigantes”. O percurso comum é longo, nasceram no mesmo ano, estudaram na mesma escola (a Superior de Teatro e Cinema), seguiram os mesmos mestres (“em particular o António Reis”), frequentaram a mesma Cinemateca. “Há um património comum que não nos faz sermos pessoas iguais, mas que nos ajuda a comunicar de forma facilitada e muito rápida”. De resto, acrescenta, “trabalhar com o João Pedro e com o João Rui [Guerra da Mata, outro colaborador de João Pedro desde o início] é não só uma felicidade, mas uma espécie de comunhão criativa”.
“Não há verdadeiramente um método”, diz Rui, ou se existe não é, ainda assim, muito diferente do seguido quando trabalha com outros realizadores. Gosta de se envolver no projecto desde o momento em que ele ainda não tem forma definida, “fazer parte do processo de germinação”. No caso de O Ornitólogo, entendeu o projecto como algo com aspectos em comum com uma curta anterior de João Pedro, Manhã de Santo António, onde já havia “o recurso a uma câmara com um ponto de vista duma entidade sobre-humana”, através da visão “em plano picado da estátua de Santo António na Praça de Alvalade sobre os humanos da madrugada”. Santo António é um dos motivos centrais de O Ornitólogo, mas há outro elemento fundamental, e não-humano: os pássaros. “Recentemente fui ver a exposição do V centenário do Bosch, em Madrid, e alucinei com o recurso à presença das aves em toda a pintura. O Bosch ora usa-as como observadores das acções humanas, e portanto faz-nos também bascular no nosso ponto de vista sobre elas, ora usa-as como símbolos. A coruja, por exemplo, era muito usada na Idade Média como símbolo do mal e do vicio e até do escárnio de Cristo, é uma presença constante e a quem se poderia atribuir um papel de narrador moral. A pomba do Espírito Santo no Ornitólogo é bem menos terrena que sagrada e simbólica, está claro”.
Rui Poças fala de Bosch, acrescenta Zurbarán ou Caravaggio, mas não entende a explicitação de referências como uma coisa prévia. A maior parte das vezes, diz, são ligações que descobre a posteriori, o que até deixa “um sabor meio-amargo, penso sempre ‘ah, se me tivesse apercebido disto antes talvez tivesse puxado mais por aqui ou por ali'". Em todo o caso, e respeitando quem prefere trabalhar com “moldes” dados por referências de pintores ou fotógrafos (“já trabalhei com realizadores que me dão uma lista de pintores como modelo”), no trabalho com João Pedro esse aspecto é implícito: pelas razões que já apontou, ele e o realizador têm “um arquivo imaginário em comum”, e é “muito fácil chegarmos à mesma ideia sem uma grande negociação”, algo que tem vantagens na agilidade e economia do processo de colaboração. Mas é um facto que pensa mais em pintura quando prepara as suas imagens. “Como espectador gosto muito de meta-cinema, de cinema que fala de cinema”, mas curiosamente “o cinema não me interessa como referência para fazer cinema”.
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Há muita natureza em O Ornitólogo, de modo diametralmente oposto ao carácter urbano da primeira colaboração do dois em O Fantasma. Mas é uma natureza trabalhada de modo tendencialmente artificial, tornada tão maleável como o artifício dado por um estúdio – ou é, pelo menos, a nossa intuição. E Poças reconhece esse aspecto como uma preocupação no trabalho do filme, acompanhada de uma reflexão sobre, digamos, “a natureza daquela natureza”. O que é esta natureza, que papel desempenha. Uma das razões, aliás, para a escolha do formato larguíssimo do 2:35, para Rui “uma forma de melhor contrapor o homem [o protagonista] ao décor”. Algures entre o western – como nas primeiras cenas com o protagonista a descer o rio – e o estilo National Geographic, como nos muitos planos com pássaros captados nos seus habitats. Aí Rui Poças puxou mesmo da recordação de documentários sobre natureza e zoologia, como uma célebre série espanhola dos anos 70, O Homem e a Terra: “foi mesmo uma memória muito presente, passei o tempo a assobiar a música do genérico da série”. E a questão era mesmo encontrar um “território fotográfico” entre essas duas coisas, a grandiosidade hollywoodiana (“que nos estava vedada por óbvia falta de meios”) e a objectividade da divulgação científica, no caminho encontrando também “a curva que vai do naturalismo ao paroxismo artifícioso das cenas finais”. A fotografia do filme, resume Rui, é uma tentativa de resposta à pergunta “como é que se faz isso, como é que se fabrica essa curva”. De resto, e confrontado como a memória da claustrofobia de O Fantasma, para Poças estamos agora no seu exacto reverso: “a agorafobia, o homem perdido numa natureza gigante, num espaço infinito”.
E depois há outro aspecto característico do cinema de João Pedro: a relação com o sexo, franco e explícito, com o erotismo masculino. Rui diz que isso lhe dá um prazer especial a filmar. “Gosto muito do erotismo, e o erotismo masculino também é apelativo, gosto de compor, encontrar a coreografia, e entendo-me muito bem nisso com o João Pedro, apesar de termos preferências sexuais diferentes”. Talvez seja uma coisa, interroga-se, que venha ainda do seu gosto pela pintura, e de toda a herança artística da descrição de corpos masculinos. Mas o sexo nos filmes de João Pedro, “onde há uma perversidade que vem menos dos actos em si”, que são sempre francos, “mas das situações”, também apelam “à costela buñueliana” que existe nele. O que é curioso, remata, é que “o João Pedro como pessoa é muito mais pudico do que eu”, e essa diferença acaba por tornar essas cenas bastante divertidas de filmar.
No fim da conversa, à despedida, desafiamo-lo a nomear um filme que ele veja e de que diga “eh pá, gostava de ter sido eu a filmar isto”. Pergunta “terrível”. “Vou-me safar com meia boutade, a Branca de Neve do César Monteiro; parece uma piada, mas acho mesmo genial."