Este é o mundo dos Eames, e nós só (ainda) vivemos nele
Charles e Ray Eames confundem-se com um par de cadeiras, mas oferecem mais que isso - informam a vida de hoje, dos lugares onde nos sentamos aos ecrãs em que nos reflectimos. O casal da otomana de luxo e dos assentos de aeroporto está tão na moda quanto há meio século.
No Mundo de Charles e Ray Eames há não só um elefante na sala, há também uma baleia. Um está num expositor, a outra está no tecto do Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (MAAT). Charles e Ray Eames confundem-se com um par de cadeiras, mas oferecem mais que isso - informam a vida de hoje, dos lugares onde nos sentamos aos ecrãs em que nos reflectimos. O casal da otomana de luxo e dos assentos de aeroporto está tão na moda quanto há meio século. Eles tinham “afecto pelos objectos” e uma curiosidade infinita, contam o seu neto, Eames Demetrios, e Catherine Ince, a comissária da exposição que viajou do Barbican para Lisboa.
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No Mundo de Charles e Ray Eames há não só um elefante na sala, há também uma baleia. Um está num expositor, a outra está no tecto do Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (MAAT). Charles e Ray Eames confundem-se com um par de cadeiras, mas oferecem mais que isso - informam a vida de hoje, dos lugares onde nos sentamos aos ecrãs em que nos reflectimos. O casal da otomana de luxo e dos assentos de aeroporto está tão na moda quanto há meio século. Eles tinham “afecto pelos objectos” e uma curiosidade infinita, contam o seu neto, Eames Demetrios, e Catherine Ince, a comissária da exposição que viajou do Barbican para Lisboa.
Primeiro, as primeiras coisas: Charles e Ray Eames não eram irmãos. Eram um casal, um homem e uma mulher que fotografam, desenhavam, projectavam, arquitectavam, filmavam. Depois, o que é inevitável: são os autores de uma famosa e ubíqua cadeira de assento em plástico/fibra de vidro, popular, a Shell Chair, e de outra cadeira célebre, a Lounge Chair, mais luxuosa e elegante em madeira e pele. “São familiares mesmo para quem não conheça o seu nome. Se viajaram nos EUA provavelmente sentaram-se em mobiliário deles num aeroporto; se se sentaram numa cadeira de plástico de qualquer tipo, a sua génese está no trabalho dos Eames”, descodifica Ince.
Viveram o século XX entre a autoria e a massificação e são pura história do design - falam-nos do moderno e do Bom Design, de inovação e, claro, de resolução de problemas. Mas por que é que importam hoje, por que é que estão tão presentes e por que é que não são (só) peças de museu? “A importância que tiveram na paisagem do nosso mundo é sentida de muitas maneiras diferentes, na mobília que desenharam, na forma como pensaram na vida moderna, seus conceitos, nos elementos modulares, na escolha e personalidade do consumidor e no exercício da sua escolha. Também se sente no mundo do cinema”, explica a comissária, abrindo portas atrás de portas de um gabinete de curiosidades que vai dos ferimentos da II Guerra ao mobiliário dos restaurantes da moda de 2016, tudo visto do Google Earth.
Um festim visual
Na exposição que ocupa parte da Central Tejo no MAAT há tanto objectos cativantes quanto maquetes, documentos e filmes. Os olhos podem demorar-se nas cadeiras e peças que quem tem a felicidade de se encantar com as linhas de um objecto e com a inventividade da materialidade vai apreciar. Há uma torre musical, uma espécie de xilofone activado por esferas, ou um banco em forma de elefante que era um dos objectos criados pelos avós que Eames Demetrios preferia. No ar está a baleia, um produto artesanal não identificado que os Eames trouxeram para a sua vida e que aparece sem explicação em fotos e em filmes do casal, o que apaixonou, por seu turno, Catherine Ince. “Moviam-se muito fluidamente entre a matemática e a moldagem de contraplacado ou o encantamento do circo”, sorri.
Para Lisboa veio 80% do que há um ano estava no Barbican, e nas legendas e textos da exposição residem as explicações sobre a incessante pesquisa dos Eames sobre os seus materiais, as suas múltiplas áreas de trabalho. Em suma, é “um festim visual, mas que é escorado pelo interesse e ambição intelectual do seu trabalho”, define a comissária em périplo com o Ípsilon pela exposição. O que eles fizeram foi “mudar a forma como o mundo operava no século XX”.
Pensavam de forma interdisciplinar e convocavam pessoas das mais diferentes áreas a trabalhar com eles. Desenharam a Casa Eames por um desafio da revista Arts & Architecture, que acabaria por ser a casa modular feita de componentes industriais já prontos onde viveram o resto da vida em Santa Monica - “um exemplar da mais bela e icónica arquitectura moderna do século XX”, encanta-se Ince. A Shell Chair, a tal cadeira de assento de fibra de vidro moldada que é “insanamente ubíqua, a certa altura estaria nas salas de aulas e nos ginásios em toda a América”, surgiu no contexto do concurso de mobília low-cost do MoMA em 1949. Criaram talas de madeira para os feridos da guerra com pesquisa na sua máquina caseira de moldagem, a ludicamente baptizada Kazam Machine; fizeram mais de 120 pequenos filmes, entre os quais Think, com múltiplos ecrãs que hoje parecem banais. Ou o importante Powers of Ten, que em 1977 parte de um casal num parque para vistas aéreas, espaciais e até galácticas - “o Google Earth baseia-se nele”, atira Eames Demetrios.
Ainda assim, o neto parece mais inclinado a acondicioná-los na caixa do design. Mas garante logo que eles não eram famosos ao nível do que agora classifica como “designers rock star”, porque vê o design como essa capacidade cabalista de resolução de problemas, um canivete suíço para a vida. O lugar na história está conquistado, mas e depois? O que se faz com ele? Os seus trabalhos “são expressões das suas ideias e formas de olhar para o mundo”, uma prova de que “o design devia ser ensinado nas escolas como uma aptidão de vida e não como uma aptidão profissional. Porque o design é algo que os humanos fazem e que talvez nos defina mais do que a linguagem - para o bem e para o mal, desenhamos coisas.”
O tempo e memória
Catherine Ince está há quatro anos a viver Eames, três de pesquisa antes da mostra do museu londrino e agora mais um com eles em digressão, primeiro pela Suécia, depois Portugal. Tão técnica quanto lúdica, a exposição tem outro embaixador, Eames Demetrios. É afável e tão insider do Eames Office que hoje gere que há frases de uma uma TED Talk que deu sobre os avós que se insinuam nas entrevistas. Conta histórias dos Eames como educadores estimulantes para os netos, não porque os endoutrinassem sobre o design, a arquitectura ou as talas para o Exército que tinham produzido, mas porque, por exemplo, lhes davam para a mão máquinas fotográficas mais baratas para que não tivessem medo de as estragar ao usá-las nas suas aventuras.
“Aprendemos o que é o design ao contrário. Mostraram-nos muitas coisas que só hoje percebemos. Um exemplo: acreditavam que o papel do designer era basicamente o de um bom anfitrião, que prevê e antecipa as necessidades do convidado. Nunca nos disseram isso, mas olhando para trás eram anfitriões espantosos para nós” com inúmeras actividades, sempre diferentes.
Os Eames não eram estrelas de rock, mas eram parte de um firmamento interessante. Enquadrados no establishment no sentido em que participavam nas exposições mundiais, eram convidados pelo governo para desenvolver projectos ou planeavam experiências para a IBM, “os objectos que faziam era consequência da experimentação com certos materiais e tecnologias que saíam do complexo industrial e militar, ou que eram consequências da explosão do consumo do pós-guerra dos EUA”, lembra Ince.
Por outro lado, Gregory Peck era um bom amigo, encantado com o polvo que o casal tinha num grande aquário - era um dos fascínios dos Eames, o mundo aquático, e está também numa sala de slides no MAAT - e que, reza a história reproduzida pelo neto e por Peck, reconhecia e cumprimentava Charles Eames sempre que ele entrava no atelier. Billy Wilder, que lhes tinha encomendado o projecto de uma casa em 1949 (nunca foi construída), era seu companheiro de viagens e o destinatário da primeira das Lounge Chair. Mais tarde, desenhariam para ele uma cadeira ideal para sestas, a Soft Pad Chaise. Ray Eames desenhou os créditos de abertura de Ariane (1957), de Wilder, que colaborou com eles em Glimpses of the U.S.A. (1959), uma curta que montava imagens da vida na América, de Marilyn à mercearia, para Moscovo ver em plena Guerra Fria. Esta amizade ajudou a estender outro dos braços da importância dos Eames a outra área, a da fotografia e da história do cinema, já que fotografaram profusamente vários sets e filmagens. Há cerca de 750 mil fotografias dos Eames só no arquivo da Biblioteca do Congresso dos EUA, acompanhadas por muitos dos seus filmes conceptuais.
O seu tempo era este. Em 1946, Charles Eames tornou-se o primeiro designer a ter uma exposição só sua no MoMA. Em 1956, o casal foi à NBC, um dos três canais dos EUA, apresentar a Lounge Chair. Charles conversa com a apresentadora, e recorda a presença da sua parceira e sócia Ray, algures na boca de cena. “Ela está atrás do homem, mas é terrivelmente importante”. O seu tempo era também isto. Charles e Ray Eames são tanto um produto dos tempos quanto sintomas da forma como, ainda hoje, admite Demetrios quando questionado pelo Ípsilon, as parcerias criativas e o papel das mulheres no design, na arquitectura ou nas artes pode ser diminuído.
“Charles e Ray eram uma equipa colaborativa. trabalhavam juntos, criavam juntos e eram marido e mulher. Há uns dez anos, o New York Times escreveu um artigo sobre ‘Powers of Ten, dos irmãos Eames’. Há que trabalhar ainda a forma como as pessoas avaliam o contributo de Ray. Charles era 100% claro sobre isso e já em 1943 - eles casaram-se em 1941 - eles se referiam ao atelier de ‘Charles e Ray Eames e a sua equipa’”, explica Demetrios. Na exposição, é clara não só a parceria, mas também a autoria. Há projectos de Charles, com formação de arquitecto, há trabalhos de Ray, formada em Belas Artes, há projectos de ambos. “Vêmo-los e lemo-los a apoiar-se mutuamente mas tinham diferentes talentos, também eram dois indivíduos”, diz Ince.
Charles morreu em 1978, Ray em 1988. As suas peças continuaram em todo o lado, das colecções privadas aos museus (o Museu do Design e da Moda de Lisboa possui algumas peças, nomeadamente de mobiliário modular, que O Mundo de Charles e Ray Eames não traz a Portugal), da televisão de Frasier ao cinema de Polanski (O Escritor Fantasma). A série Mad Men, esse portento de retromania, pôs cadeiras Eames em múltiplos espaços e a indústria das cópias (e também os fabricantes licenciados originais, a Vitra e a Herman Miller) encarregou-se de as levar a mais e mais casas ou restaurantes.
A imitação não é a melhor forma de elogio para Eames Demetrios. “Não é muito lisonjeador porque quando se tem uma imitação, não se tem a experiência Eames”, diz na Central Tejo, ladeado por várias madeiras trabalhadas pelos avós. Fala de qualidade, dos materiais repensados com os anos tendo em conta o meio ambiente. Nega o elitismo. “As pessoas trazem muitas vezes a ideia de autenticidade das Belas Artes para o design - a multiplicidade é inerente ao conceito do design”, admite. “Um Picasso é um objecto e uma experiência e só se pode obtê-lo lá”, frente à pintura, “mas a cadeira que Charles e Ray desenharam é a cadeira que a Vitra faz amanhã. Criaram um sistema para dar aquela experiência uma e outra vez”. Só que “há 50 anos, se disséssemos a alguém para fazer uma cópia de uma cadeira, era demorado, trabalhoso; agora a palavra cópia significa arrastar um ficheiro de um lado do desktop para o outro e por isso há muita gente que ouve falar de uma cópia de uma cadeira assume subconscientemente que pode ser um clone, que é como um download de uma música. O que é triste é a perda da compreensão da materialidade, da qualidade das coisas”.
Ultimamente, parece haver nova ressurgência. “A estética Eames entrou e saiu de moda muitas vezes ao longo das décadas”, concorda Catherine Ince, e “o mobiliário deles é intemporal, são bastante democráticos. São peças de mobiliário, especialmente a cadeira de plástico e não tanto a Lounge, que estão em casa em qualquer lado e são objectos em si mesmos, são a sua própria entidade”. As chamadas “linhas limpas”, o moderno de meados do século XX - “por que é que não morre?”, perguntava há dias o New York Times. Voltou há 20 anos e continua por cá, muitas cópias, alguns originais. “Acho a paisagem do mundo da cópia muito interessante. Aprendemos a copiar”, pondera Ince, e “claramente há um mercado - o que significa isso em relação ao gosto do consumidor?”. A democracia concorre para isso, e também para a overdose. Vários profissionais de design, da decoração e edição decretavam no diário norte-americano a sua saturação com a cadeira de fibra de vidro. Mas também olhavam para um futuro em que a próxima vaga será, defendia alguém, a Casa Eames, as suas estantes, plantas e texturas.