Bob Dylan, um herói político relutante
É um prémio para o escritor de canções. E é também um Nobel da Literatura que reflecte a inevitável permeabilidade entre disciplinas que marca a nossa era, com hierarquizações artificiais a serem cada vez mais postas em causa.
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É um prémio para o escritor de canções. E é também um Nobel da Literatura que reflecte a inevitável permeabilidade entre disciplinas que marca a nossa era, com hierarquizações artificiais a serem cada vez mais postas em causa.
A três semanas das eleições presidenciais americanas pode ter também leituras políticas. Talvez seja abusivo fazê-lo, até porque o nome de Dylan já havia constado da lista de favoritos em anos anteriores. Mas é inevitável que essas leituras venham a ocorrer, não só porque o galardão não era atribuído a um americano desde 1993 e porque, afinal, Bob Dylan é hoje um dos símbolos eternos da América. Não se lhe conhece nenhuma frase acerca de Donald Trump, mas não é preciso.
Se Trump representa a insatisfação em relação aos diversos impasses do sistema sociopolítico actual, mas apenas na sua forma negativa, reactiva, grosseira e básica, Dylan é a garantia de que aquilo que, em determinado momento, consideramos essencial não se desagregará. Já se sabe. O mundo não anda muito bem. Provavelmente nunca andou, mas há alturas em que disfarça. Parece que voltámos a uma espécie de Guerra Fria, com a diferença de que agora não sabemos que designação lhe atribuir.
Em alturas assim o que é natural ocorrer é regressar-se àquilo que, em determinado momento, consideramos essencial. Resistir a um mundo em desagregação pode significar retornar aos valores basilares – àquilo que lhe pode atribuir inteligibilidade e sentido.
Dylan, como Springsteen de outra forma, reaviva a tradição, as raízes, a memória, o tronco, devolvendo-nos os valores perenes, a sobriedade, a austeridade, um certo misticismo. Ou uma certa ideia de fé. Mesmo que seja apenas uma sensação. Parte do fascínio que Dylan desperta nas novas gerações advém daí. A sua forma de se insurgir, ou de resistir, já não é compor canções de protesto, mas sim devolvendo-nos uma qualquer noção de autenticidade, verificável até numa carreira que foi sobrevivendo a todas as contradições – e que o tempo acabou por rasurar.
Claro que Dylan seria o primeiro a recusar tudo o que foi dito. Ele diria que não representa nada, a não ser ele próprio. É um herói relutante. Mas já não há nada a fazer. Mesmo alguém como ele, sempre pronto a reescrever a sua história, deixou de ter controlo sobre o seu legado. Uma certa América que não se revê na América de hoje não necessita de o ouvir gritar que é contra Donald Trump. A sua simples presença, a música, a escrita ou a forma como gere a mitologia chegam. Existir já é resistir.