No quarto escuro com Danny Brown: o álbum de hip-hop mais excitante de 2016
Era adolescente e já vendia droga. Pagou o preço na prisão, mas não desistiu de ser rapper. Atrocity Exhibition não é só o álbum de hip-hop mais excitante de 2016: é um triunfo pessoal.
Ele atira-nos logo isto à cara: “I'm sweating like I’m in a rave/ Been in this room for three days/ Think I’m hearing voices/ Paranoid and think I’m seeing ghosts, oh shit/ Phone keep ringing but I cut that shit off/ Only time I use it when I tell the dealer drop it off”. Paranóia, o carrossel emocional e físico das drogas, o mundo luminoso a uma distância intransponível: eis o quarto, eis a mente de Danny Brown. O quadro, cuspido pela voz nasalada do rapper de Detroit, é logo pintado no primeiro tema de Atrocity Exhibition. Chama-se Downward Spiral e a batida é feita de matérias ululantes, ruínas em movimento, jazz eléctrico desmaiado.
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Ele atira-nos logo isto à cara: “I'm sweating like I’m in a rave/ Been in this room for three days/ Think I’m hearing voices/ Paranoid and think I’m seeing ghosts, oh shit/ Phone keep ringing but I cut that shit off/ Only time I use it when I tell the dealer drop it off”. Paranóia, o carrossel emocional e físico das drogas, o mundo luminoso a uma distância intransponível: eis o quarto, eis a mente de Danny Brown. O quadro, cuspido pela voz nasalada do rapper de Detroit, é logo pintado no primeiro tema de Atrocity Exhibition. Chama-se Downward Spiral e a batida é feita de matérias ululantes, ruínas em movimento, jazz eléctrico desmaiado.
Diga-se já: Atrocity Exhibition será, arriscamos dizer, o álbum de hip-hop mais excitante de 2016. Danny Brown já tinha dado nas vistas, mas nunca tinha chegado tão longe. Old (2013) e XXX (2011) estavam recheados de bons momentos, mas mostravam um músico ainda à procura do seu lugar. Atrocity Exhibition é outra coisa: um disco que estica os limites do hip-hop, um triunfo absoluto.
“Antes, experimentei alguns sons, alguns deles que eram populares na altura, podia fazer coisas assim. Mas neste álbum não me preocupei com o que estava a acontecer na música. Foi tudo sobre Danny Brown. Que tipo de canções ele escreve? Ele canta em cima de que tipo de batidas?”, revelou à Entertainment Weekly. Por isso, Atrocity Exhibition é uma espécie de “primeiro álbum de Danny Brown”.
Percebeu que pode rimar em cima de tudo. E assim é. When It Rain, a obra-prima do disco, candidata a canção do ano, faz da electrónica primitiva da genial Delia Derbyshire alicerces que Danny Brown trepa a alta velocidade – é tão alucinado que temos que ouvir e reouvir para compreender o que acabou de acontecer nos nossos ouvidos. Rolling Stone podia ser uma velha canção pós-punk (tem baixo repetitivo, fundo, como se Peter Hook dos Joy Division tivesse fumado uma dose generosa de erva; uma cowbell desconchavada; um coro pós-apocalíptico). Tell Me What I Don’t Know exibe mais ciência de graves e um loop de bateria libertina. Ain't It Funny pega num segundo de Wervin', canção a solo do Pink Floyd Nick Mason, para construir uma fanfarra de demência com Brown no papel de desvairado maestro (“Panic when the drugs are gone/ And nobody is answering”). E ainda só falámos de um terço do disco.
Filho das ruas
Danny Brown, com 35 anos, convida-nos a olhar para dentro do seu quarto cheio de demónios, alimentados pelo abuso de drogas. É, ao mesmo tempo, persona e realidade. Persona porque este espectáculo de atrocidades contrasta com o rapper trabalhador que todos os dias, a partir das dez da noite, se lançava às centenas de beats que Paul White (cada vez mais o seu cúmplice – assina a extraordinária produção de dez dos 15 temas do disco) lhe deu. Realidade porque Danny Brown, com um largo historial de dependências, sabe do que fala.
“Been cursed all alone/ Whole family addicts/ Floating through my bloodstream/ Like I gotta have it”, confessa em Golddust, que está entre a violência do punk e os excessos de uma festa mexicana. Aos sete anos, viu o tio a queimar pedras de crack num fogão (episódio relatado em Torture, de Old, cujo refrão reza assim: “All the shit that I've seen, nigga it's torture”). O pai vendia droga para ajudar a sustentar a família. Danny era adolescente quando também ele começou a traficar nas ruas de uma Detroit falida e violenta. “Todos os meus amigos vendiam droga na altura. Num só dia podia fazer 10 mil dólares [cerca de 8.900 euros] a vender droga”, disse à Complex em 2013. Essa vida levou-o à prisão, tinha então 19 anos. “Foi a pior experiência da minha vida”, contou recentemente à Esquire. “Não necessariamente por estar preso ou por me terem tirado a liberdade, mas porque não podia ouvir a música que queria. Isso magoou-me mais do que qualquer outra coisa.”
Quando saiu da prisão, pôs em marcha um plano para ser o que queria ser desde o jardim-de-infância: rapper. Em 2010, foi a Nova Iorque para se reunir com a G-Unit, a crew de hip-hop transformada em parte do império capitalista de 50 Cent. As calças justas e a bizarria terão levado 50 Cent a rejeitá-lo.
A individualidade que afastou o milionário do rap levou-o à Fool’s Gold, que editou XXX. O álbum chegou às listas de melhores do ano e a um público maior, que extravasa o hip-hop. “Alienei-me. Não posso estar com os niggas da rua porque sou muito estranho para eles. E não posso estar com os niggas normais porque sou muito street para eles”, disse à Pitchfork em 2013.
Interessa-se por Nas e Kendrick Lamar (um dos poucos convidados do álbum), mas também por techno, pelos metaleiros System of a Down, pelos psicadélicos Love e pelo negrume dos Joy Division. O título do novo álbum é, aliás, sacado a uma canção dos Joy Division (e a um livro do distópico J. G. Ballard). É Ian Curtis, dos Joy Division, que canta “Asylums with doors open wide/ Where people had paid to see inside/ For entertainment they watch his body twist/ Behind his eyes he says, ‘I still exist’”, mas podia muito bem ser Danny Brown.
Atrocity Exhibition é um álbum autobiográfico, admitiu, mas que não descreve o momento actual da vida de Brown: fala da ressaca do sucesso de XXX, das expectativas que, de repente, caíram sobre o antigo traficante, demasiado pedrado para perceber o que lhe estava a acontecer. “Everybody say, you got a lot to be proud of/ Been high this whole time, don’t realize what I done”, diz em Downward Spiral.
É também um álbum de contrastes, mas que funciona como um disco, ao contrário de tantos registos hip-hop. Nele cabem Get Hi, que, com batida lenta e melodias dopadas, apresenta o mundo em slow motion, e From The Ground, com a cantora Kelela a fornecer doses extra de cetim, mas também Dance in the Water, que recorre a um frenético sample de pós-punk tribal, e Really Doe, com um loop de metalofone a fornecer a base em que Brown, Kendrick Lamar, Earl Sweatshirt e Ab Soul mostram serviço.
Imaginamo-lo em casa, sozinho, a escolher as melhores batidas entre as centenas de produções estranhas que Paul White lhe enviou, a debitar palavras iluminadas por fúrias da psique e talento de rua – foi assim que fez Atrocity Exhibition. Diz que tem agora mais criatividade do que ambição. “Nesta altura da minha vida tem tudo a ver com ser criativo”, explicou à Entertainment Weekly. “Estou aqui agora, por isso tenho apenas que me manter neste sítio. E a forma de o fazer é criar a música mais ‘fora’ que consiga criar, fazer o rap avançar.