Como Guterres conseguiu uma vitória cristalina
A candidatura trabalhada venceu um expediente político de última hora e devolveu o prestígio a um processo de eleição que as Nações Unidas queriam transparente mas que correu o risco, nas últimas semanas, de ser uma trapalhada.
A sexta votação, esta quarta-feira no Conselho de Segurança das Nações Unidas, das candidaturas para secretário-geral da organização, não traiu o sentido dos escrutínios anteriores. O favoritismo de António Guterres foi confirmado, tendo mesmo reforçado a sua posição, com 13 votos de encorajamento, ou seja, a favor, e dois sem opinião, equivalentes à abstenção. Foi uma vitória cristalina.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
A sexta votação, esta quarta-feira no Conselho de Segurança das Nações Unidas, das candidaturas para secretário-geral da organização, não traiu o sentido dos escrutínios anteriores. O favoritismo de António Guterres foi confirmado, tendo mesmo reforçado a sua posição, com 13 votos de encorajamento, ou seja, a favor, e dois sem opinião, equivalentes à abstenção. Foi uma vitória cristalina.
“Foi uma decisão muito rápida”, analisa, em Lisboa, a milhares de quilómetros de Nova Iorque, o embaixador António Monteiro. Minutos antes, seguido pelos representantes dos países membros do Conselho de Segurança, Vitali Churkin, presidente durante o mês de Outubro daquele órgão em nome da Rússia, foi breve e conciso no seu anúncio: “Hoje, depois de seis votações, temos um claro favorito e o seu nome é António Guterres.” Ser favorito nestes termos é ser o nome indicado à Assembleia Geral das Nações Unidas, cujos 193 países-membros formalmente elegem o novo secretário-geral. “Desejamos o melhor ao senhor Guterres nos seus deveres de secretário-geral durante os próximos cinco anos”, concluiu Churkin. A presença de todos os embaixadores na cerimónia só pode ter uma interpretação: um sinal de consenso, expresso, aliás, numa votação sem vetos.
Assim concluíram as votações desencadeadas em Julho de um processo que, nos bastidores da diplomacia, se iniciara há mais tempo. A meio da tarde de um 5 de Outubro estival, um diplomata recordava ao PÚBLICO que há cerca de dois anos um alto-funcionário dos Negócios Estrangeiros da Noruega, dizendo representar os países nórdicos, veio a Lisboa em busca da resposta a uma pergunta: “Apoiaria o Governo de Portugal a candidatura de António Guterres a secretário-geral da ONU?” Na altura, o antigo alto-comissário para os Refugiados ainda não tinha formalmente avançado, mas já se uniam os pontos dos seus apoios. O processo formal, aliás, só viria a ser desencadeado formalmente com o actual Governo em funções.
Da lapela e da capela
Foi numa sala do Ministério dos Negócios Estrangeiros que Guterres ficou a saber do resultado da votação, através do site das Nações Unidas. Esta quinta-feira à tarde, depois de ser confirmada a votação, fará uma declaração pública. “Foi eleito o melhor candidato, este processo de transparência e abertura, de um maior escrutínio público, pode influenciar a vida da ONU”, admite António Monteiro, antigo chefe da diplomacia portuguesa. “É um factor positivo porque é um homem com convicções éticas e morais”, pondera Rui Machete, ministro dos Negócios Estrangeiros do anterior executivo. “Tem as qualidades morais decorrentes de ser católico, da inteligência, da capacidade de diálogo que porá ao serviço do poder que vai ter, o soft power, o que é importante”, refere o ex-governante.
“Pela primeira vez, a ONU evitou trapalhadas na eleição de um secretário-geral, vingou a transparência, não resultou a estratégia búlgara saída da lapela de Juncker [Jean-Claude, presidente da Comissão Europeia] e da capela de Angela Merkel”, ironiza António Martins da Cruz, que dirigiu a diplomacia com Durão Barroso. A referência é directa ao patrocínio por Berlim e Bruxelas da candidatura de Kristalina Georgieva, comissária europeia do Orçamento e Recursos Humanos desde o princípio do mês em licença sem vencimento para participar nesta campanha — e que agora regressa a Bruxelas. Uma candidata apresentada como europeia contra europeus, incluindo contra a a directora-geral da UNESCO, a também búlgara Irina Bukova.
“Por uma vez, os países permanentes do Conselho de Segurança – França, China, Estados Unidos, Reino Unido e Rússia – mostraram respeito pelos outros membros”, destaca António Monteiro. “A candidata de última hora falhou, sempre foi uma candidatura extemporânea porque não havia impasse”, prossegue o ex-ministro.
Em cinco votações, Guterres sempre obteve mais de dois terços dos votos dos 15, pelo que o presidente da Comissão Europeia e alguns sectores do Partido Popular Europeu tentaram dar “um passo maior que a perna”: impor ao mundo um secretário-geral das Nações Unidas da sua conveniência.
A manobra foi errática e a Europa que se revia na candidatura de Georgieva foi humilhada. Esta candidata só teve cinco apoios contra oito votos de desencorajamento e, entre os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, conseguiu dois encorajamentos, dois “não” e uma abstenção. Ainda mais: o seu resultado foi pior do que o de Bukova, a quem os búlgaros retiraram o tapete, que teve sete a favor, sete contra e uma abstenção.
“A indicação para António Guterres ser eleito pela Assembleia Geral reforça a visibilidade de Portugal e é uma vitória da diplomacia portuguesa”, congratula-se Martins da Cruz. Rui Machete admite que o secretário-geral da ONU ser português é positivo, mas é prudente: “Temos a tendência para ser demasiado provincianos, mas de qualquer forma é positivo que o mérito seja reconhecido a um português.”
A candidatura de Guterres fez um percurso laborioso de contactos, mas as circunstâncias da política internacional foram-lhe favoráveis. O apoio da Alemanha e da Europa de Bruxelas a Georgieva não foi bem recebido pela Rússia, um dos cinco países com direito a veto, que não esquece as sanções comunitárias pela intervenção na Ucrânia e anexação da Crimeia. Por outro lado, as tensas relações entre Moscovo e Washington levaram a Rússia a querer ter o protagonismo da decisão na sua presidência de turno — Outubro — do Conselho de Segurança. Ao encurtar os prazos da decisão, retirou espaço e tempo a outras candidaturas, quando dentro de semanas os Estados Unidos vão às urnas numa disputa entre Hillary Clinton e Donald Trump.