Uma luz na penumbra do sonho americano
Born to Run é a história de um homem a perseguir com vontade férrea um sonho. A vida de um homem que correu e correu mais ainda para voltar ao mesmo lugar e às mesmas pessoas, as de Freehold, New Jersey. Que, como numa canção de Springsteen, podem ser qualquer um de nós.
19 de Maio de 2016, Parque da Bela Vista, Lisboa. Dançamos Twist and shout, a primeira canção que Bruce Springsteen aprendeu a tocar à guitarra e que continua a carregar, concerto após concerto, como amuleto que o liga a esse momento fundador. Na despedida, temos apenas um homem e a sua guitarra. Em 1972, assim entrara ele no escritório de John Hammond, o mítico produtor que descobrira Bob Dylan e Aretha Franklin, que oferecera a primeira gravação discográfica a Billie Holiday, que revelara a orquestra de Count Basie. Um homem e uma guitarra fizeram com que o jovem nativo de uma terriola perdida em New Jersey, Freehold, se transformasse em mais uma das descobertas de Hammond.
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19 de Maio de 2016, Parque da Bela Vista, Lisboa. Dançamos Twist and shout, a primeira canção que Bruce Springsteen aprendeu a tocar à guitarra e que continua a carregar, concerto após concerto, como amuleto que o liga a esse momento fundador. Na despedida, temos apenas um homem e a sua guitarra. Em 1972, assim entrara ele no escritório de John Hammond, o mítico produtor que descobrira Bob Dylan e Aretha Franklin, que oferecera a primeira gravação discográfica a Billie Holiday, que revelara a orquestra de Count Basie. Um homem e uma guitarra fizeram com que o jovem nativo de uma terriola perdida em New Jersey, Freehold, se transformasse em mais uma das descobertas de Hammond.
Quatro décadas depois, num país distante do seu, sozinho em palco perante 60 mil pessoas, Bruce Springsteen toca This hard land, que pode ser no Texas e é certamente nos Estados Unidos, mas também pode ser qualquer outro lugar em que a solo seja duro e em que talvez sonhar não seja solução. Contudo, persistiremos, dir-nos-á Springsteen nesse dia de Maio. “We'll sleep out in the fields, we'll sleep by the rivers, and in the morning we'll make a plan/ Well if you can't make it, stay hard, stay hungry, stay alive if you can / and meet me in a dream of this hard land”.
Cinco meses depois, eis-nos em Born to Run, a aguardada autobiografia editada mundialmente a 27 de Setembro (edição portuguesa da Elsinore, cuja tradução é feliz na forma como reproduz a vivacidade da escrita do autor, mas da qual constam um par de erros, como a aplicação do género masculino ao girl group The Shirelles e a Ronnie Spector, vocalista principal das Ronettes, que sobressaem num livro com a música como centro). Eis-nos com Bruce Springsteen no espaço aberto da grande América e daqueles que a habitam. No espaço confinado de uma pequena e decrépita casa da classe operária. No espaço mais confinado ainda que é o da família, recheado de amor e de enganos, de dor e mais amor e incompreensão e onde está afinal o amor? Testemunhemos como o mundo se abre, grandioso e cheio de possibilidades quando a música, uma nova música que é mais que música, se revela na rádio e lhe mostra, pequeno de sete anos, uma escapatória.
O pequeno Bruce a assistir à primeira aparição de Elvis na televisão a preto-e-branco e o velho Bruce sexagenário a recordar o momento com o entusiasmo (generosa dose de maiúsculas incluída) que atravessa toda a autobiografia. “Ouçam… ouçam o que o mundo está a dizer-vos, porque está a apelar ao vosso amor, à vossa raiva, à vossa beleza, ao vosso sexo, à vossa energia, à vossa revolta… porque precisa de VOCÊS para se refazer. Para renascer como algo diferente, algo melhor, mais divino, mais maravilhoso. Porque precisa de NÓS”.
O mundo não renasceu e não estamos certos que se tenha tornado o ambicionado divino maravilhoso. Bruce Springsteen, de resto, não demorarou muito tempo a percebê-lo. Está tudo em Born to Run, viagem à boleia com um homem que nos conta a sua conturbada história íntima, recheada de fantasmas e de vontade de os superar, de uma generosidade que convive com a natureza solitária do seu espírito. Um homem que atravessa a segunda metade do século XX e a alvorada do XXI a tentar fazer a sua música una com si mesmo, com aqueles que canta, com os heróis que o formaram. “Na década de 60, a primeira versão do meu país que me pareceu verosímil e não sujeita a um filtro foi a que ouvi em canções de artistas como Bob Dylan, The Kingsmen, James Brown e Curtis Mayfield. A Like a Rolling Stone transmitiu-me a fé de que se poderia emitir uma visão genuína, inalterada e independente para milhões, mudando mentes, animando os espíritos, trazendo sangue fresco à anémica paisagem pop americana e transmitindo um aviso, um desafio que se poderia tornar uma parte essencial das conversas americanas”. Junte-se o que citámos ao que é descrito páginas depois na biografia de 570 páginas. Em dois parágrafos, teremos perante nós, em traço apressado mas justo, o homem que se revela mais profundamente em “Born to Run”. “Queria que a minha música se sustentasse na minha vida, na vida da minha família e no sangue, suor e lágrimas das vidas das pessoas que eu tinha conhecido. (…) Aprendi que temos que puxar para cima as coisas que nos dizem qualquer coisa de maneira a que elas signifiquem alguma coisa para o público. É aí que reside a prova. É assim que as pessoas ficam a saber que não estamos no gozo”.
Sobreviver sozinho no mundo
Born to Run começou a nascer com a actuação de Springsteen e da sua E Street nessa instituição tão americana que é o Super Bowl, a final do campeonato de futebol americano cujo intervalo de 15 minutos é reservado para uma actuação musical. Em 2009, esse privilégio coube a Springsteen. Palco montado em três minutos, enquanto milhões acompanhavam pela tv os anúncios publicitários que geram tanto entusiasmo e discussão quanto o jogo em si, e depois doze minutos de rock’n’roll. Springsteen conta que tinha reservas quanto ao empreendimento. Mas não podia dizer não ao Super Bowl. Ali estaria perante todos. Não só perante o seu público, mas perante a tão diversa população americana que sempre tentou enquadrar nas suas canções. Ainda bem que o fez. Porque depois lhe pediram que escrevesse um pequeno ensaio sobre a experiência para um site e, no processo, descobriu o prazer na escrita. “Não fazia qualquer ideia se se transformaria num livro ou noutra coisa, talvez fosse apenas uma coisa para os filhos, mas voltei àquilo que achei que era o início e comecei a escrever”, contou à Billboard no início de Setembro. Sete anos depois do Super Bowl, chegou Born to Run.
Tinha acabado de tocar pela primeira vez ao vivo The River, canção central do álbum homónimo de 1980. Já nos camarins, a mais velha das suas duas irmãs, Virginia, aproxima-se dele. Fala-lhe de The River: “Aquilo é a minha vida”, exclama. Springsteen diz que foi a melhor crítica que lhe fizeram em toda a sua vida. Ficaria então agradado por saber que o primeiro e maior elogio que podemos fazer a Born to Run é que, nele, Bruce Springsteen escreve como compõe. Reconhecemos-lhe o olhar profundo e curioso, o entusiasmo e a crítica inabalável no espírito humano, a luta interior que todos combatemos ao longo da vida, a capacidade de contar uma história depurando o supérfluo para que sobressaia algo de vivo e essencial – tudo isso colorido com episódios cómicos tão adequados às páginas de uma biografia quanto a uma roda nocturna de amigos num bar.
Born to Run é um grande fresco dos Estados Unidos do pós-guerra. É a história de Bruce Springsteen, rock'n'roller de corpo inteiro, mas que não se enquadra no cliché. Bebeu os primeiros copos já entrado nos vintes e fugia de todo o tipo de drogas quando estas eram vistas como combustível criativo importante (o circo rock'n'roll era para ele um lugar ordenado; o caos estava na vida fora dele). Foi pai pela primeira vez aos 40 anos, em 1990, quando já era uma das maiores estrelas da cultura popular, quando já passara a papel há muito a mítica frase “eu vi o futuro do rock’n’roll e o seu nome é Bruce Springsteen”. Quando já eram memórias distantes os concertos tensos em pavilhões de New Jersey, com a polícia preparada para prender em palco um teclista a braços com a lei (aconteceu com os seus Steel Mill, banda alinhada com o rock de riffs poderosos de Led Zeppelin ou Cream), ou outros concertos, também em New Jersey, em membros de gangues locais na assistência exigiam que lhes fosse entregue, por razões lá deles, o homem que cantava em palco, vocalista dos Castiles, a primeira banda a sério de Springsteen. Born to Run é, também, a história da batalha contra a depressão crónica que os genes paternos lhe legaram, da luta por uma identidade e por uma paz interior que muito demoraria a chegar. E o relato da aprendizagem metódica, alimentada por uma vontade férrea (ou era a música, ou não seria nada mais), de um homem que muito cedo ambicionou ser mestre do seu ofício e que tudo fez o conseguir.
Esgueirava-se até à porta dos clubes soul de New Jersey para, através das vidraças (não tinha dinheiro para pagar entrada) aprender como se domina um palco e a dinâmica de um concerto. Ouvia música obsessivamente, procurando extrair-lhe todos os pormenores e perceber os segredos do que faz uma boa canção. Tornou-se, com os Steel Mill, rei roqueiro de New Jersey. Com eles tentou a sorte na “longínqua” Nova Iorque, com eles viajou 4800 quilómetros até à Califórnia, sem pausas, enfiado em carrinhas a ameaçar avarias a todo o momento, entre nevões e o calor abrasador do deserto, para descobrir, primeiro, que o flower power de Los Angeles e São Francisco pouco tinha a dizer-lhe e, depois, que, naquela passagem da década de 1960 para a de 1970, ainda tinha que trabalhar muito para descobrir a sua verdadeira voz musical. Explica-o, não surpreendentemente, com uma analogia cara à mitologia americana. “Eu era rápido, mas, tal como bem sabiam os pistoleiros do Velho Oeste, há sempre alguém mais rápido, e, se tu podes fazer melhor do que eu, não só ganhas o meu respeito e a minha admiração como também me inspiras a esforçar-me mais. Não era disso que tinha medo. O que me preocupava era não estar a maximizar as minhas capacidades, não ter uma visão suficientemente ampla ou inteligente daquilo que era capaz de fazer. Só me tinha a mim, só tinha o meu talento. Não era um génio inato. Teria de tirar o melhor proveito do que tinha – da minha astúcia, das minhas capacidades musicais, da minha habilidade para fazer boas actuações, do meu intelecto, do meu coração, da minha força de vontade -, noites a fio, a forçar os meus limites, a trabalhar mais intensamente do que os outros, só para sobreviver sozinho no mundo em que vivia”.
Bruce Springsteen não queria ser músico a solo, precisava dos comparsas de uma banda a seu lado, mas também não queria a banda como espaço democrático. Com a E Street Band formada por pessoas saídas do mesmo molde Jersey que ele, músicos como Steve Van Zandt, Max Weinberg, Garry Tallent, os já desaparecidos Clarence “Big Man” Clemons e Danny Federici ou Patti Scialfa, hoje sua mulher e mãe dos seus três filhos, descobriu o equilíbrio perfeito. Chama-lhe uma “ditadura benevolente” e acredita que a esse regime se deve a longevidade da banda com que construiu a sua lenda. Não podia ser de outra forma. Precisava de cada um deles em seu redor para que a música frutificasse, mas o caminho era exclusivamente seu – essa ambivalência entre a necessidade de um outro, quer fossem os companheiros de banda, quer fosse uma companheira a quem amar, e uma tendência natural para o isolamento, é de resto uma marca que atravessa a maior parte de Born to Run. “O meu modelo era o viajante individual, o homem da fronteira, o homem no meio do nada, o salteador, o aventureiro existencial americano, relacionado, mas não contido pela sociedade: o John Wayne no A Desaparecida, o James Dean no Rebelde sem Causa, o Bob Dylan no Highway 61 Revisited. A estes juntar-se-iam, mais tarde, o Woody Guthrie, o James M. Cain, o Jim Thompson, a Flannery O’Connor – indivíduos que trabalhavam nas margens da sociedade para modificar impressões, criar mundos, imaginar possibilidades que fossem então assimiladas e se tornassem parte da cultura geral”.
O homem que fuma na escuridão
Bruce Springsteen nasceu a 23 de Setembro de 1949. Cresceu em Freehold, cidade operária, entre o aroma do café vindo da torrefacção e o odor forte da fábrica de tapetes em que o pai teve um dos seus vários empregos. Tinha ascendência paterna irlandesa e materna italiana e cresceu entre todo o mosaico de comunidades que fazem os Estados Unidos. Comunidades que se toleravam sem conviverem realmente – de um lado os italianos, do outro, os irlandeses, além os negros, acolá os latinos – e que explodiam em violência ocasional e crescente até ao momento em que a luta pelos direitos civis se tornou, de facto, uma realidade. Springsteen conhecia cada uma das ruas e dos tijolos dos edifícios que estas albergavam. Conhecia cada traço nas estradas por onde era conduzido em passeios familiares até à zona costeira de Asbury Park e Long Branch – o passatempo possível quando a gasolina era barata e o dinheiro para diversão uma não existência.
Ali cresceu, no reino certamente não privilegiado dos trabalhadores de colarinho azul, entre uma avó super protectora e uns pais, Douglas e Adele, com personalidades, mais que diferentes, opostas: “A minha mãe lia romances e deliciava-se com os êxitos mais recentes da rádio. O meu pai explicava-me que as canções de amor faziam parte da conspiração do governo para levar as pessoas a casaram-se e a pagarem impostos. A minha mãe e as suas duas irmãs têm uma fé inabalável nas pessoas, são extrovertidas ao ponto de conversarem alegremente com o cabo da vassoura. O meu pai era um misantropo, que desdenhava da maior parte da Humanidade. Encontrava-o muitas vezes no bar, sentado sozinho a um canto. Dizia que acreditava num mundo que estava cheio de vigaristas capazes de matar por um dólar. ‘Não há ninguém que preste e se houve, também não interessa”.
Springsteen tinha 18 anos quando os pais decidiram procurar o El Dorado a Oeste, nos arredores de Los Angeles. Partiram com a filha mais nova, Pamela, deixando para trás o filho e Virginia, que acabara de lhes dar o primeiro neto. Bruce, que já era músico e que sabia que não poderia ser nada mais, acabaria por partir também. Viveu noutras casas em New Jersey, viveu com bandas numa loja de surf transformada em sala de ensaios, viveu sob pontões com a prancha ao lado. Viveu em Nova Iorque e em Los Angeles, com e sem os pais.
Descobriu, por fim e definitivamente, a sua linguagem musical quando se tornou evidente que o sonho americano, alimentado pela suposta inocência da década de 1950, poderia redundar em pesadelo. “Homicídios políticos, injustiças sociais, racismo instituído como sistema, tudo isso era patente de um modo vincado e brutal. No passado, estas questões tinham sido relegadas para as margens da vida americana”. Era chegado o tempo para “o ajuste de contas pessoal e histórico”. Um verso: “In the day we sweat it out on the streets of a runaway American dream” [“Durante o dia, suamos as estopinhas nas ruas de um sonho Americano fugidio”]. Um refrão: “Tramps like us, baby we were born to run”. Com o álbum que dá título à autobiografia agora editada, editado em 1975, Springsteen reunia-se com a multidão que cantava e tornava-se uma estrela.
Chegariam mais clássicos, como Darkness at the Edge of Town, que o solidificaram como voz da consciência americana. Chegaria o sucesso mainstream com Born in the USA e, com ele, tanto o receio de que a sua música pudesse ser mal interpretada – os Republicanos de Ronald Reagan não demoraram a tentar usurpar para si uma canção que era, na verdade, de protesto às suas políticas -, como aquilo que Springsteen classifica, divertido, como “o horror sartorial que varria a nação E Street” – “a banda nunca se apresentara e vestira tão mal”, comenta.
Springsteen viajou para a Europa e saltou mundo fora. Tornou-se uma das figuras mais reconhecidas e reverenciadas da história do rock’n’roll. Pelo caminho, casou-se e separou-se, aplacou os seus demónios interiores, que o impediam de assumir a natureza partilhada de uma relação, e casou-se novamente, desta vez com a mulher com quem vive hoje, Patti Scialfa. Teve três filhos, que protegeu do seu estrelato – “Pai, aquele tipo tatuou-te no braço”, exclamou certo dia um deles, abismado com o que via. Sofreu de depressões graves – a mais recente após completar 60 anos -, pôs a E Street Band em pousio e voltou a reuni-la.
Cumprida toda a viagem destes, até agora, 67 anos de vida, duas coisas sobressaem claramente. A primeira expõe-se numa frase: “Aquela cidade, a minha cidade, jamais me deixaria, eu jamais conseguiria deixá-la completamente” – nele, tudo emana, da Freehold que já não habita há quatro décadas. A segunda, ilustra-se numa imagem que atravessa Born to Run. Encontramo-la no início e no fim de tudo.
O pai sentado na cozinha mal iluminada com uma expressão taciturna, indecifrável, os seus olhos pequenos fixando o vazio. Numa mão o cigarro que rodeia o corpo de fumo, na outra a lata de cerveja que será substituída por outra e outra, na esperança que a noite se transforme em qualquer coisa que não aquilo, na tentativa de esquecer o dia que passou, a noite que não valerá a pena lembrar e o outro dia que surgirá, igual ao anterior. No início e no fim de tudo está o pai a fumar e a beber na penumbra, incapaz de afecto para com o filho. Um homem doente que não sabia sê-lo - a esquizofrenia paranóica de que padecia só seria diagnosticada muitas décadas depois –, porque estamos nos anos 1950, numa casa de classe operária americana de New Jersey e um homem não vai ao psiquiatra. Cala-se na penumbra durante a noite e veste fato-macaco na manhã do dia seguinte.
Bruce Springsteen percorreu um vasto caminho, galgou milhares de quilómetros, mas é ali, naquela casa, com o pai que só compreenderia tarde na vida a deprimir na penumbra, com a mãe a aguentar estoicamente uma família, com a rádio e a televisão a mostrarem a possibilidade de um novo mundo, que encontramos a personagem principal de Born to Run. Correu, correu e correu mais ainda para regressar sempre ao mesmo sítio. Freehold, New Jersey. Um rádio ligado, um homem que fuma na escuridão da cozinha.