A distância entre o sonho americano e a realidade americana
Foi em Freehold que Springsteen descobriu a distância entre o sonho americano e a realidade americana. É nesse lugar, hoje habitado por uma classe média branca estrangulada e pela segregação social e racial da população, que se jogam as próximas eleições e quase tudo o que é decisivo na América.
Não havia colarinhos brancos na terra onde Bruce Springsteen cresceu nos anos 50, e vestir fato e gravata era coisa de domingo ou traje identificador de alguém metido em sarilhos. Freehold, cidade de cerca de 35 mil habitantes no centro de New Jersey, era um lugar de operários, muitos imigrantes italianos e irlandeses e negros vindos do sul para fazer os trabalhos agrícolas nas quintas dos arredores. Nas ruas, havia um odor quente e poroso da fábrica de tapetes onde o pai trabalhou, ou o aroma do café vindo da torrefacção local. No quintal dos avós, Bruce brincava no monte de cinzas que saíam do fogão a lenha da cozinha, escutando os cânticos católicos aos domingos, na igreja bem perto. "Há aqui um lugar – podem ouvi-lo, cheirá-lo – onde as pessoas vivem, sofrem, desfrutam de pequenos prazeres, jogam basebol, morrem, fazem amor, têm filhos, embebedam-se nas noites de primavera e fazem tudo o que podem para manter ao longe os demónios que querem destruir-nos a nós, às nossas casas, às nossas famílias, à nossa cidade." Em Born to Run, a autobiografia, Springsteen descreve assim o lugar que o formou e que faz parte da mitologia americana, talvez o grande temas das suas canções.
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Não havia colarinhos brancos na terra onde Bruce Springsteen cresceu nos anos 50, e vestir fato e gravata era coisa de domingo ou traje identificador de alguém metido em sarilhos. Freehold, cidade de cerca de 35 mil habitantes no centro de New Jersey, era um lugar de operários, muitos imigrantes italianos e irlandeses e negros vindos do sul para fazer os trabalhos agrícolas nas quintas dos arredores. Nas ruas, havia um odor quente e poroso da fábrica de tapetes onde o pai trabalhou, ou o aroma do café vindo da torrefacção local. No quintal dos avós, Bruce brincava no monte de cinzas que saíam do fogão a lenha da cozinha, escutando os cânticos católicos aos domingos, na igreja bem perto. "Há aqui um lugar – podem ouvi-lo, cheirá-lo – onde as pessoas vivem, sofrem, desfrutam de pequenos prazeres, jogam basebol, morrem, fazem amor, têm filhos, embebedam-se nas noites de primavera e fazem tudo o que podem para manter ao longe os demónios que querem destruir-nos a nós, às nossas casas, às nossas famílias, à nossa cidade." Em Born to Run, a autobiografia, Springsteen descreve assim o lugar que o formou e que faz parte da mitologia americana, talvez o grande temas das suas canções.
O quotidiano da pequena cidade operária e de toda a costa envolvente, sobretudo as praias de Long Branch e Asbury Park, no centro de New Jersey, estão na génese de álbuns como Greetings from Asbury Park, Born to Run (o mesmo título do livro) ou Born in USA. Foi nesse território, entre o ambiente de “colarinho azul” – designação retirada à cor dos fatos de macaco dos operários – dos anos 50 e as tensões raciais da década de 60, que Springsteen descobriu “a distância entre o sonho americano e a realidade americana”. É esse o tema que toda a sua música explorou. É também nesse lugar, hoje habitado por uma classe média branca economicamente estrangulada e pela segregação social e racial de uma população negra incapaz de vislumbrar o sonho, que se jogam não apenas as próximas eleições, como quase tudo o que é decisivo na América.
Freehold é tradicionalmente republicana. Mitt Romney bateu Barack Obama em 2012 e em 2013 o governador republicando Chris Christie esmagou o candidato democrata. Springsteen descrevi-a como uma “terra feia” em 1964, mas a imagem mais forte que dá desse lugar remete para os anos 50 a partir de uma viagem de carro, quando a mãe conduzia o avô nos subúrbios à cata de velharias, “pelas estadas de terra das quintas até às cabanas lá no fundo onde se continua a viver como no tempo da grande seca dos anos 30”. O avô era conhecido como “o homem do rádio” pela “população migrante, maioritariamente negra, vinda do Sul, que todos os anos chega de autocarro para as colheitas nas zonas rurais de Monmounth Country”, no centro do estado. Vivia-se o pós-guerra, quando foi traçada a estrada a ligar, pela costa, o Norte e o Sul de New Jersey, uma altura de renovação populacional, boom de construção e reavivar do tal sonho de igualdade de oportunidade e de prosperidade, independentemente de classe, raça ou local de nascimento, possível de alcançar pelo trabalho; o sonho como o definiu o historiador James Truslow Adames nos anos trinta do século XX no livro The Epic of America e que faz parte do imaginário americano.
Vinte anos depois, esse sonho estava mais vivo do que nunca, depois da guerra. Quando o levaram nessas viagens, Bruce lembra a estranheza então sentida entre tantos rostos negros e escreve: “As relações entre raças, que nunca correram muito bem em Freehold, virão a explodir dez anos mais tarde, por entre tumultos e tiroteios, mas naquela altura, há apenas uma calma estável e desconfortável.” Quando se segue de Freehold até Asbury Park, meia hora de estrada em direcção a Leste e ao mar, essa tensão permanece. Entre stands de automóveis, armazéns, lojas de bebidas, edifícios recentes, casas unifamiliares dispersas, anúncios de hotéis e restaurantes há destroços que permanecem e ganham evidência num vazio de domingo à tarde de inverno. Quando o semáforo abre para peões, ninguém cruza a passadeira a escassas centenas de metros da avenida que vai dar à marginal e ao bar onde Bruce tocou, o Stone Pony. Só um carro ou outro e alguns vultos negros apressados na rua.
A candidatura de Donald Trump apareceu a falar para essa América, habitada maioritariamente por uma população branca, envelhecida, de classe média, a base tradicional do partido republicando. Mas também para os que vêem o sonho afastar-se. As feridas dos motins raciais dos anos 60 e 70 não sararam e há lugares onde permanecem mais visíveis. Estão ali, de Freehold à costa, entre a sazonalidade e uma população flutuante. As letras das canções de Sprinsteen parecem materializar-se nesse cenário de “inocência perdida”, como o descreve no livro. “Eu era um filho da América da era do Vietname e dos assassinatos de Kennedy, King e Malcolm X. O país parecia ter perdido a inocência que se dizia ter tido durante os anos da década de 50, sob a presidência de Eisenhower.” É quando fala do medo, “medo de nos terem retirado o chão de valores morais em que nos apoiávamos; medo de que a imagem idealizada que tínhamos de nós tivesse sido manchada e que o futuro fosse estar para sempre cheio de incertezas.” Esse futuro parece ser agora e é dessas incertezas que o medo se vai alimentando.