Apontamentos para uma filmografia (quase) imaginária
Se as canções de Springsteen são pequenos filmes, há (houve?) um cinema que foi território da sua gente, da sua ética. Sabemos de que lado está Springsteen: do lado dos fracos, dos pobres, dos deserdados, dos injustiçados, daqueles para quem a América nunca foi great.
Em Darkness on the Edge of Town, de 1978, Bruce Springsteen tem duas canções com títulos idênticos aos de dois filmes: Badlands e Streets of Fire. O primeiro, de Terence Malick, estreara cinco anos antes, e mesmo que a canção não o referencie explicitamente é impossível não entrar nela pelo imaginário dele, o de uma juventude born to run, que "quer o coração e quer a alma" e aceita "os corações partidos como o preço que tem que pagar". Não seria a última vez que Springsteen pegaria em Badlands (o filme), porque em 1982, a canção-título do album Nebraska volta, bem mais explicitamente, aos anti-heróis, de existência real, retratados por Malick.
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Em Darkness on the Edge of Town, de 1978, Bruce Springsteen tem duas canções com títulos idênticos aos de dois filmes: Badlands e Streets of Fire. O primeiro, de Terence Malick, estreara cinco anos antes, e mesmo que a canção não o referencie explicitamente é impossível não entrar nela pelo imaginário dele, o de uma juventude born to run, que "quer o coração e quer a alma" e aceita "os corações partidos como o preço que tem que pagar". Não seria a última vez que Springsteen pegaria em Badlands (o filme), porque em 1982, a canção-título do album Nebraska volta, bem mais explicitamente, aos anti-heróis, de existência real, retratados por Malick.
O segundo filme, Streets of Fire, só estreou em 1984, realizado por Walter Hill, um épico "rock" flamejante, um American Graffiti para a juventude dos anos 1980, e devia ter centro na canção de Springsteen. Mas quando descobriu que os produtores não queriam usar a versão original da canção, antes uma regravação por outros artistas, Springsteen retirou a autorização. Ficou só o título, no que provavelmente foi o primeiro filme a "nascer" de uma canção do boss.
Há pelo menos mais um: The Indian Runner, a estreia na realização de Sean Penn, em 1991, foi explicitamente inspirado numa canção de Springsteen, Highway Patrolman, incluida no já citado Nebraska. E vale a pena seguir dizendo que, como o protagonista de (a canção), narrada no ponto de vista do assassino que foi "declarado inapto para viver", Penn interpretou um condenado à morte em Dead Man Walking, filme de Tim Robbins, realizado em 1995, onde na banda sonora pontificava uma canção original de Springsteen.
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Mas notemos ainda que Nebraska é também um filme recente de Alexander Payne, e se nada nele remete directamente para Springsteen é impossível deixar de ver aquela small town America desolada como algo que podia estar (e está) embebida em muitas canções dele. Como, aliás, no requiem de Peter Bogdanovich por uma juventude de futuro já estagnado (podiam ser, muitos anos depois, os velhos do filme de Payne), o Last Picture Show de 1971. Era demasiado cedo para Springsteen (que lançou o primeiro disco em 1973) mas Bogdanovich compensou, e depois de já ter enchido Máscara (1985) de canções de Springsteen voltou a ele como condimento abundante da música de Texasville (1989), o reencontro tardio com as personagens do filme de 1971.
Mas vamos em busca de algo crucial. Sabemos de que lado está Bruce Springsteen, as suas canções repetem insistentemente que ele está do lado dos fracos, dos pobres, dos deserdados, dos injustiçados, daqueles para quem, no campo, na fronteira da cidade, nas fábricas, nos empregos em estações de gasolina, a América nunca foi great. Nesse sentido, é fundamental o encontro com As Vinhas da Ira (sobretudo o filme de Ford em 1940, um daqueles casos em que se pode dizer que o filme, sublime, é melhor que o livro de Steinbeck, que é só muito bom) . Acontece no disco de 1995 The Ghost of Tom Joad (Tom Joad é o nome do protagonista das Vinhas, estarrecedoramente interpretado por Henry Fonda), em cuja canção-título Bruce reencontra e recita o fabuloso monólogo do "i'll be there", e é também ele, a partir das palavras de Joad, a dizer que "estará onde um polícia estiver a espancar um tipo, onde alguém estiver a lutar contra a fome".
É ainda, esse disco, uma aproximação a uma raiz folk, musicalmente, mais em diálogo com os pioneiros, com a tradição que teve em Woody Guthrie um intérprete decisivo — e portanto como não pensar em Springsteen, também, num filme como o Bound for Glory, de Hal Ashby (1976), biografia da juventude de Guthrie, pequeno "lado B" para as Vinhas (a mesma época, os mesmos camponeses arruinados pelo "dust bowl)? Esta marginalidade folk dava ainda para mais uns quantos diálogos (o cinema folk de Jarmusch, por exemplo Down by Law) mas é preciso voltar à cidade, às personagens urbanas ou suburbanas, batidas pela vida dura, pelos empregos pouco "nobres", se calhar — "born in the USA" — com passagem pelo Vietname. Os blue collar, como dizem os americanos, os blue collar que praticamente desapareceram da vista de Hollywood mas que em tempos andaram pelas imediações — no Blue Collar de Schrader, em coisas de Cassavetes como Uma Mulher sobre Influência. Também os vemos como matéria de Springsteen, gente de Springsteen. Hoje, como no recente Creed, é Stallone, e a saga do seu Rocky a envelhecer, quem mais directamente lida com essa "gente de Springsteen", naqueles bairros delapidados de Filadélfia (que Springsteen até cantou, em Streets of Philadelphia, canção que escreveu para o Filadélfia de Jonathan Demme).
Mas há que pôr a hipótese de o mais incrível encontro do cinema com Springsteen ser uma coisa sem "contexto", uma aparição sonora vinda do nada, ou dum gravadorzinho de cassettes numa piscina romana: quando o jogo de pólo aquático da Palombella Rossa de Moretti pára para que se ouça I'm on Fire. Todos dentro de água, todos "em fogo".