A geringonça tem futuro?
António Costa foi sempre um moderado com vontade de unir a esquerda. Afirmou-o com clareza há dois anos, a 5 de outubro de 2014, no congresso do LIVRE, de que eu era então dirigente.
Se juntarmos a duração de todos os governos que, desde o liberalismo até ao 25 de Abril, tiveram o apoio simultâneo da esquerda moderada e da esquerda radical, dá a bonita soma de... doze meses, que é o mesmo tempo que já leva o atual governo.
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Se juntarmos a duração de todos os governos que, desde o liberalismo até ao 25 de Abril, tiveram o apoio simultâneo da esquerda moderada e da esquerda radical, dá a bonita soma de... doze meses, que é o mesmo tempo que já leva o atual governo.
O primeiro foi o governo setembrista de Passos Manuel. Durou nove meses, a partir de setembro de 1836. O segundo foi chamado de “governo canhoto” e iniciou funções no fim de 1924, na Iª República. Durou menos de três meses. A partir daí só o 25 de Abril uniu (uniu dividindo, se quiserem) estas esquerdas no poder em duas coisas fundamentais: a democracia e o estado social.
António Costa — que por acaso estudou no liceu Passos Manuel — foi sempre um moderado com vontade de unir a esquerda. Afirmou-o com clareza há dois anos, a 5 de outubro de 2014, no congresso do LIVRE, de que eu era então dirigente. A sua fórmula era simples: encontrar os pontos comuns entre partidos de esquerda sem que nenhum prescindisse da sua identidade. Um ano depois, no dia a seguir às eleições que retiraram à direita a maioria, Jerónimo de Sousa do PCP disse que Costa só não seria primeiro-ministro se não quisesse. Catarina Martins, do BE, que na campanha eleitoral oscilara entre a rejeição de entendimentos e o lançamento de desafios a Costa, foi também a jogo. Com mérito para os três partidos, a esquerda encarou a responsabilidade de encontrar um programa comum de governação. A direita encontrou-lhe o imaginativo nome de geringonça. Seja. Hoje poucos duvidam de que poderá durar uma legislatura inteira.
Será histórico por isso, e não só. Para fazer as contas à importância deste governo, não basta pensar nos desafios e dificuldades de “virar a página da austeridade”. É preciso pensar no que faria Passos Coelho num segundo governo. Ideologicamente neoliberal como poucos políticos no país, Passos Coelho privatizaria o que faltasse vender e poria em risco o estado social tal como o entendemos. Se estivesse aliado com um PS de “abstenções violentas” como o de Seguro, poria em cima da mesa uma mudança constitucional como a que propôs ao chegar à liderança do PSD, esvaziando os direitos sociais e diminuindo a proporcionalidade do sistema político. Foi com essa possibilidade que brincámos durante os últimos anos de sectarismo à esquerda.
Pelo seu lado, a governação à esquerda tem a missão oposta. Trata-se precisamente de garantir que no núcleo essencial daquilo que a une — o estado social e o cumprimento da Constituição — o acervo de conquistas do 25 de Abril fique salvaguardado por mais uma geração.
Naquilo em que deixa mais a desejar, a nossa solução de governo parece às vezes dominada por uma lógica quase exclusiva de negociação partidária e sindical. Por compreensível que isso seja, dadas as suas contingências, a governação à esquerda não pode continuar só dependente das reuniões entre diretórios partidários. Precisa de falar com os portugueses de emprego, de modelo económico, do aprofundamento da democracia (por exemplo, a nível regional), de solidariedade intergeracional e do papel de Portugal na Europa.
Mais tarde ou mais cedo, a geringonça precisará da sua base de apoio social. E esta não se mobiliza apenas para conter o que de pior foi feito mas sobretudo por uma visão estratégica de futuro.