A “mais bela” morreu em combate contra “o maior animal”
A activista curda Nursel Kiliç lembra como foram as mulheres a salvar a língua e a cultura curdas.
A revolução curda “é feminina mesmo antes de ser revolução”, diz a activista Nursel Kiliç, antes de criticar o sexismo da imprensa ocidental, que reduz as combatentes do Curdistão à beleza física. Foi o caso de Asia Ramazan, ou “Angelina Jolie”, morta a combater o Daesh.
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A revolução curda “é feminina mesmo antes de ser revolução”, diz a activista Nursel Kiliç, antes de criticar o sexismo da imprensa ocidental, que reduz as combatentes do Curdistão à beleza física. Foi o caso de Asia Ramazan, ou “Angelina Jolie”, morta a combater o Daesh.
A luta curda sempre foi uma luta das mulheres. Como é que isso acontece?
Era inevitável. Nós devemos a nossa sobrevivência às mulheres. A nossa língua não desapareceu por causa delas, a nossa cultura não desapareceu por causa delas, e isto sempre no meio de todas as opressões, na clandestinidade. Uma das curdas assassinadas em Paris [Sakine Cansiz, fundadora do PKK, morta com duas outras activistas, em Janeiro de 2013] dizia que se as mulheres não forem livres nada será possível.
Foram elas que fizeram o combate porta à porta, nas cidades, vilas, aldeias, a repetir as mensagens. A explicar a questão da identidade, os direitos da mulher, a ir às fábricas, aos campos, a ensinar a ler e a escrever analfabetas. Foi através deste trabalho que o nosso povo foi ganhando consciência. A resistência na prisão de Diyarbakir foi fundamental – era uma mulher que liderava esse protesto e ela não disse sequer um “ai”, explicou que “teria vergonha de dizer ‘ai' ao opressor”. Esse foi o verdadeiro impulso que deu vida ao movimento das mulheres curdas, um movimento que teve várias formas e muitas evoluções.
Em 1992, foi eleita a primeira deputada curda, que tomou posse fazendo o juramento na sua língua e foi presa por isso. A União de Mulheres Livres do Curdistão, onde estavam as primeiras figuras a afirmar que “nós somos mulheres, não somos homens, vamos combater como mulheres”, já existia desde 1990. Um pouco depois aconteceu o chamado diálogo de Damasco, com a participação de Abdullah Öçalan [fundador do Partido dos Trabalhadores do Curdistão, PKK], de onde sai a primeira organização de mulheres independente dos homens e a ideia de que era preciso promover uma ruptura. Chamava-se teoria da ruptura a essa ideia de que até fisicamente tínhamos de nos afirmar; até aí tinha vencido a tese contrária, de adoptar uma certa masculinidade.
É nessa fase que começam a ser constituídas as primeiras unidades militares femininas? No início eram todas mistas, não eram?
Exactamente. Começam as brigadas independentes em que as mulheres têm de assegurar todas as tarefas, todos os postos, do apoio logístico ao de comandante. E isso é uma mudança tremenda. Implica juntar um nível físico muito grande com uma capacidade intelectual que também tem de ser especial.
O mundo percebe esse papel da mulher na luta curda?
Não, antes pelo contrário. Recentemente viu-se bem os equívocos todos, com a morte da combatente que todos os media internacionais descreveram como “a Angelina Jolie curda”, puseram toda a ênfase na sua beleza física. Para mim, essa mentalidade é muito redutora, é terrível que nos vejam assim. Claro que [Asia Ramazan ] era bonita, há combatentes bonitas, há curdas muito bonitas, e são as curdas que combatem os maiores animais deste mundo, os radicais do Daesh! A mais bela criatura do mundo bateu-se contra o maior animal de todos. E foi tão mediatizado este caso, sempre na perspectiva da beleza, foi notícia na Vogue, na Marie Claire. Isto para nós é muito desvalorizador de tudo o que estas mulheres alcançam diariamente. E é isso que tentamos fazer, dar voz a estas mulheres. Para mim, a emancipação da mulher é a base de qualquer possibilidade de democratização da região. E de toda a humanidade. Esta revolução é feminina mesmo antes de ser revolução.
Neste último pico de violência entre as Forças Armadas turcas e os curdos da Turquia, que começou o Verão passado, houve muitas jovens mulheres envolvidas, mais do que no passado. E houve uma violência terrível contra essas jovens, violações, graffiti que festejavam essas violações…
Isso são unidades especiais pagas para matar. É gente tão desprovida de humanidade que nem se dão conta que depois de fazerem isto, de violarem, de matarem, vão para casa e pegam nos filhos ao colo. Escreveram nas paredes de uma cidade “em Yuksekova [na província turca de Hakkari] o amor é possível”; claro que queriam dizer sexo, e escreveram isto ao lado de corpos de mulheres que decapitaram.
O que [o Presidente turco Recep Tayyip] Erdogan está a combater com isto é a própria emancipação das mulheres. Imaginemos se as mulheres do CHP [Partido Republicano do Povo, o maior da oposição, o mesmo do fundador da Turquia moderna e secular, Mustafa Kemal Atatürk] começassem também a pegar em armas, a resistir como nós aos tiranos… O que ele quer é que a mulher faça três filhos e fique em casa, obedeça a este modelo, use véu e seja oprimida, em conformidade com as regras do islão. E nós não nos portamos assim. Erdogan quer ser o novo Atatürk, a versão islamista de Atatürk, ou um novo sultão. No fundo, é a mesma mentalidade do Daesh, eu não vejo nenhuma diferença.