“Finalmente permitem-me ser engraçado”
Convidado do Folio – Festival Literário Internacional de Óbidos, o escritor Salman Rushdie falou ao PÚBLICO do seu último livro e defendeu que o grande tema da sua obra é hoje “essa ideia de histórias que colidem umas com as outras”.
Os leões não contam histórias uns aos outros para saberem que são leões. Já nós, se deixássemos de contar histórias, enlouqueceríamos. Para mudar o mundo, é preciso primeiro imaginar um mundo mudado. O inimigo do Iluminismo francês era a Igreja, não o Estado. Mas a Razão venceu. No Islão, perdeu. No 11 de Setembro, foi a história do mundo árabe que colidiu com a história de Nova Iorque. Já sabíamos desde Tolstoi que o mundo exterior ia invadir a nossa vida privada. Na literatura, foi esse o momento da mudança, precisamente entre Anna Karenina e Guerra e Paz. As ruminações de um escritor “engraçado” que transformaram num “ser negro e ameaçador”
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Os leões não contam histórias uns aos outros para saberem que são leões. Já nós, se deixássemos de contar histórias, enlouqueceríamos. Para mudar o mundo, é preciso primeiro imaginar um mundo mudado. O inimigo do Iluminismo francês era a Igreja, não o Estado. Mas a Razão venceu. No Islão, perdeu. No 11 de Setembro, foi a história do mundo árabe que colidiu com a história de Nova Iorque. Já sabíamos desde Tolstoi que o mundo exterior ia invadir a nossa vida privada. Na literatura, foi esse o momento da mudança, precisamente entre Anna Karenina e Guerra e Paz. As ruminações de um escritor “engraçado” que transformaram num “ser negro e ameaçador”
Salman Rushdie veio a Portugal participar no Folio, o Festival Literário Internacional de Óbidos. Nesta entrevista, falou do seu último livro, Dois Anos, Oito Meses e Vinte e Oito Noites, uma obra que os críticos consideram “engraçada”. “Finalmente, permitem-me voltar a ser engraçado”, disse o escritor sobre quem ainda pesa a ameaça de morte, desde a publicação de Os Versículos Satânicos, em 1989. Combinámos não falar de Religião. Conseguimos quase até ao fim.
Tenho um desafio para lhe fazer: nesta entrevista, não falaremos de religião.
Oh, sim. Por favor. Eu nunca quero falar de religião, mas arrastam-me sempre para lá.
Falemos do último livro, Dois Anos, Oito Meses e Vinte e Oito Noites (ed. D.Quixote). Não se conta entre as suas obras realistas. A história foi tomada pela fantasia, mas deve ser lida como uma história verdadeira?
Acho que todos os meus livros têm uma base no realismo. Este é talvez o mais fantástico que escrevi. No entanto, tive muito trabalho a transformar o mundo do livro num mundo real. Nova Iorque, Bombaim, Londres, são descritos com precisão. Queria que os leitores sentissem que são lugares verdadeiros. São pessoas reais em lugares reais.
Para obter um efeito de verosimilhança?
Se colocamos pessoas não credíveis em lugares não credíveis, e de repente acontece alguma coisa não credível, ninguém vai estar interessado em saber. A realidade tem de ser sempre a raiz, não importa quão louca seja a história.
Mesmo para escrever histórias fantásticas é preciso investigar a realidade, na escola dos grandes escritores realistas do século XIX?
Sim, sempre. Uma das minhas maiores influências, como escritor, foram esses autores dos séculos XVIII e XIX. Quando li Charles Dickens ou Jane Austen pela primeira vez, reconheci aquela realidade imediatamente. A cidade de Dickens, aquela grande cidade podre, cheia de corrupção, extrema pobreza e extrema riqueza, é algo familiar para alguém que veio da Índia. A Londres de Dickens é a Bombaim, Calcutá ou Deli de hoje.
Como um espelho, um século e meio depois.
Sim, é exactamente o mesmo. E se olhar para as personagens de Jane Austen, aquelas mulheres brilhantes que, circunscritas nas suas possibilidades, tudo o que podiam fazer era procurar maridos, ainda que fossem muito mais inteligentes do que todos os homens que conheciam, isso também é assim na sociedade indiana de hoje.
Mas Jane Austen escrevia apenas sobre o seu pequeno mundo.
O estranho é que esse mundo minúsculo me pareceu verdadeiro, visto do outro lado do planeta. Eu conheço aquelas pessoas. Cruzaram-se com a minha vida.
Esse tipo de autores tornou-se um modelo a seguir?
Foram uma inspiração. Eu admirava as formas de vida diferentes sobre as quais Dickens era capaz de escrever. Vinha de uma família pequeno-burguesa, que conheceu algumas dificuldades. Ele próprio viveu a realidade do trabalho infantil. Mas depois aprendeu sobre tudo.
Trabalhou em fábricas, só para contactar com o mundo dos operários.
Sim, ele podia escrever virtualmente sobre tudo. Sobre aristocratas e ladrões, prostitutas, merceeiros, tudo. E ficamos com aquela sensação, quando lemos Dickens, de que toda a vida humana está lá.
E as suas descrições serão rigorosas? Há quem pense que só se deve escrever sobre o que se sabe.
Uma das maneiras de saber coisas é descobri-las. Quando dou aulas nas universidades americanas, vejo que o lema dominante hoje em dia é: “só deves escrever sobre o que sabes”. O problema é que as pessoas sabem pouco. Ou aquilo que sabem não é interessante. Eu digo aos alunos: “Vão à procura da história”. Um escritor como Truman Capote, por exemplo. É oriundo de uma classe privilegiada. No entanto, o seu melhor livro resulta da história de um assassínio que descobriu no meio do nada e que foi investigar…
A Sangue Frio não é ficção.
Mas é escrito como se fosse. E é de longe a melhor coisa que ele escreveu. Porque foi ao local, à procura. Herman Melville viveu as histórias, antes de as escrever, Joseph Conrad viajava pelo mundo, e trazia as histórias. Tal como essa gente, quando escrevo um romance não quero que ele fique confinado ao meio próprio meio.
No seu caso, com o que lhe aconteceu a partir de 1989, tem tido liberdade de movimentos para investigar o que quer?
Desde há algum tempo que sim. Mas eu sempre tive essa atitude, como escritor. Por exemplo, seja onde for que eu viva, fico sempre obcecado com a história local. Quero sempre saber a história da rua onde vivo, depois do bairro, depois da cidade. Uma forma de estar no mundo é ser curioso sobre ele.
De que forma vai isso parar aos livros?
Há uma linha de tempo que é a vida do escritor. As suas experiências, o avançar da idade, etc. Outra linha é o que acontece no mundo exterior. Esse mundo também está em mudança. E o nosso tempo está a mudar depressa e radicalmente. Coloco os meus livros numa espécie de pontos de intersecção dessas duas linhas. Onde o meu mundo interior se encontra com o mundo de fora. Nesse cruzamento construo o romance. Os meus livros são reportagens dessa viagem.
É estranho, porque, no caso concreto, a sua vida cruza-se realmente com a história do mundo.
Eu já pensava assim antes, quando a minha vida não era tão interessante.
A fatwa trouxe animação aos seus dias.
Na verdade, gostaria de ter uma vida menos interessante. Mas acho que finalmente consegui o meu objectivo: ter uma vida mais aborrecida, como as da maior parte dos escritores.
Esses escritores não escrevem autobiografias.
Porque não há nada para contar. É por isso também que os filmes sobre escritores são sempre tão maus. Não há nada para mostrar.
Isso é uma vantagem ou uma desvantagem?
Uma grande vantagem.
Bruce Chatwin, de quem foi amigo, teve uma vida aventurosa, e os seus livros são fascinantes por causa disso.
Os livros de Bruce são brilhantes, mas falta-lhes qualquer coisa. Sinto que há neles uma ausência, que é o facto de nunca ter assumido a sua homossexualidade.
Não é possível escrever ocultando uma parte importante de nós próprios?
Para ser um bom escritor, é preciso saber quem somos. Se se vai escrever sobre isso ou não, é outro assunto. Mas temos de saber de onde escrevemos. E quando se teve uma experiência de migração é mais difícil responder a essa pergunta. Quando se é como William Faulkner, se cresceu numa cidade pequena e se passou a vida a escrever sobre essa cidade pequena, é mais fácil, mas quando se vagueia pelo mundo…
É preciso descobrir de onde se é. Ou escolher.
É preciso descobrir. Uma das razões por que me levou tempo a começar a funcionar como escritor…
Isso aconteceu entre o primeiro romance, Grimus, e o segundo, Os Filhos da Meia-Noite?
Sim, foi um longo período a cometer erros, a abandonar projectos, até descobrir quem eu era. E então descobri. A partir daí foi mais fácil.
Começou a escrever sobre as raízes.
Quando escrevi Os Filhos da Meia-Noite e Vergonha, tentava contar a história do mundo de onde vinha, a Índia e o Paquistão, de uma forma que fizesse sentido para mim, reconciliando-me com esse passado. Os próprios Versículos Satânicos são sobre isso. Sobre o facto de eu ter emigrado, para construir a minha vida no Ocidente. O que eu queria era escrever um romance sobre a natureza e consequências das migrações, e foi isso que pensei ter feito. Mas parece que algumas partes do mundo fizeram outra interpretação…
Não podemos falar de religião. Mas é verdade que um certo pessimismo entrou na sua visão do mundo e na sua obra?
Não sou grande fã do pensamento marxista, mas um dos pensadores marxistas que me interessam é António Gramsci. A sua frase “devemos ter pessimismo do intelecto e optimismo da vontade” é provavelmente a forma mais correcta de olhar o mundo. Se o virmos apenas com o intelecto, teremos de ser pessimistas…
É precisa alguma fantasia.
Exactamente. Para mudar o mundo, é preciso primeiro imaginar um mundo mudado. Para inventar a roda, foi preciso primeiro imaginar a roda.
Essa capacidade existe?
Sim há sempre quem resista. Não acredito na visão de George Orwell. Nunca chegaremos à vitória total da tirania. Nunca aconteceu na história do mundo. Até nas ditaduras mais extremas há resistência e uma esperança. Os seres humanos são horríveis, mas os seres humanos são extraordinários. O horrível e o extraordinário fazem turnos.
A filosofia de Pico della Mirândola.
A grande descoberta dos humanistas florentinos foi a de que a natureza humana não muda, apenas as suas circunstâncias. Nós somos isto, sempre fomos e sempre seremos isto. E penso que essa é a grande razão para a sobrevivência do romance. Em qualquer das suas formas, o seu tema é a natureza humana. E essa não muda. Lemos O Romance de Genji, de há mil anos, e compreendemos perfeitamente.
As histórias reflectem o que somos.
Toda a literatura é sobre isso. O que somos? Como somos? O que fazemos uns aos outros.
Nesse sentido, a literatura não morrerá.
Não pode morrer. Profetizou-se a morte dos livros sempre que surgiu um novo medium, a rádio, a televisão, o cinema, a Internet. Quando foi lançado o ebook, as vendas dispararam. Chegaram a 18% do mercado. Mas pararam de repente, e as vendas desta coisa fora de moda que é o livro estão de novo a subir. As pessoas gostam de livros que se há-de fazer?
Porque precisamos das histórias?
Somos a única criatura na terra que faz isto. Nenhum outro animal conta histórias a si próprio para compreender que tipos de animal é. Os leões não contam histórias uns aos outros para saberem quem são. Nem os pinguins, nem os golfinhos. Somos criaturas narrativas. Quando uma criança nasce, as primeiras necessidades são sentir que está segura, que é alimentada, que é amada. Logo a seguir, diz: conta-me uma história. Ou: canta-me uma canção. O que é a mesma coisa. Gosto do mito de Orfeu porque ele era ao mesmo tempo contador de histórias e cantor.
O que acontece se ficarmos sem histórias?
Há um momento no romance em que uma tribo africana imaginária pára de contar histórias. E todos enlouquecem. Algumas teorias actuais falam de uma grande narrativa, no interior da qual todos vivemos. Uma das grandes narrativas é a nação.
Ou a religião, a cultura, a civilização.
Sim, há essas grandes histórias, dentro das quais temos as nossas pequenas histórias. E sem aquelas não compreendemos estas. É claro que essa grande narrativa é suspeita, porque é muitas vezes construída por pessoas poderosas, em função dos seus interesses. Houve um tempo, por exemplo, em que a grande narrativa americana incluía a escravatura, a superioridade da raça branca sobre as outras. Isso era parte da narrativa. De repente, deixou de ser.
A narrativa teve de ser mudada.
Penso que um dos indicadores de que vivemos numa sociedade livre é quando essa narrativa muda a toda a hora, porque as pessoas a discutem. Se olhar para a história da América: houve um tempo em que se acreditou que as mulheres não podiam votar, depois isso mudou. Houve um período em que se acreditou que os negros não podiam votar, depois isso mudou. A grande narrativa muda. É interessante olhar para a Constituição americana. As suas 27 emendas representam as mudanças na narrativa.
Como um escritor fazendo a revisão do texto.
Sim. Há por exemplo quatro revisões sobre direitos eleitorais. A primeira dá direito de voto aos escravos, a segunda ilegaliza a taxa eleitoral, que os sulistas tinham inventado para impedir, na prática, os negros de votarem. A terceira dá direito de voto às mulheres, a quarta reduz a idade de voto para os 18 anos. À pergunta “Quem participa na democracia?” a resposta mudou quatro vezes em 200 anos.
Mudou, mas não sem luta e violência.
Sim, a primeira exigiu uma guerra civil.
No seu livro, é referido, de uma forma literária, o conflito entre o filósofo Averrois e o teólogo Al Ghazali. Essa luta entre o racional e o irracional não prosseguiu no mundo islâmico?
Averrois, ou Ibn Rushd era um homem de ideias progressistas, influenciado pela filosofia ocidental. É talvez o maior comentador de Aristótoles.
Sim, devolveu Aristóteles ao Ocidente.
Restituiu-o à Europa medieval, que o tinha esquecido. E teve uma grande influência, por exemplo, em Pico della Mirândola e todos os humanistas florentinos. São Tomás de Aquino também foi influenciado. Mas ninguém lhe deu seguimento. De certa forma, a discussão foi perdida, dentro do mundo islâmico. Apesar de ter sido ganha fora do mundo islâmico. No Iluminismo francês, os escritores eram muito claros sobre quem era o seu inimigo: a Igreja, não o Estado. Decidiram explicitamente usar técnicas como a blasfémia, para mostrar que a Igreja não podia estabelecer os limites do pensamento. Quando Diderot escreveu La Religieuse, sabia que a ideologia ortodoxa católica diria que era blasfemo. Fê-lo de propósito, para afirmar: vocês não me podem dizer onde deve parar a minha liberdade. E a ideia de liberdade que temos hoje vem dessa vitória sobre a Igreja.
"Uma espécie de lenda"
Não podemos falar de religião, mas podemos falar de História. No fim da licenciatura, optou por fazer uma tese sobre Maomé, numa perspectiva histórica. E foi nessa altura que descobriu os chamados Versículos Satânicos, e decidiu escrever, um dia, um romance sobre isso. Ocorreu-lhe que isso seria uma provocação às autoridades religiosas?
Não, eu só queria olhar para as coisas como eventos dentro da História, e não fora dela. Vamos falar do Islão só um minuto, mas de um ponto de vista não religioso. Os Islão é a única religião que nasceu dentro da História registada.
Não se pode dizer o mesmo do Cristianismo.
Não. Os evangelhos foram escritos pelo menos 100 anos depois de Cristo. Sobre o nascimento do Islão, temos uma quantidade enorme de informação histórica. Sabemos o que estava a acontecer na Arábia nessa altura. A transição de uma sociedade nómada para uma sociedade sedentária, a transição de uma sociedade matriarcal para uma sociedade patriarcal. Temos muitos textos pormenorizados sobre isto. E uma enorme quantidade de informação sobre os protagonistas. Podemos portanto olhar para este evento como um evento histórico. O nascimento do Cristiansmo é uma espécie de lenda.
E porquê esse interesse em estudar o nascimento do Islão?
Porque é a cultura de onde venho. Eu queria estudar o nascimento de uma grande ideia. Não como uma superstição, mas como um evento dentro da História, com as suas causas sociológicas, políticas, etc.
Mas os factos históricos não estão demasiado misturados com os mitos, para que seja possível estudá-los objectivamente?
É verdade que tudo foi severamente mitificado. Mas é muito possível, como historiador, estabelecer os factos. O problema é que em muitas sociedades muçulmanas este tipo de investigação está proibido. Muito do melhor trabalho que se tem feito nesta área ocorre nas universidades alemãs. Mas tudo isso está banido no mundo islâmico, o que é uma pena.
Nesse processo de mitificação dos factos e das personagens, que transformou Maomé num profeta, e talvez Bin Laden num herói e um mártir, o que acontecerá a Salman Rushdie? Transformar-se-á numa figura lendária, como os jinn do seu livro?
Numa parte do mundo, isso já é verdade. O que não me agrada nada. Há uma parte do mundo onde fui muito demonizado, com êxito. O nome não se pode pronunciar sem ser com agressividade. Isso é desagradável, perturbador. Aqui, o problema é ter a guilhotina daquele romance sempre suspensa sobre a minha cabeça. Mas estou a tentar sair disso.
É como uma personagem, que nada tem a ver consigo, nem sequer com o que escreve.
Eu sei. É um problema. Criou-se uma personalidade falsa, que se interpõe no caminho entre as pessoas e o verdadeiro escritor. Uma das coisas de que gostei quando saiu este livro é que as pessoas disseram que era engraçado. Finalmente permitem-me ser engraçado. Eu acho que todos os meus livros são engraçados.
Este tipo de humor é reconhecível desde Os Filhos da Meia-Noite.
Sim, disseram-no na altura. Mas depois de Os Versículos Satânicos as pessoas deixaram de dizer que eu era engraçado. De repente, tornei-me nesta figura negra e ameaçadora.
Preocupa-o o registo que ficará de si na História?
Não sei o que ficará. Ninguém tem nenhum controlo sobre isso. É ridículo até pensar sobre o assunto. Só espero que os livros sobrevivam. Eu escrevo-os para que durem. Se isso acontecer, eles, os livros, farão o seu próprio caminho.
Falou das nações, das culturas, das religiões, mas hoje há uma narrativa ainda maior, que é a sociedade global. Como podem as narrativas mais pequenas sobreviver?
Isso tornou-se o tema do meu trabalho. Quando percebi que não sou um escritor como Faulkner, e que a minha experiência de vida era o movimento, pensei que isso era um dom. Nos últimos 100 anos, mais pessoas se moveram na superfície da Terra do que alguma vez na História da espécie humana. E não falo só das migrações internacionais. O movimento das aldeias para as cidades num mesmo país é um choque maior do que atravessar fronteiras. A deslocação cultural é maior quando alguém vai de uma aldeia do Midwest dos EUA para Chicago ou Nova Iorque, ou de uma aldeia argentina para Buenos Aires, do que quando se muda de Bombaim para Los Angeles. Porque as cidades são semelhantes.
As migrações são o grande tema da nossa época. Mas a globalização trouxe também a noção de que tudo o que se passa no mundo nos diz respeito.
Quando Flaubert escreveu Madame Bovary, pôde colocar toda a acção numa pequena cidade de província. Penso que a mudança começou com Tolstoi. Entre Anna Karenina e Guerra e Paz tudo mudou. Na primeira obra ele ainda podia escrever uma história à maneira de Jane Austen, num mundo fechado. Em Guerra e Paz a vida privada é atacada pela vida pública. E nunca mais deixou de ser assim. Eu vivia em Nova Iorque quando ocorreram os ataques de 11 de Setembro. E observei as maneiras de descrever o ataque. A história do mundo árabe colidiu com a história de Nova Iorque. Literalmente. Foi um embate físico. Depois daquilo, quem quiser contar a história de Nova Iorque terá também de contar a história do mundo árabe. Vivemos numa época de mundos em colisão. Essa ideia de histórias colidindo umas com as outras tornou-se o meu tema.
"Momento de confronto"
Estaremos a cair numa espécie de armadilha? Os muçulmanos, se não apoiarem os radicais, estarão a colocar-se do lado do Ocidente, traindo a sua própria cultura; os ocidentais, para se defenderem, terão de abdicar da democracia… Há jovens ocidentais que se juntam ao ISIS dizendo que o islamismo é a única forma de combater o ocidente capitalista
Estão errados. Eu venho desse mundo.
Pode haver um confronto?
Este é um momento de confronto, e não sabemos como sair dele. Uma das coisas que temo é que a ideia de democracia esteja a perder terreno. As pessoas estão a voltar-se para os demagogos e potenciais tiranos. É assustador.
Não amam a liberdade o suficiente?
Esqueceram. Parece que 1945 foi há mil anos. Eu nasci dois anos depois do fim da guerra. A geração dos meus pais viveu horrorizada por ela, e queria certificar-se de que não voltaria a acontecer. A União Europeia nasceu desse desejo e, apesar de todos os seus fracassos, conseguiu manter a paz na Europa. Mas sinto que as pessoas estão a esquecer. Parece que não sabem que o mundo moderno nasceu para evitar que os nossos filhos morressem daquela maneira. É interessante que na América, como a memória do Vietname está mais próxima, as pessoas sabem que não querem de novo uma coisa daquelas.
Os americanos nem por isso deixaram de ir para o Iraque.
Uma coisa que uma vez escrevi para os britânicos aplica-se também aos americanos: não conhecem a sua história, porque ela se passa noutros países.
Como se sente em Portugal? Dizem que é dos países mais seguros do mundo.
Lembro-me sempre da primeira vez que visitei Portugal. Foi em 1988, para participar num festival literário em Queluz, organizado por Ann Getty. Toda a gente veio. Muitos escritores russos, Joseph Brodsky, Tatyana Tolstaya, Vasily Aksyonov, muitos da Europa de Leste, Péter Esterházy, Czeslaw Milosz. De Inglaterra, Martis Amis, Ian McEwan, de Itália, Tabucchi. E tudo em grande. Puseram-nos no Ritz, com limusines que nos levavam para o palácio. Foi o mais grandioso festival de sempre. A Clara Ferreira Alves levou-me ao local de onde partiram as viagens de Vasco da Gama. Isto passou-se em 1988, três meses antes da publicação de Os Versículos Satânicos. Para mim, foi o último momento de inocência.