O dia em que Trump e Clinton deixam os holofotes para os vices
Debate entre Tim Kaine, do Partido Democrata, e Mike Pence, do Partido Republicano, ganha importância numa era em que o papel dos vice-presidentes é mais escrutinado do que nunca.
Os mais novos já não se lembram, e os mais velhos provavelmente também não, mas houve uma época em que os vice-presidentes dos Estados Unidos eram pouco mais do que uma jarra em forma de gente na Casa Branca, deixada em cima de uma mesa durante quatro ou oito anos, tão activa e influente nas decisões como um quadro ou uma estátua.
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Os mais novos já não se lembram, e os mais velhos provavelmente também não, mas houve uma época em que os vice-presidentes dos Estados Unidos eram pouco mais do que uma jarra em forma de gente na Casa Branca, deixada em cima de uma mesa durante quatro ou oito anos, tão activa e influente nas decisões como um quadro ou uma estátua.
O primeiro a contrariar o modelo da "equipa equilibrada" para agradar a toda a gente e mais um par de botas entre o eleitorado norte-americano foi Bill Clinton, quando escolheu Al Gore em 1992 – um homem ainda na casa dos 40, tal como ele; formado numa das melhores universidades, tal como ele; da ala centrista e conservadora do Partido Democrata, tal como ele; e com raízes num estado do Sul, o Tennessee, mesmo ao lado do Arkansas de Clinton. Um texto da Associated Press publicado a 10 de Julho de 1992 resumia essa proximidade – "Clinton, Gore: separados à nascença?".
Depois da escolha de Bill Clinton, nada no cargo de vice-presidente voltou a ser como dantes – muito menos como na época em que o vice de Franklin Roosevelt, John Nance Garner (1932-1940), disse que o seu cargo "não valia um balde de mijo quente".
Com as responsabilidades que Clinton atribuiu a Gore (como a liderança das relações com a Rússia de Boris Ieltsin, em 1993), muitas das escolhas de sucesso para vice-presidente feitas pelos candidatos à Casa Branca têm levado em conta a experiência, a capacidade de trabalho e a empatia (não necessariamente todas concentradas na mesma pessoa), e não apenas uma necessidade de agradar ao eleitorado mais conservador ou mais liberal, mais do Norte ou mais do Sul.
Viu-se na escolha de George W. Bush, com um Dick Cheney não só experiente como muitas vezes retratado como mais Presidente do que o próprio Presidente; viu-se na escolha de Barack Obama, com um Joe Biden menos influente mas ainda assim encarregue de várias matérias importantes (como a proposta de reforço do controlo de armas e representações em importantes viagens oficiais), e uma amizade que fez dele sempre um apoio e não uma daquelas antigas jarras ou mesmo um inimigo dentro de casa, como chegou a acontecer até meados do século passado.
Escolhas de Trump e Clinton em acção
Depois do prato forte que foi o debate da semana passada entre Donald Trump e Hillary Clinton, os eleitores norte-americanos vão provar esta noite uma sobremesa tão misteriosa que ninguém sabe se vai ser uma delícia ou uma desilusão. Os candidatos a vice-presidente pelos principais partidos vão ter 90 minutos para se apresentarem ao mundo, a partir das 21h locais (2h de quarta-feira em Portugal continental), mas é certo que a maioria do tempo vai ser passado a reforçar as ideias dos seus chefes.
Do lado do Partido Democrata vai estar o senador da Virginia Tim Kaine, de 58 anos, um homem cuja escolha, em Julho, foi recebida por muitos eleitores com um "Quem?"; do lado do Partido Republicano vai estar o governador do Indiana, Mike Pence, um homem cuja escolha foi recebida pela liderança do seu partido com um "Ufa" de alívio.
Expliquemos, começando por Mike Pence. Para a maioria dos observadores, Trump estava indeciso entre Newt Gingrich, um antigo e polémico speaker da Câmara dos Representantes, e Chris Christie, o ex-governador de Nova Jérsia que desistiu da sua própria candidatura à Casa Branca nas eleições primárias e passou a seguir o magnata do imobiliário para todo o lado – em qualquer dos casos seria uma escolha por empatia e garantia de fidelidade, em linha com a era pós-Al Gore.
Mas o alvo ideal era o governador do Ohio, John Kasich, mais moderado e perfeito para equilibrar a equipa do espalha-brasas Trump, em linha com a era pré-Al Gore – só que Kasich passou as eleições primárias a arrasar o magnata e tudo o que ele representa no actual Partido Republicano e decidiu manter-se afastado do candidato até ao fim.
Depois de vários avanços e recuos, Trump acabou por escolher Mike Pence a meias com a liderança do Partido Republicano, ainda incrédula com a vitória do magnata nas primárias do partido. Pence, um sólido conservador anti-aborto, anti-casamento gay e tão religioso que não acredita nessas coisas da evolução das espécies, equilibra a candidatura de um homem que se casou três vezes, e que só na actual campanha revelou que tem opiniões fortes contra o casamento gay. À primeira vista, Pence é o típico contraponto, mas já provou em várias entrevistas que está preparado para amparar Trump até ao fim – ainda que possa não concordar com ele numa ou noutra questão, está lá sempre para focar a candidatura no essencial: Make America Great Again.
No Partido Democrata também houve indecisões – muitos preferiam um hispânico ou afro-americano para equilibrar a candidatura –, mas Hillary Clinton chamou Tim Kaine, que também esteve no radar de Barack Obama em 2008.
Apesar de só ter saído do anonimato político em termos nacionais em Julho passado, Kaine é um cristão com uma longa história de luta a favor da integração racial no estado da Virginia. Depois de ter passado nove meses como missionário nas Honduras, Kaine foi viver para o estado da Virginia com a mulher, onde frequentou uma igreja de maioria negra e matriculou os três filhos em escolas públicas.
Mas o candidato a vice-presidente tem duas grandes batalhas a travar para convencer a ala mais à esquerda do Partido Democrata. Por um lado, numa campanha dominada por gritos, ofensas, Twitter e urgência por um corte radical com o chamado establishment, o seu passado de activista – que inclui lutas contra a segregação racial, contra despejos e contra a pena de morte –, é isso mesmo: passado. Por outro lado, é pessoalmente contra o aborto, embora considere que o Estado não deve intrometer-se "em matérias de reprodução, intimidade, relacionamentos e contracepção". Apesar disso, apoiou leis na Virginia que forçavam um período de espera às mulheres que queriam abortar e uma notificação aos pais no caso de serem menores. "Em algumas das áreas em que apoiei restrições ao aborto, nem toda a esquerda gostou disso", reconheceu Tim Kaine.