Populismo em Portugal vive na orfandade
Não há possibilidade de um Lusexit, que é considerado um luxo desligado da realidade nacional. Os partidos também não estão virados para a onda populista
Quando os Estados Unidos e o continente europeu são assolados por uma vaga de populismo político, Portugal está, até agora, imune a estes sinais do tempo. Não existe uma representação partidária que se identifique com este movimento, o que parece derivar da interiorização pela sociedade da culpa pelo défice e pela dívida. A mensagem de que “vivemos acima das nossas possibilidades” e as consequências da globalização foram assumidas com resignação.
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Quando os Estados Unidos e o continente europeu são assolados por uma vaga de populismo político, Portugal está, até agora, imune a estes sinais do tempo. Não existe uma representação partidária que se identifique com este movimento, o que parece derivar da interiorização pela sociedade da culpa pelo défice e pela dívida. A mensagem de que “vivemos acima das nossas possibilidades” e as consequências da globalização foram assumidas com resignação.
“O populismo em Portugal está politicamente órfão, existem condições mas manifesta-se nas audiências televisivas, nas redes sociais, na imprensa que mais vende”, refere, ao PÚBLICO, o historiador José Pacheco Pereira. “Essa orfandade política é perigosa pois significa que uma parte da opinião pública não encontra representação”, pondera.
“A ausência de populismo em Portugal, que não é negativa, é um sintoma de que a sociedade portuguesa assumiu a sua fragilidade e vulnerabilidade no quadro europeu”, afirma, por seu lado, Viriato Soromenho Marques, catedrático de Filosofia Social e Política da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. “Neste contexto, em Portugal o populismo seria um luxo desligado da realidade”, sublinha.
Nos países fortemente endividados, os partidos na oposição não estão em condições de prometer que não vão cortar nos gastos para consolidar as finanças públicas. O eleitorado interpreta tal facto como falta de alternativa o que, democraticamente, desanima. Também a forma como na Europa as medidas de austeridade são assumidas, de forma difusa a partir do exterior dos países, não mobiliza.
Em Portugal, isso manifestou-se pela aceitação social, em momento de crise económica, dos ditames das políticas de austeridade subsequentes ao memorando de entendimento com a troika de 2011 e ao programa de assistência económica e financeira acordado com a União Europeia e o Fundo Monetário Internacional. “A direita transformou o argumento da globalização no fascínio pela ditadura da economia”, observa Pacheco Pereira. “O argumento de que a globalização implicava cortes nas políticas sociais tem por base a legitimação para um autoritarismo político, como revela a paixão do PSD de Pedro Passos Coelho por Singapura e a simpatia pelo PC chinês”, refere.
Os exemplos externos, de outras realidades tão distantes como exóticas, reforçam esta espécie de caução. “O Governo da direita [PSD/CDS] adensou a ideia de colonização europeia com um programa de privatizações para além da troika, evidenciando o desastre das elites que não têm memória, não conhecem a história nem acreditam no slogan do mercado aberto”, anota Soromenho Marques. É na combinação destes vectores que é socialmente assumido um caminho único, de sentido obrigatório, da política. “É o sentimento que os portugueses têm de que estão na zona euro com um estatuto diferente dos outros, afinal a dívida e a vigilância dos credores pesam”, exemplifica.
Num balanço ao fenómeno da globalização, Pacheco Pereira anota como positiva a saída de milhões de pessoas da miséria na Ásia ou Índia, mas acusa a direita de evitar debates incómodos, como a entrada nos mercados europeus actualmente bloqueada de produtos agrícolas africanos. Contudo não esquece um vector negativo. “A perda de controlo político sobre a estrutura financeira e dos seus movimentos é, apenas, um problema de vontade política que corresponde à captura dos governos da Europa pelo capital financeiro”, enumera.
Para o historiador, as consequências são alarmantes: “A democracia não sobreviverá se não houver controlo do poder económico pelo poder político.” Aliás, recorda o historiador, na Europa o keysenianismo foi criminalizado em nome da vigência de uma única alternativa, ao mesmo tempo que se dá a entrada em cena do tratado orçamental e a tomada de poder do eurogrupo. Este reino da inevitabilidade foi devastador para as malhas partidárias.
“Esta captura rebentou com os partidos socialistas e levou à direitização do Partido Popular Europeu [em Portugal representado pelo PSD e PP, os partidos que estiveram à frente do anterior executivo] com a justificação das políticas de austeridade que levaram à estagnação económica”, sintetiza.
“A esquerda agarrou-se à direita financeira, a nova aristocracia que manda no mundo é uma pequena elite, e a esquerda social-democrata ou socialista foi atrás”, denuncia o catedrático. “Essa legitimação social-democrata de uma Europa que se revela vulnerável ao primeiro sopro de vento da crise levou a esquerda a perder expressão, a dar de barato esta luta, a capitular porque não apresentou alternativa”, aponta Viriato Soromenho Marques.
Paralelamente, fenómenos tão diversos como o desemprego, fruto da crise económica, e a crescente fluidez das identidades nacionais, lançaram, à esquerda e à direita, o medo à globalização.
“Será a direita a liquidar esta globalização, vai destruí-la porque a maioria esmagadora dos seus eleitores não se revê na anulação das barreiras nacionais em termos económicos e políticos”, antevê Soromenho Marques. No entanto, afirma que o populismo não tem uma única marca ideológica, à direita.
“O populismo é o discurso da rua, da taberna, que se torna em discurso de Estado, não é só de direita, existe também à esquerda, com o Podemos, em Espanha, o Movimento 5 Estrelas de Itália ou o Syriza, na Grécia”, ressalva.
O fenómeno não é recente. Há muito aparecem personagens que fazem gala em se considerar intrusos na política. Foi o caso, em 1992, do empresário texano Ross Perrot, que irrompeu nas presidenciais norte-americanas. A outro nível, com outra dimensão e diferente fortuna, estiveram, em Espanha, Ruiz Mateos e Mário Conde, e em Itália Sílvio Berlusconi ou Antonio Di Pietro.
Um Lusexit?
“Portugal é o único país da Europa em que isto não acontece, é na verdade uma espécie de oásis, existe de facto uma nuance”, refere Soromenho Marques.
Para que o populismo seja mais que um grito de indignados ou arruaça de exaltados, é preciso que coexistam problemas por resolver e instituições democráticas fracas, incapazes de os solucionar. Só assim aqueles que se consideram intrusos verdadeiramente penetram e as entidades alternativas se estruturam.
“O PSD tem as características de partido popular e poderia expressar a reivindicação populista”, admite Pacheco Pereira. Contudo, o antigo vice-presidente do partido sob a liderança de Marcelo Rebelo de Sousa aponta um travão interno. “A oligarquia à frente do partido está muito ligada ao poder económico, aos poderes fácticos, com ligações à maçonaria, por isso não tem condições para ser populista”, afirma. Ainda à direita, o PP, segundo o historiador, não está apto para a via populista: “Não vai por aí, é um partido que está nas mãos das grandes sociedades de advogados, que intermedeiam entre o poder político e o mundo dos negócios.”
“A direita assumiu a quota parte da responsabilidade de espiar a culpa do défice, da dívida de ‘viver acima das nossas possibilidades’, o que travou a possibilidade de crescimento de uma direita anti-sistema”, considera o catedrático da Faculdade de Letras.
À esquerda, existem também em Portugal limitações próprias para o populismo. “O PCP poderia fazer esse caminho, mas decidiu acantonar-se, o que lhe permitiu sobreviver mas não permite crescer, não se consegue libertar de uma linguagem estereotipada, é refém da sua própria identidade”, pondera Pacheco Pereira.
Quanto ao Bloco de Esquerda (BE), o historiador remete-o para a actual geringonça, a fórmula que permitiu a António Costa, embora perdendo as eleições, ter apoios parlamentares suficientes para constituir um Governo do PS e reverter as políticas de quatro anos dos executivos do PSD e CDS de Pedro Passos Coelho e Paulo Portas. “Há laços fortes entre a ala esquerda do PS e o Bloco, o Bloco de Esquerda nunca penetrou nos temas que dão força ao PCP, o sucesso do BE é o resultado dos impasses do PCP, por isso a geringonça é vital para todos”, revela.
Onde o populismo se manifesta, insiste, é nas redes sociais. “As redes sociais sem mediação são um elemento fundamental do populismo que a comunicação social segue, nos jornais, como o PÚBLICO, os comentários são mediados, no Facebook não”, conclui Pacheco Pereira.
“António Costa absorveu o capital de descontentamento, o PCP e o Bloco de Esquerda estão à boleia da geringonça, ambos partidos já falaram da saída do euro, mas Costa deu-lhes a bóia da salvação quando o acordo de 10 de Novembro de 2015 pôs debaixo de água a questão europeia”, corrobora Soromenho Marques. “A geringonça mudou a natureza do PS embora não se saiba para onde irá, quando e se esta experiência falhar”, afirma.
Com esta estratificação de posições políticas, a não discussão da questão europeia e a inevitabilidade da inclusão de Portugal na zona euro, o catedrático não antevê sobressaltos populistas. “Na verdade, não temos nenhuma alternativa viável, temos o garrote da dívida e do défice mas estamos dentro de um sistema, para onde iria um Lusexit?”, interroga. Uma pergunta para a qual não encontra resposta credível.
Um ano de eleições problemáticas
“Em seis países europeus há partidos de extrema-direita em alta, na Hungria e Polónia a governar, na Bélgica, Finlândia, Lituânia e Estónia a apoiar governos”, alerta Viriato Soromenho Marques. Este é o actual ponto de situação que começou há muito, com movimentos radicais à esquerda, que têm em comum com a direita extrema um discurso anti-sistema apresentado como redentor.
Nos próximos 12 meses, em várias partes do mundo, estão marcadas disputas eleitorais decisivas. A 8 de Novembro, nos Estados Unidos, o candidato republicano Donald Trump vai a votos contra a democrata Hilary Cinton. A nomeação de Trump foi uma surpresa – até para os sectores mais conservadores dos republicanos, o Tea Party – e o confronto terá um desfecho neste momento considerado imprevisível.
Novembro é mês de uma dupla decisão. A 4 de Novembro, realizam-se novas eleições presidenciais na Áustria, depois de o Tribunal Constitucional ter anulado o resultado da consulta de Maio devido a irregularidades nos votos por correspondência que deram a vitória ao candidato ecologista Alexander Van der Bellen. Na próxima ida às urnas, é admitido como provável o triunfo de Norbert Hofer, candidato da extrema-direita.
No mesmo dia, está marcado em Itália o referendo sobre a reforma do sistema político proposto para Outubro pelo primeiro-ministro Matteo Renzi e, entretanto, adiado. Se for rejeitado, é admitida uma crise política que poderá favorecer partidos populistas como o Movimento 5 Estrelas.
Já em Março do próximo ano, na Holanda, há eleições legislativas. A extrema-direita do Partido pela Liberdade, de Geert Wilders, está à frente nas sondagens.
Um mês depois, em França, decorrem as eleições presidenciais para eleger o sucessor do actual Presidente, o socialista François Hollande. Em causa está saber se a direita republicana consegue travar o caminho de Marie Le Pen, da Frente Nacional. Os socialistas de Hollande parecem afastados da corrida para a segunda volta.
E dentro de um ano, em Setembro, há legislativas na Alemanha, com a actual chanceler Angela Merkel enfraquecida no seio da coligação CSU/CDU e sob pressões crescentes da extrema-direita.